Carmim – Capítulo 10

Publicado em 20/05/2018
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10. Desígnio

Sulana estava muito surpresa. Havia liberado todas as amarras da fúria, no entanto, permanecia completamente consciente de si mesma e de tudo a seu redor. Normalmente, quanto mais intensa ficava a febre da batalha, menos controle ela tinha sobre si mesma, suas ações cada vez mais passando a ser regidas por puro instinto. Mas hoje aquilo simplesmente não ocorreu. Estava usando sua força em intensidade máxima, mas continuava plenamente no controle, o que lhe dava uma sensação formidável, até mesmo um pouco assustadora.

Sua respiração e pulsação estavam muito aceleradas e a energia fluía livremente por cada músculo do corpo. Os sentidos estavam aguçados de uma forma inacreditável, dando-lhe uma noção precisa de tudo o que acontecia ao seu redor, em qualquer direção.

A febre também melhorava seu tempo de reação de forma absurda. Era como se todos ao seu redor tivessem ficado ridiculamente lentos. Prever os movimentos daqueles monstros dotados de ferrão no lugar dos braços era uma tarefa trivial. E com sua agilidade também extremamente melhorada, em muitas situações ela podia se aproximar e desferir um golpe mortal antes mesmo que a criatura pudesse completar seu primeiro movimento.

Até mesmo ataques como dardos místicos, que eram capazes de perseguir seu alvo, desviando-se de quase qualquer obstáculo, não representavam um problema muito sério. Bastava empurrar um adversário na direção do dardo com força suficiente para que o projétil não tivesse tempo de mudar de direção. Então bastava correr até o conjurador e neutralizá-lo antes que ele produzisse mais daquelas coisas irritantes.

O fato de não estar lutando contra pessoas, mas sim com criaturas aparentemente sem discernimento ou vontade própria era libertador. Normalmente, a parcial perda de controle causada pela febre da batalha é que servia como um alívio para o turbilhão de emoções que a acompanhava quase o tempo todo e que ela precisava conscientemente empurrar para o fundo da mente. Mas hoje era diferente. Hoje ela lutava uma batalha digna, uma que realmente havia escolhido participar. Não era a sede de destruição que a movia, nem mesmo aquele ímpeto estranho que sempre havia sentido ao lutar com os rebeldes. Estava ali esmigalhando ossos e criando pilhas e pilhas de cinzas de monstros dilacerados por sua própria vontade.

Monstros voadores a deixavam em desvantagem, mas, felizmente, Ronam era capaz de derrubar do ar aqueles que usavam encantamentos místicos para flutuarem e Giarle conseguia executar arremessos devastadores com aquela lança, o que a deixava livre para se preocupar com os que estavam no chão.

De qualquer forma, aquela batalha ainda estava muito longe de terminar. A quantidade de monstros era muito grande e eles pareciam surgir por todos os lados. Eventualmente, o exército vermelho foi completamente cercado. Depois disso, não levou muito tempo para ficarem isolados, perdendo completamente o contato visual com os outros, soldados ou rebeldes.

Por mais eficiente que Sulana fosse naquela forma, a desvantagem numérica era simplesmente grande demais. Mesmo com sua velocidade, não conseguia estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Cada vez mais frustrada, ela foi vendo os soldados vermelhos e os rebeldes caírem um a um, até que sobrassem apenas Giarle, Lura, Iraele e Ronam, no centro de um cenário de morte e destruição.

Depois de dispenderem muita energia, finalmente conseguiram derrotar os monstros que os cercavam e ganharam um tempo para respirar.

– Não baixem a guarda – disse Iraele, cansada. – Tem mais vindo para cá.

– Lura, você ainda tem aquele pergaminho de ocultamento? – Giarle perguntou, também lutando para recuperar o fôlego.

– Sim.

– Não vai funcionar – disse Ronam. – Se um monstro chegar perto, Sulana vai atacar e anular o encantamento.

Aquilo poderia ser verdade tempos atrás, mas não hoje. Infelizmente, Sulana não tinha como dizer nada, uma vez que um dos efeitos da febre continuava tão intenso como antes: não tinha controle sobre os músculos da boca e do rosto, portanto não era capaz de falar.

