Carmim – Capítulo 12

Publicado em 08/06/2018
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12. Trauma

Marcelius abriu os olhos devagar, percebendo que mais um dia havia chegado ao fim. A tenda estava iluminada apenas pela luz suave e alaranjada que vinha do pequeno cristal pendurado na haste de sustentação. Ele virou a cabeça e encarou o rosto adormecido de Sulana.

Naquela face não havia suavidade ou meiguice. Ela não era bonita, pelo menos não no sentido tradicional da palavra. O que ele via ali era força, coragem e determinação, com um toque de mistério. Surpreso, percebeu que aquela combinação lhe era muito atraente e lhe provocava sentimentos com uma intensidade nunca sentida antes, por qualquer outra mulher.

Desde criança, ele ouvira dizer que homens conquistavam mulheres demonstrando força, mostrando que eram capazes de protege-las. Apesar do conceito de “sexo frágil” ter sido abandonado na cultura do império há muito tempo, o ideal romântico havia persistido. Hoje, mulheres podiam muito bem cuidar de si próprias, mas a natureza humana ainda estava presente, mesmo que de forma inconsciente.

Mas Sulana era diferente. Talvez todos do povo dela fossem. Guerreiros natos, com instintos assassinos muito bem desenvolvidos, que não apenas se destacavam em batalha: eles a apreciavam, até mesmo precisavam dela. Olhando para aqueles olhos, agora fechados, imaginou quantas vezes antes eles já haviam chegado a derramar lágrimas. Poucas, provavelmente.

Então ela havia mesmo morrido naquele dia? Vendo esse rosto e esse corpo, tão cheios de força e vitalidade, era difícil aceitar que aquilo fosse verdade. E, a julgar pelo tamanho do trauma que ela demonstrou ao recuperar a memória, deveria ter sido uma experiência horrível.

Ela havia passado, praticamente, a noite toda agarrada a ele, como se Marcelius fosse sua única tábua de salvação. Os violentos tremores persistiram por horas a fio, durante as quais ela permaneceu quieta, com os olhos vidrados e aparentemente incapaz de falar ou fazer qualquer coisa além de débeis gestos de afirmação ou negação com a cabeça.

O sol já havia nascido quando, exausta, ela finalmente pegou no sono. Marcelius continuou ali a abraçando e mudando ocasionalmente de posição quando um braço se tornava dormente. Então, a ansiedade que ele próprio sentia, devido ao fato de não poder fazer nada para ajudá-la, foi diminuindo aos poucos, até acabar dormindo também. E agora, tantas horas depois, ele havia despertado, faminto e precisando atender ao chamado da natureza.

Desvencilhando-se dela com cuidado, ele se levantou devagar e alongou os músculos, suspirando com certa satisfação. Olhou para as próprias mãos, surpreso, ao perceber que não sentia mais os sintomas de esgotamento. Aparentemente, passar mais de 24 horas ao lado daquela mulher havia feito maravilhas por seu corpo. Nunca havia tido uma recuperação tão rápida antes.

Lançando um último olhar ao rosto adormecido dela, ele se afastou em silêncio e saiu da tenda.

O apetitoso cheiro de carne assada o atraiu até uma fogueira, ao redor da qual diversos homens e mulheres estavam sentados, apreciando seu jantar. Todos se empertigaram ao vê-lo e começaram a se levantar, mas Marcelius balançou a cabeça e fez um gesto para que ficassem à vontade. Falcione se afastou para o lado, abrindo espaço no velho tronco sobre o qual estava sentada.

– Você parece bem.

Ele apenas assentiu, enquanto aceitava um prato que alguém lhe estendeu.

– O que faremos agora? – Falcione perguntou.

– O que quer dizer?

– Tivemos muitas baixas, nossa capacidade de ataque está comprometida. Nem sei se podemos dizer que ainda somos um exército.

Ele mastigou um pouco da comida antes de responder.

– Acho que o mesmo pode ser dito a respeito de nossos inimigos. Essa última batalha foi um golpe fulminante em ambos os lados.

– Mas eles podem trazer quantos aliados quiserem de outros mundos, nós não.