– Não é para ela, é para nós – respondeu Giarle.

Iraele franziu o cenho.

– Quer que deixemos sua namorada lutando sozinha?

– Estamos atrapalhando. Ela gasta muito tempo tentando nos proteger. Seria muito mais eficiente se não estivéssemos aqui.

Mais um grupo de monstros avançou e eles se prepararam para se defender. Como que para comprovar o que ele havia dito, Sulana várias vezes deixou de lado o monstro que enfrentava para proteger aos outros, o fato de não ser atingida pelas costas no processo parecia quase um milagre.

Assim que aquela nova leva foi derrotada, Giarle gritou:

Carian!

Aquela era uma palavra chave que ele nunca se imaginou usando. Era uma ordem para que alguém distraísse o inimigo enquanto o resto da tropa batia em retirada.

De costas para eles, Sulana levantou o punho esquerdo, cerrado, por um momento, antes de sair correndo na direção do grupo de monstros que acabava de entrar em seu campo de visão.

– Parece que ela entendeu – disse Iraele, surpresa. – Podia jurar que estava completamente descontrolada.

– Mas não podemos fugir – reclamou Ronam.

– E não vamos. Quero ir até a muralha e ver se tem algo que possamos fazer para impedir que essas coisas continuem entrando aqui.

– De que adianta? – Iraele perguntou. – Eles surgem de todos os lados.

– Isso só acontece porque a muralha foi danificada. Se ela puder ser consertada, não serão mais capazes de se transportar aqui para dentro.

– E como vamos fazer isso?

– Eu tenho um plano. Lura, ocultamento, agora!

Sem precisar se preocupar com a segurança dos rebeldes, a batalha se tornou muito mais fácil para Sulana. Mesmo depois de tanto tempo, sentia que ainda tinha muita energia para usar e, tendo apenas a si própria para proteger, ela pôde mudar de tática e concentrar toda sua força no ataque. Afinal, não havia melhor forma de defesa do que matar o inimigo antes que tivesse a chance de atacar.

Até mesmo os voadores deixaram de ser problema, uma vez que ela era muito mais rápida do que eles ou do que seus ataques. E quando eles se exauriam, eram obrigados a pousar para recobrar as forças, momento em que ela podia retalha-los facilmente.

Com o tempo, o número de oponentes foi diminuindo cada vez mais. Sulana já começava a pensar em subir para um lugar mais elevado para tentar encontrar mais oponentes, quando surgiu um daqueles malditos monstros humanoides de pele amarela.

♦ ♦ ♦

Depois de caminharem em silêncio por longos e estressantes minutos, eles chegaram até o local onde parte da parede tinha desabado, graças aos ataques dos rebeldes, cujos corpos sem vida estavam espalhados ao redor. As criaturas continuavam entrando, mas evitavam chegar muito perto das paredes que estavam em pé.

Quando o efeito do campo de ocultamento começou a desvanecer, correram até as escadas e subiram até o topo da muralha. Alguns dos poucos monstros que estavam por perto os viram, mas não fizeram nada além de ficarem olhando para eles lá de baixo e rugindo, incapazes de se aproximar demais. Um voador tentou ataca-los pelo alto, mas Giarle conseguiu derrubá-lo com um arremesso certeiro de lança. O problema é que a arma caiu junto com as cinzas do monstro morto, indo parar lá em baixo, no meio dos outros.

– Droga, está fora de alcance – reclamou ele. – A lança caiu longe demais para eu poder chamar ela de volta.

– O que fazemos agora? – Iraele perguntou.

Como não havia nada que pudesse fazer em relação à arma, ele decidiu deixar aquilo para lá e desabotoou os primeiros botões do casaco carmim, tirando um pergaminho de algum bolso interno e o entregando a Lura.

– Consegue usar esse negócio?

– É um canto de restauração – concluiu ela, ao examinar o objeto de perto. – Não sabia que algo assim podia ser inscrito em pergaminho.

– Todos os chefes de batalhão do Exército Vermelho carregam um desses. Serve para consertar falhas na muralha, caso ela seja danificada. Trouxe um comigo por precaução, mas não tenho afinidade com isso. Consegue usar?