– Você sabe que não é assim que funciona. Pelo menos cinco daqueles amarelos já foram destruídos. Não devem restar muitos mais. Com sorte, talvez nem tenha sobrado mais nenhum. Sem eles, vai ser fácil chegar até a líder.

– Aquela amaldiçoada não vai ficar sentada, esperando.

– Sim, por isso tenho que me apressar.

Ela arregalou os olhos.

– Pretende atacar sozinho?

Ele deu uma olhada para a tenda onde passara as horas mais cheias de ansiedade e preocupação e ao mesmo tempo mais relaxantes de sua vida.

– Não.

Falcione balançou a cabeça, contrariada.

– Escute, eu ainda não sei porque aquela lá não me matou aquele dia e sei também que ela salvou seus filhos, mas… não baixe a guarda.

Marcelius gesticulou para que um dos homens lhe fizesse um outro prato.

– Não pretendo. Não agora, que estamos tão perto de acabar com essa guerra. Concentre-se em distribuir suprimentos e armar os guardas em todas as cidades, a prioridade agora é manter todos em segurança, e longe da frente de combate. Eu gostaria de trazer todos para dentro das muralhas, mas isso é impossível, então tenho que me apressar e destruir aquela maldita antes que ela tenha chance de sugestionar mais inocentes a nos atacar.

Ao receber o segundo prato repleto de carne fumegante, Marcelius se levantou e caminhou de volta para a tenda.

Falcione ficou olhando enquanto ele se afastava, plenamente consciente de que, provavelmente, nunca teria o que tanto desejava.

♦ ♦ ♦

Sulana acordou sentindo o cheiro de assado. Abriu os olhos e viu Marcelius diante dela, iluminado pelo tênue brilho alaranjado do cristal de luz contínua. Ele carregava dois pratos com comida e estendeu um na direção dela.

Subitamente dando-se conta de que estava faminta, ela se sentou e aceitou o prato, jogando um pedaço de carne na boca e mastigando com vontade.

– Tudo bem com você? – Marcelius perguntou, sentando-se no chão de frente para ela.

– Melhor agora – ela respondeu, entre um bocado e outro, fazendo-o sorrir.

– Preciso de sua ajuda.

Ela parou de mastigar e o encarou, sem dizer nada.

– Dos três demônios que infernizavam Ebora, um está morto, graças a você, e outro fugiu. Resta apenas uma, a mais traiçoeira dos três. Precisamos destruí-la, e assim acabar com essa guerra.

Sulana assentiu devagar e voltou a comer. Então, percebeu que estava usando um traje muito parecido com os uniformes do Exército Carmim.

– Minhas roupas?

Ele pareceu incomodado.

– Eu vesti você, não lembra? Achei melhor trocar aquela túnica por algo mais quente e menos… revelador.

Ela tinha uma leve lembrança de algo assim ter acontecido na noite anterior. Então franziu o cenho.

– Reclama da túnica ser reveladora, mas não se incomodou nem um pouco em ver sem ela.

Ele soltou um riso abafado.

– Posso garantir que isso me incomodou sim, e muito. A propósito, a túnica desapareceu depois que a tirei de você.

– Não vou dormir com você.

Aquilo o fez encará-la, com o rosto levemente vermelho e de queixo caído, totalmente sem palavras, por um longo momento.

Ela mastigou mais um pouco da comida, antes de perguntar:

– Não conhece as maldições do clã das montanhas?

Ele balançou a cabeça, ainda incapaz de falar.

– Não podemos ter filhos. E, por causa disso, não temos interesse em envolvimentos amorosos.

Marcelius estava perplexo.

– Mas… como?

Ela deu de ombros.

– A Grande Fênix decidiu que éramos perigosos e que nosso povo não deveria deixar descendentes. Eu fui uma das últimas crianças concebidas antes da maldição.

– Puxa, não sei o que dizer. Sinto muito.

– Isso não me preocupa.

– Mas as pessoas normalmente anseiam em terem filhos.

– Eu não. A propósito, foi um protetor chamado Derione quem me deu aquela túnica, era ela que me trazia para cá e me levava de volta. Suponho que agora estou presa aqui. – Ela balançou a cabeça. – De qualquer forma, Derione queria que eu me encontrasse com você, ele achava que você poderia me ajudar, não a ter filhos, mas pelo menos a me interessar por… você sabe.

Dessa vez, ele arregalou os olhos. O prato escorregou da mão dele e caiu sobre a areia. Ela o encarou, surpresa.

– Não posso ajudar!

Dizendo aquilo, ele se levantou e saiu da tenda, parecendo abalado.

♦ ♦ ♦

Sulana o encontrou um bom tempo depois, em uma parte remota da praia, sentado sobre um rochedo. A fraca luz da lua minguante não permitia ver mais do que sua silhueta.

– Me desculpe – disse ele, sem nem mesmo se virar na direção dela.

Franzindo o cenho, ela se aproximou e sentou na rocha ao lado dele.

– Pelo quê?

– Por pedir sua ajuda.

– Como assim?

– Não sei o que me deu, mas eu estava tão ansioso para resolver o meu problema que por um instante havia me esquecido de tudo pelo que você passou. Quero dizer… sua experiência me pareceu tão traumática…

Ela olhou para o branco da espuma das ondas, que se chocavam contra as pedras.

– Estou bem, agora.

– Você passou uma noite inteira tremendo e praticamente sem conseguir falar. O curandeiro achou que poderia estar ferida na cabeça.

– Não fui ferida. O tal “desígnio” me permite usar o poder máximo da febre da batalha, então não tive muitos problemas para me proteger.

– Não é esse o mesmo poder que usou para salvar meus filhos?

– Sim.

Ele balançou a cabeça e deu um arremedo de sorriso.

– Não entendo. Não foi por causa disso que você ficou tão abalada ontem?

Um leve tremor passou pelo corpo dela.

– Sim. Me lembrar de ver a mim mesma lutando até a morte daquela forma foi perturbador, mas já superei. Além disso, agora eu posso fazer uso desse poder sem perder o controle.

– Até onde fiquei sabendo, você nunca perde o controle.

– Claro que perdi. Várias vezes. E aquele dia foi o pior de todos.

Ele sentiu o impulso de passar o braço pelos ombros dela, mas ficou em dúvida se aquela seria uma atitude inteligente.

– Desculpe, não queria…

– Esqueça. Quando as lembranças vieram, era tudo muito forte. Forte demais. Mas agora estou melhor.

– Mas você salvou várias vidas aquele dia, inclusive a dos meus filhos. Por isso acho difícil acreditar que tivesse “perdido o controle”.

– Isso foi puro instinto. Não é como se eu tivesse tido escolha. Mas agora é diferente. Mesmo usando a febre, eu permaneço no controle o tempo todo, e posso usar bem melhor minha força.

– Devo dizer que isso soa um pouco assustador.

Para a surpresa de ambos, ela riu.

– Não acredito que você me fez rir de novo.

Ele sorriu.

– Se serve de consolo, você também me afeta de formas bem… intensas.

Ela ficou séria e voltou a olhar para as ondas, em silêncio.

– Onde você cresceu? – Marcelius perguntou, tentando mudar de assunto. – Pelo que eu sei, a última batalha das montanhas foi há mais de 20 anos. E você fala muito bem. Quero dizer, de vez em quando usa alguns termos que são um pouco incomuns para a maioria das pessoas.

– Eu conheci um sábio durante minha juventude. Ele me ajudou quando eu começava a pensar seriamente em desistir da vida. Acabei aprendendo muita coisa com ele.

– Que bom. Onde está ele hoje?

– Morto. Foi apunhalado no coração por uma amante ciumenta, que não tinha gostado de descobrir que não era a única na vida dele.

– Oh.

– Sabe, já me falaram sobre como as pessoas se sentem quando estão apaixonadas. Eu posso dizer com certeza que não sinto nada disso, mas tem algo diferente em você. Algo que me acalma. Não sei se eu teria conseguido suportar a noite passada se você não estivesse comigo. Me pergunto se a causa é esse tal “desígnio”. Você disse que também o recebeu, não é?

– Eu duvido que essa seja a causa. Desconfio que os protetores gostam de usar o termo “desígnio divino” para descrever qualquer fenômeno sobre o qual não saibam a explicação. Pelo que eu entendi, eles reviveram você, foi isso?