– Creio que sim. Mas acho que não vai funcionar se o local estiver bloqueado – ela apontou para os monstros que estavam parados bem na parte derrubada da muralha, andando para lá e para cá sobre as pedras e lançando rugidos e olhares ameaçadores na direção deles.

Iraele rasgou um pedaço da túnica que usava e começou a limpar cuidadosamente a lâmina da espada, enquanto perguntava:

– De quanto tempo precisa?

Lura olhou para ela.

– Uns dois minutos.

– Campos de repulsão também bloqueiam esse negócio?

– Não, só presenças físicas, eu acho.

– Nesse caso, posso manter essas pestes fora dali por algum tempo.

– Eu posso ajudar – ofereceu-se Ronam.

– Não, vocês dois ficam aqui com ela. Alguém tem que protegê-la caso apareça mais algum voador.

– Só me dê um minuto para eu estudar melhor isso aqui – pediu Lura.

Giarle aproximou-se de Iraele.

– E seu marido?

– Morto. Degolado na minha frente, logo que todo mundo começou a passar mal.

– Sinto muito.

Ela virou-se para o lado e cuspiu no chão.

– Graças a ele eu estou viva. Ao ver aquela cena eu voltei a mim e consegui me proteger, se não fosse por ele eu não estaria aqui.

Ficaram em silêncio por um longo momento. Então ele suspirou e balançou a cabeça.

– Não serve de consolo, mas ao menos ele morreu em batalha, lutando pelo que acreditava e protegendo a esposa. Ele sempre sonhou com isso, não é?

Ela olhou para ele, irritada.

– Tem toda razão. Não serve de consolo. Nada em que acreditávamos era verdade. – Iraele olhou para Lura. – Pronta aí, menina? Se demorarmos, vão aparecer mais dessas coisas.

– Tudo bem. Acho que consigo.

– É melhor que consiga mesmo.

Iraele segurou a empunhadura da espada com ambas as mãos, com a lâmina voltada para baixo. Então correu até a beirada e saltou, gritando alguma expressão antiga. Giarle, Ronam e Lura sentiram uma forte e rápida lufada de vento, gerada pelo campo de repulsão invisível emanado pela espada. O campo amorteceu a queda, ao mesmo tempo em que arremessava tudo o que estivesse vivo para longe de sua área de efeito, deixando a falha na muralha desobstruída. Ao pousar, Iraele empurrou a espada para baixo com toda a força, fazendo com que ela se afundasse um pouco no chão.

– Ela tem que ficar empurrando daquele jeito? – Ronam perguntou.

– Se quiser manter a área de efeito o mais ampla possível, sim – respondeu Giarle. – Vamos torcer para que a resistência dela continue sendo a mesma de quando era solteira.

Ronam olhou para ele, incrédulo.

– O que tem a ver uma coisa com a outra?

– Hã? Ah, nada. É que a última vez que vi ela usar isso foi anos atrás, bem antes de juntar os trapos.

Lá em baixo, os monstros tentavam se aproximar para atacar Iraele, mas eram repelidos. Eles até conseguiam avançar um metro ou dois, mas a força de repulsão ficava cada vez maior até que não conseguiam mais prosseguir e eram empurrados de volta. No entanto, a dificuldade da mulher em manter o campo funcionando aumentava a cada segundo que se passava.

Então, subitamente, uma criatura humanoide de pele amarela surgiu por entre os monstros que estavam do lado de fora da muralha, e conjurou uma onda de choque, que abriu um enorme rombo no chão, esmigalhando as pedras e atingindo Iraele em cheio, lançando-a para longe. A onda prosseguiu por mais uma boa distância, atingindo diversos dos monstros que estavam por ali, antes de se dissipar.

– Proteja Lura – Giarle ordenou a Ronam, antes de sair saltando pelas pedras da parede derrubada até chegar ao chão.

Por muito pouco, ele conseguiu se esquivar de um outro ataque do homem amarelo, se jogando para o lado e rolando pelo chão. Sabendo que não tinha mais tempo, ele ergueu a mão na direção da lança prateada, que estava a uns 15 metros de distância. Felizmente, a arma mística atendeu a sua convocação e flutuou até ele.