– Aquela mulher disse que Derione sacrificou a própria vida para me trazer de volta.

– Oh. Ele era importante para você?

Ninguém é importante para mim.

Ele ficou em silêncio por um instante.

– Bem, de qualquer forma, minha experiência foi muito diferente da sua, não acho que as coisas tenham alguma relação. Você sente alguma coisa diferente? Quero dizer, você disse que a causa de não sentir certas emoções é devido a uma maldição, e se o que o protetor usou foi algum tipo de intervenção divina, poderia libertar você disso.

– Eu me sinto melhor, mais forte e controlo melhor meus poderes. Fora isso, continua tudo igual.

Ele a encarou, intrigado.

– Você nunca sentiu nada por ninguém? Nada mesmo?

– Não – respondeu ela, tentando imaginar porque aquilo parecia tão importante para ele.

– Então você nunca…?

– Já tentei me aproximar de homens. Até dormi com um, mas não senti nenhum tipo de emoção, desejo ou o que quer que seja.

– Isso deve ser terrível.

Ela deu de ombros.

– Não é algo que me faça falta.

– Eu não posso ajudar você.

– Não quero ajuda. – Ela olhou para ele. – Qual o problema, afinal? Por que se preocupa tanto com isso?

– Eu tentei manipular os sentimentos de uma pessoa uma vez. E o resultado foi um completo desastre. Esse protetor que a mandou para cá… provavelmente conhece minha história. Acho que todos eles conhecem. E provavelmente ele pensa que eu teria coragem de fazer algo como aquilo novamente.

– Não quero que me faça nada.

Os dois então ficaram em silêncio por vários minutos, olhando para as ondas e sentindo a brisa noturna no rosto.

♦ ♦ ♦

Marcelius não sabia bem o porquê, mas sentiu uma súbita necessidade de compartilhar algo que nunca tivera coragem de contar para ninguém. Levantando os olhos para contemplar o céu estrelado, perguntou:

– Já esteve num galpão de corante?

A resposta de Sulana foi imediata:

– Quer dizer, onde fazem aquela tinta vermelha?

– Sim.

– Já ouvi falar.

– Minha família tinha um galpão. Passei muitos anos esmagando insetos para extrair deles aquele corante carmim. Era um produto muito popular, pedidos vinham de todo o império, já que Ebora era a única província com o clima adequado para a produção. E a tinta serve não apenas para tingir roupas, mas também tem aplicações alquímicas e é usada até mesmo como ingrediente para unguentos e poções de cura.

Tendo tanta procura, nada mais natural do que haver também grande oferta. Na minha cidade natal havia dezenas de galpões como o nosso. Com tanta concorrência, os lucros não eram lá muito grandes e tínhamos que nos desdobrar para poder fazer um produto de qualidade e poder competir com os outros galpões, mas meu pai estava convencido de que fazíamos parte de algo maior. Ele dizia que nosso esforço servia para melhorar a vida das pessoas e que aquilo não tinha preço.

Quanto a mim, não tinha interesse em nada daquilo, só queria chegar logo à maioridade para ir embora de lá. Achava que merecia algo melhor do que lidar com aqueles bichos malcheirosos pelo resto da vida.

Então, quando eu tinha 16 anos, vi uma moça caminhar pela rua com um vestido justo e decotado, não exatamente vulgar, mas bem perto disso. Não era comum mulheres se vestirem daquela forma, e por isso ela chamava muita atenção, não apenas pelo efeito provocante do traje, mas também pela qualidade dos tecidos. Era óbvio que ela devia ser muito rica, o que ficava ainda mais evidente pela pequena tropa de servos que a seguia, carregando pacotes e embrulhos de compras. Parecia uma princesa de contos de fadas, linda e rica.

Não posso dizer que me apaixonei por ela, pois na época eu gostava de uma outra garota, que a meus olhos era muito mais bonita. Mas devo dizer que, a nível físico, a achei muito atraente. Nossos olhares se cruzaram e ela deu um sorriso sedutor. Nunca vou me esquecer daquele momento. Depois fiquei olhando para as costas dela como um boboca enquanto ela ia embora.