Imediatamente, ele se virou na direção do amarelo e a arremessou contra ele. Para sua frustração, no entanto, com apenas um pequeno gesto, o amarelo fez com que a lança mudasse de direção e caísse em meio às pedras.

Giarle engoliu em seco quando viu o monstro preparar-se para conjurar mais um daqueles ataques na direção dele.

E tomou um enorme susto com o barulho de um trovão, um som tão intenso que pareceu fazer o chão e a muralha tremerem. Quando se recompôs, percebeu que o amarelo tinha sido atingido por um raio que o arremessou dezenas de metros para trás, bem longe da muralha. A maioria dos monstros que estavam do lado de fora haviam sido instantaneamente desintegrados, mas os que sobreviveram também haviam sido lançados para longe.

Então o General Vermelho surgiu, pousando suavemente no local onde o amarelo estivera momentos antes, enquanto faíscas elétricas irradiavam de seu corpo para todos os lados. Giarle encontrou os olhos de Belísar por um breve instante, antes do general se virar e caminhar na direção dos monstros que atacara antes, com a intenção de terminar o serviço.

– Giarle, cuidado, atrás de você!

O barulho das patas no chão e dos rugidos atrás dele haviam chamado a atenção de Giarle bem antes do grito de Ronam. Ele levantou a mão e a lança veio voando até ele, que virou-se com a arma em punho bem a tempo de se proteger do primeiro ataque das monstruosidades.

♦ ♦ ♦

Aquela aberração de pele amarela era irritante.

Sulana teve muita dificuldade para conseguir chegar perto, pois o infeliz tinha habilidades místicas que atingiam grandes áreas, de forma que, mesmo com sua velocidade máxima, era difícil de escapar. Com seus poderes ampliados pela febre, ela praticamente nem sentia as ondas de choque, boas de fogo e diversos outros tipos de ataque dele, mas o fato de não conseguir revidar era frustrante.

Por sorte, com o tempo ele foi ficando cansado e finalmente cometeu um erro, que a permitiu se aproximar o suficiente para agarrá-lo pelo pescoço e apertar com toda a força. Assim, a batalha que durava quase 20 minutos e que tinha deixado inúmeras marcas no terreno acidentado terminou com um único e preciso golpe da parte dela.

O som de carne e ossos sendo esmigalhados nunca lhe pareceu mais agradável. Principalmente pelo fato de ela não ter nem mesmo sujado a mão, uma vez que aquela coisa imediatamente se transformou em pó, não chegando a derramar nem uma gota de sangue sequer.

Sulana olhou ao redor e, pela primeira vez, sentiu-se cansada. Não poderia manter aquele ritmo por muito mais tempo. Então notou barulhos que indicavam que uma batalha estava ocorrendo entre as árvores, não muito longe dali. Sem hesitar, ela correu naquela direção.

A maioria daqueles monstrengos era bastante estúpida, mas eles não brigavam uns contra os outros. Então deviam haver sobreviventes por lá, dos rebeldes ou dos vermelhos.

Ao se aproximar, ela percebeu vagamente que haviam três pessoas aladas ali, que deviam ser protetores, mas nenhum era Derione. Dois deles, bastante feridos, usavam lanças prateadas parecidas com a de Giarle para se protegerem do ataque de meia dúzia de monstros, enquanto o terceiro estava um pouco mais atrás, segurando a própria lança com força e olhando para os lados, aparentemente protegendo uma pequena multidão de pessoas, que pareciam bem mais feridas do que ele.

Como um furacão, Sulana entrou na batalha, distribuindo golpes e encerrando o combate em poucos instantes.

Quando todos os monstros haviam virado poeira, Sulana e os protetores ficaram se encarando por um momento. O homem fez menção de levantar a lança na direção dela, de forma ofensiva, mas a mulher levantou a mão na direção dele, o que o fez interromper o gesto.

Sulana não captou mais nenhum sinal de criaturas hostis ao redor. A única coisa que ouvia era o barulho do vento. Esperando que aqueles ali realmente tivessem sido os últimos, ela levantou a cabeça e fechou os olhos. Como esperava, depois de ter usado a fúria de forma tão intensa e por um período tão prolongado, acalmar-se levaria bastante tempo. Por mais que quisesse fazer algumas perguntas àqueles dois ali, isso teria que esperar.

– Sulana Lautine – disse a mulher.

Abrindo os olhos, Sulana encarou a ruiva. O estado dela era patético, a maioria das penas das asas tinham sido arrancada ou queimada, a armadura prateada estava toda amassada e havia sangue escorrendo de ferimentos nos braços, pernas e no rosto.

Sem ter como responder, Sulana apenas assentiu.

A outra virou para seu companheiro.

– Levem essas pessoas daqui.

– Não podemos permitir… – ele tentou argumentar, mas foi interrompido pela ruiva.

– Esta é minha última missão aqui. Não seria injusto se me fosse concedida ao menos alguma privacidade para tratar desse assunto.

O homem, que parecia tão ferido quanto a ruiva, olhou para Sulana de cima a baixo e apertou os lábios, antes de se afastar na direção dos outros.

Os dois homens trocaram algumas palavras e fincaram suas lanças no chão, antes de se voltarem para a pequena multidão e levantarem as mãos. Havia dezenas de pessoas ali, com e sem o uniforme carmim, muitas parecendo seriamente machucadas. Então, aos poucos, todos foram ficando transparentes, até desaparecerem por completo, deixando Sulana e a ruiva sozinhas.

– Meu nome é Elinora – disse a outra, começando a caminhar na direção da muralha, usando a lança como apoio para evitar forçar a perna direita. – Você conheceu um aliado meu, Derione, então já tem conhecimento sobre nós e nossa sagrada missão.

Sulana a seguiu, em silêncio.

– Você é agora portadora do Desígnio Divino. É minha atribuição informa-la sobre o recebimento dessa graça, bem como da razão para isso ter ocorrido.

Apertando os olhos e os punhos, Sulana continuou caminhando, enquanto encarava os cabelos vermelhos, desgrenhados e chamuscados da outra, que caíam por suas costas, mal ocultos pelas asas castigadas.

– Temos observado você há bastante tempo, pois é nossa função vigiar e garantir que o equilíbrio seja mantido e que os perpetuadores do mal não triunfem.

Sulana se lembrou de sua infância, da época em que desceu daquela maldita montanha, deixando sua família e todo o resto do clã para lutarem uma batalha suicida. Seus pais, no entanto, haviam cometido um engano: os inimigos não apenas vieram antes do que eles esperavam, mas também atacaram por todos os lados. Sulana teria caído diretamente nas mãos deles, se não fosse pela ajuda de um estranho. Um estranho que tinha asas.

– Por que eu? – Suas palavras saíram enroladas, quase ininteligíveis. Sua língua parecia inchada, seus lábios ainda com pouca mobilidade.

– Por que você, sozinha, poderia representar perigo maior do que todo o seu clã.

O quê?!

Sulana tentar falar novamente, gritar para aquela infeliz, ordenando que falasse algo que fizesse sentido, mas acabou se engasgando e teve que parar e tossir algumas vezes.

Elinora voltou-se para ela.

– Você era diferente. Por isso seus pais mandaram você embora antes do massacre. Por isso você quis ir embora. Os outros eram escravos da maldição lançada pelo Eterno, incapazes de fazer outra coisa além de lutar, lutar e lutar, até o fim. Meu voto, bem como o de muitos de nós, foi para que você fosse agraciada com o sono perpétuo. Estava claro que você era o último recurso, aquela que carregaria o propósito final de uma entidade derrotada e moribunda. Que não passava de era uma ferramenta de vingança trazida ao mundo para gerar caos e destruição.

– Não sou… – Sulana bem que se esforçou, mas não conseguiu pronunciar nada além daquelas duas palavras. De onde aqueles idiotas tinham tirado uma ideia como aquela? Ela não passava de um fracasso, uma menina indigna até mesmo de morrer ao lado dos pais.