Dias depois meu pai revelou que havia vendido o galpão. Os lucros não estavam sendo suficientes para pagar as dívidas. Podíamos continuar trabalhando ali, já que conhecíamos bem o negócio, mas agora teríamos que seguir as ordens do novo proprietário que, para minha surpresa, se mostrou ser o pai da princesa.

Tempos depois eu viria a descobrir que não foi nenhuma coincidência: ela me achou bonitinho e usou seu charme para descobrir quem eu era e depois para convencer o ricaço do pai dela a comprar nosso galpão, tudo isso apenas para que tivesse chance de se divertir um pouco. E isso era o que ela mais gostava de fazer: se divertir às custas dos outros. Não estava realmente interessada em mim, mas passou a me assediar, me visitando durante o trabalho, lançando olhares, falando coisas de duplo sentido, essas coisas.

Eu estava fascinado. Uma garota linda, provocante e rica era o sonho de qualquer garoto. Teria concordado com qualquer coisa que ela pedisse. Mas então, feliz ou infelizmente, acabei tomando conhecimento de sua verdadeira natureza.

Meu pai contraiu uma febre e precisou ficar acamado. Não podendo fazer isso ele mesmo, me encarregou de levar o dinheiro das negociações da semana para o proprietário. Então peguei a carroça e fui até a mansão. Como já esperavam a visita de alguém do galpão, os guardas do portão nem mesmo se deram ao trabalho de me anunciar e me mandaram ir direto ao escritório onde o proprietário me esperava.

Enquanto percorria aqueles intermináveis corredores, me vi diante de uma cena perturbadora. E descobri diversas coisas sobre a princesa. Primeiro, ela era bem mais velha do que eu pensava. Segundo: ela tinha um filho, que devia ter mais de cinco anos de idade. Terceiro: ela não gostava muito do garoto, pois gritava e batia nele com um cabo de vassoura sem um pingo de piedade. Quarto: ela desprezava os empregados e os tratava como lixo. Quando o mordomo e uma criada se adiantaram para proteger a criança, ela esbravejou uma série de impropérios a eles e garantiu que ainda naquele dia estariam na rua.

Me escondi para não ser visto quando ela saiu, pisando duro, mas de onde estava ainda ouvia as vozes no quarto. O garoto, que não fizera mais do que soltar um ou outro grito de dor enquanto apanhava, chorou copiosamente.

E o choro sentido daquela criança inocente me marcou profundamente.

Outra empregada, que devia ser a babá, apareceu e levou o garoto com ela, deixando o mordomo e a criada conversando sobre o que fariam, e fazendo comentários sobre como a filha do patrão era um ser humano desprezível, da mais baixa categoria, fútil, manipuladora, mimada por um pai que não conseguia negar um desejo seu. Era tão promíscua que ninguém sabia quem era o pai do garoto, provavelmente nem mesmo ela.

Aquilo tudo me encheu de raiva e indignação. Eu tinha que fazer alguma coisa. Saí dali e procurei pelo escritório, finalmente encontrando o pai dela. Então o confrontei, perguntando a ele como podia admitir que uma coisa absurda como aquela acontecesse debaixo do seu teto. O homem pareceu um pouco preocupado com o bem-estar do garoto, mas não o suficiente para perdoar a “insolência de um moleque sujo que mete o nariz na vida dos outros”. Então me expulsou de lá, sem nem mesmo me perguntar quem eu era ou o que estava fazendo dentro da casa dele. Cheguei à conclusão que era melhor assim, se soubesse quem eu era aquele bastardo provavelmente não hesitaria em prejudicar minha família.

Saí de lá inconformado. Queria fazer aquela mimada asquerosa sofrer, para compensar por tudo o que ela fizera. E, na minha ignorância juvenil, só consegui pensar em uma coisa.

Me dirigi à periferia da cidade, um local sujo e fedorento onde ficava a cabana de uma velha que fazia adivinhações e dizia falar com espíritos. A mulher me cobrou um valor absurdo para sequer falar comigo. Penso que ela não acreditava que eu tivesse dinheiro ou algo assim. Então abri a bolsa que eu não havia entregado ao proprietário do galpão e despejei todo o ouro na mão dela. Aquilo pareceu deixar a velha mais do que satisfeita.