– Estávamos errados – disse Elinora, antes de virar-se novamente e voltar a caminhar. – Você era diferente, mas de outra forma. Alguns argumentam que, com a morte do Eterno, sua maldição enfraqueceu, e isso fez com que você nascesse sem algumas das características do seu povo. Você conseguia conviver com pessoas que não compartilhavam de seu sangue. Podia ficar ao lado deles, conversar com eles, até mesmo dormir ao lado deles sem se sentir incomodada ou tentada a provocar qualquer tipo de mal.

– Espere… – Sulana correu e segurou a outra pelo ombro. – Meu povo… não… não podia…?

Elinora a encarou.

– Deve ter ouvido as histórias sobre o povo das montanhas inúmeras vezes.

Sim, ela tinha ouvido. E sempre achara que eram todas exageradas e mentirosas.

– A maldição de seu povo era trazer conflito e morte ao mundo – continuou Elinora. – Não havia neles piedade por nenhum outro ser humano. Para eles, o restante da humanidade não passava de um bando de formigas, criaturas incômodas que deviam ser esmagadas para que não ficassem no caminho.

– Isso… não pode… ser verdade… – o choque e a indignação aos poucos iam afastando os efeitos da febre, de forma que pronunciar as palavras estava se tornando mais fácil.

– Somos servos do benevolente Senhor dos Eternos, somos incapazes de mentir – contrapôs Elinora, voltando a andar. – Acompanhamos você durante todos esses anos. Lamentamos que nunca tenha conseguido encontrar uma família disposta a cuidar de você, mas não tinha muito o que pudéssemos fazer além de protege-la e ajudá-la a procurar um outro lugar para ficar quando alguém percebia algumas das características de seu povo em você.

Anos e anos de culpa e solidão subitamente pareceram pesar no peito de Sulana, de forma que ela se sentia como se estivesse sendo esmagada.

– Eu não queria nada disso!

Elinora parou e olhou para ela.

– Nós sabemos. No entanto, temos que seguir nossas diretrizes, e, por isso, não havia nada que pudéssemos fazer.

– Eu queria morrer também!

– Isso seria cruel, você não tem culpa pelos atos de seus pais.

– Cruel foi me fazer viver desta forma!

A ruiva voltou a caminhar. Furiosa, Sulana foi atrás dela, mal percebendo que os efeitos negativos da fúria já tinham, praticamente, desaparecido.

– Acha que foi justo me fazerem passar por tudo aquilo?

– Não. Por isso Derione assumiu a tarefa de tornar-se seu guardião.

– O que isso quer dizer?

– Ele vem, por anos, encontrando formas de enfraquecer os traços da maldição que ainda existiam em você. Todo o controle que era capaz de exercer sobre seus poderes até a semana anterior a esta foi adquirido graças aos esforços dele.

– O quê? Quando…? Como…?

Mais uma vez, Elinora estacou no lugar e voltou-se para ela.

– Derione tomou para si a tarefa de livrá-la da maldição e transformá-la em uma pessoa normal, que pudesse viver com tranquilidade sem ninguém nunca lhe apontar o dedo ou acusar-lhe de algo que não tinha feito. Quando? Durante todos os momentos da vida dele nos últimos onze anos. Como? De todas as formas possíveis.

Sulana se imobilizou, boquiaberta.

– Ele se dedicou completamente a esta tarefa, chegando, para isso, a abdicar da própria identidade. Convencido de que merecia ter alguém que a protegesse, que cuidasse de você, que a amasse, decidiu assumir essa tarefa ele mesmo. – Elinora apontou-lhe o dedo indicador. – Não sei se alguém como você pode entender algo assim. Ele escolheu amar você. Não foi uma afinidade ou uma atração governada por alguma regra mundana, algo imprevisível, aleatório. Ele simplesmente decidiu que seria assim. Abrindo mão de parte dos poderes e de sua capacidade de tomada de decisão, ele se tornou, praticamente, um mero humano, disposto a ir a qualquer extremo, a fazer, literalmente, qualquer coisa, por você. Consegue pensar em uma determinação, um comprometimento maior do que esse?

Desviando o olhar, Sulana levou a mão ao rosto, distraída, tentando absorver tudo aquilo. Por tanto tempo ela imaginou que Derione não fazia nada mais do que tentar controla-la, obrigar a fazê-la agir da forma como queria, que era difícil acreditar no que ouvia. Mas, no fundo, ela sabia que podia haver um fundo de verdade. Ele chegara a ameaça-la algumas vezes, mas nunca, realmente, a obrigara a nada. Até mesmo os… interlúdios que os dois tiveram haviam ocorrido de forma natural. Sulana havia sido levada a participar por nada mais que mera curiosidade, mas nunca por coação. E ele nunca usara aquilo contra ela.

Precisava esclarecer aquilo. Com ele. Agora.

– Onde está ele?

– Não está mais conosco.

– O que quer dizer?

– Como eu disse antes, você recebeu o Desígnio Divino. É a maior graça que um mortal pode possuir. Significa que o próprio Senhor dos Eternos reconheceu o seu valor e a considerou digna.

– Não entendo. Do que está falando?

– A você foi dada uma segunda chance. Você lutou contra uma das criaturas mais maléficas de toda a existência e triunfou, mas sua vida foi ceifada naquela batalha. O Glorioso Desígnio reconstruiu seu corpo dilacerado e trouxe seu espírito de volta, garantindo-lhe uma segunda chance de existência. E esse seu novo corpo não sofre dos efeitos da maldição de seu clã.

– Está falando bobagens.

– Olhe ao seu redor. Por quanto tempo esteve lutando hoje? Quantos oponentes derrotou? Quantos ferimentos sofreu? Eu e meus companheiros, mesmo usando tudo o que o Grandioso nos concedeu, mal conseguimos sobreviver.

Sulana sacudiu a cabeça, ainda incapaz de digerir aquilo.

– Onde está Derione?

– O Senhor dos Eternos busca o equilíbrio. A ele não interessa popular o mundo apenas com aqueles que recebem Sua graça. Um novo bem-aventurado só pode ser gerado quando a existência de outro se encerra.

– O que quer dizer? Ele foi morto? – Sulana arregalou os olhos. – Ele estava nessa batalha que você diz que participei?

– Não, ele não foi morto. Derione ofereceu a própria existência como oferenda ao Altíssimo para que esse seu coração – ela apontou para o peito de Sulana – pudesse voltar a bater.

Neste momento, um som estridente, parecido com um trovão, pode ser ouvido na direção da muralha, chamando a atenção de ambas.

Elinora levantou as mãos e começou a flutuar, elevando-se a alguns metros de altura, antes de bater o que restou das asas e partir num voo desengonçado, com destino à origem do som.

Sulana ficou parada por um instante, com os pensamentos em turbilhão. Derione se sacrificara por ela? Por quê? Ela nunca tinha pedido por nada daquilo.

Então ela estreitou os olhos.

Não, ela não tinha pedido por nada daquilo. Nada. Nem pela tal “proteção” que lhe concederam, nem pela tentativa de anular sua maldição, muito menos por a terem trazido de volta dos mortos, se é que podia acreditar em algo daquilo tudo.

Sentindo a fúria voltar a tomar conta dela, soltou um urro e partiu em disparada, em busca de algo que pudesse esmurrar.

Os monstros que ela encontrou atacando Giarle não eram, nem de longe, desafio suficiente para seu estado de espírito, mas ela teve que se contentar com eles. O fato de ter chegado tarde demais para salvar Iraele serviu para aumentar ainda mais sua já exacerbada ira.

Quando Elinora finalmente chegou até o local, batendo as asas com muita dificuldade, a batalha já havia se encerrado.

Lura havia completado o processo de ativação do pergaminho, que reergueu novamente as pedras, restaurando assim a muralha. A restauração não tinha sido total, no entanto. As pedras que haviam recebido os impactos dos ataques dos conjuradores rebeldes continuaram esburacadas e desgastadas, e o encanto do pergaminho as tinha reerguido de forma aleatória, de maneira que aquela parte do paredão adquiriu a aparência de uma colcha de retalhos.

Sem mais nenhum oponente à vista, Sulana se sentou em um canto e levou as mãos à cabeça, tentando se acalmar.

Giarle fez menção de ir até ela, mas mudou de ideia ao ver Elinora pousar diante dele. Imediatamente, arregalou os olhos, preocupado.

– Você está bem? Precisa de ajuda?

– Por acaso você sabe o que eu sou?

– Claro. É a responsável por toda essa bagunça.

Elinora apontou para a lança que ele segurava.

– Esse artefato me pertence.

Ele deu de ombros.

– Achado não é roubado. Você o deixou para trás quando se transportou para longe da praia, depois da batalha com o demônio.

– Você conseguiu usá-lo.

– Estou pegando o jeito.

Ela o encarou, avaliativa, por um momento.

– Isso quer dizer que ele o escolheu como seu novo legítimo portador. – Parecendo satisfeita, ela deu uma olhada para a muralha. – Meu trabalho aqui está encerrado.

– O inferno que está! – Sulana exclamou, se levantando, de repente. O tom púrpura da febre da batalha havia desaparecido de seus olhos, mas de qualquer forma, estava furiosa. – Eu não pedi nada disso! Não pedi por piedade, nem por proteção, nem por amor, ou o que quer que aquilo fosse! Passei minha vida toda procurando por paz, e quando finalmente consegui o que tanto queria, vocês me trouxeram de volta!

– Você não entende a grandiosidade da honra que lhe foi concedida.

– Deixa eu adivinhar – disse uma voz autoritária, vinda do topo da muralha. – Vocês concederam a ela também a duvidosa honra que chamam de “desígnio divino”?

Elinora levantou o rosto para encontrar o olhar desafiador de Marcelius Belísar.

– Você não tem o direito de zombar das decisões do Altíssimo!

Belísar saltou da muralha e flutuou até o chão, caindo entre Sulana e Elinora.

– Foi decisão desse seu “altíssimo” comprometer nossa malha energética para deixar que um demônio se infiltrasse no coração dos meus domínios?

Ela apertou os dentes.

– Não. Essa decisão foi minha. E já recebi minha injusta punição por causa disso, não preciso ouvir despautérios da sua parte.

Sulana pensou em se adiantar e ensinar algumas coisas para aquela arrogante, quando suas pernas fraquejaram e ela acabou caindo de joelhos. Exausta, tanto física como emocionalmente, mal conseguiu acompanhar o restante do diálogo.

– É mesmo? – Belísar retrucou. – E que punição é essa? Lutar sozinha contra todos os monstros que encontrar até a morte? Olha o seu estado.

– Estou assim porque lutei para proteger inocentes, que é o que sempre fiz.

– Ah, claro. Seria por isso que temos centenas de novas sepulturas de inocentes na praia da Galena? Sem contar as milhares de outras, que terão que ser erguidas aqui?

– Não lhe devo satisfações. De qualquer forma, se o que queria era se ver livre de mim, foi feita a sua vontade. Não tenho mais deveres neste local. Aqueles que conseguimos proteger foram transportados para a cidade que chamam de Mercília.

Dizendo aquilo, ela cruzou as mãos sobre o próprio peito e foi se tornando transparente até desaparecer.

– Já vai tarde – disse Belísar, por entre os dentes, antes de se virar para Sulana.

Ainda de joelhos, ela estava com expressão de quem havia acabado de receber um duro golpe. Seus olhos estavam secos, mas desolados. Ele estendeu-lhe a mão.

– O que quer comigo? – ela perguntou, desconfiada.

– Gostaria de ajuda-la no que eu puder.

– Por que não vai procurar por mais monstros para matar?

– Porque não há mais nenhum. Você venceu. Pode relaxar agora.

– Por que deveria confiar em você? Por que você confiaria em mim? Por que qualquer pessoa confiaria em mim? Você sabe de onde eu venho, não sabe?

– Não me importa de onde venha ou o que lhe fizeram. Tudo o que me importa é o fato de que, sempre que a encontro, está lutando para proteger alguém. Prometo que está segura. A partir de agora, se você me permitir, eu é quem gostaria de proteger a você.

— Fim do capítulo 10 —
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