Depois que contei a ela o que eu tinha visto na mansão e explicado o que eu queria, ela me disse que me auxiliaria a fazer uma espécie de feitiço. Me pediu para reunir um monte de coisas estranhas e nojentas e fazer uma espécie de oração numa determinada pedra perto do rio.

Confesso que aquilo tudo me pareceu idiota, mas eu estava tão furioso e determinado que, se tivesse uma pequena possibilidade de aquilo funcionar, eu iria em frente, não importando o quão imbecil eu pareceria se alguém me visse falando aquelas frases estúpidas para um rochedo.

Depois voltei para casa, inventando uma desculpa de que tinha sido assaltado no caminho e que os bandidos haviam levado todo o dinheiro. O proprietário acabou descontando todo aquele valor do pagamento que dava a meu pai, o que nos deixou em apuros por alguns dias, com meu pai precisando de um curandeiro e tudo o mais.

Aquilo me deixou ainda mais furioso com a princesa. Para mim, ela era a culpada de tudo aquilo. Estava tão fora de mim que esqueci completamente que fui eu mesmo quem gastei aquele dinheiro.

Ao ver a infeliz passeando tranquilamente pela cidade nos dias seguintes, concluí que aquele feitiço idiota não tinha servido para nada, e aquilo me deixou ainda mais indignado.

Eu queria fazer aquela sacana pagar. Mas tinha que ser algo especial. Ela merecia uma lição bem grande. Ela gostava de brincar com os homens, não é? Seria muito bem feito se ela se apaixonasse perdidamente por um cara que a desprezasse e a fizesse sofrer como um cão.

Aquela ideia foi ganhando força na minha cabeça com o passar dos dias. E se eu encontrasse alguém capaz de seduzir aquela infeliz? Mas não daria certo, não havia garantias de que o cara fosse fazê-la sofrer tanto quanto ela merecia. E se eu mesmo fizesse isso? Só que eu não tinha coragem nem mesmo para me declarar para a garota que eu gostava. Mas… e se alguém me ajudasse?

Então criei coragem e pedi a um conhecido que me ensinasse como conquistar garotas. O rapaz pareceu se divertir com a ideia e topou me ajudar. Nas semanas seguintes nos encontramos várias vezes e ele me ensinou diversas coisas. Me sugeriu o que vestir, como me mover, como sorrir, que tipo de sabão usar no banho e até o que comer. Parecia que absolutamente tudo importava. Também me ensinou várias formas de… satisfazer uma mulher, se é que podemos chamar assim. Existiam vários pós, cremes e coisas do tipo que podiam ser usadas em cada uma das fases da conquista, desde o primeiro encontro até o momento de dormir com a garota.

Para mim, que não fazia ideia de que aquelas coisas existiam, foi como entrar num mundo novo e fascinante. Ele me levou a festas e bares, me incentivando a assediar garotas, dizendo que era importante garantir que eu estava aprendendo tudo direito.

Quando consegui ganhar um beijo de uma moça, senti que aquilo tudo realmente tinha uma chance de dar certo. Então fui mergulhando cada vez mais naquele mundo novo, me aperfeiçoando cada vez mais. Meus progressos foram lentos, mas depois de alguns meses eu… bom, talvez você não esteja interessada em todos os detalhes.

O fato é que, quando finalmente me senti pronto, eu parti para o ataque. A princesa ocasionalmente ainda visitava o galpão, e numa dessas visitas, eu comecei a usar nela a estratégia de sedução que tinha preparado tão cuidadosamente.

A princípio, ela pareceu surpresa com a forma como eu a estava tratando. Depois ficou curiosa. Com o tempo, foi ficando interessada. Ela começou a nos visitar cada vez com mais frequência. Até o dia em que nós… bom, ficamos íntimos. Aí então as coisas começaram a mudar.

Tomei um enorme susto na primeira vez que a vi vestindo um avental e entrando no galpão, disposta a me ajudar naquele trabalho que eu considerava tão nojento. Confesso que me diverti vendo ela tentando trabalhar ali, se sujando e soltando gritinhos toda vez que algum inseto saltava nela. Eu achei aquilo hilário e não consegui conter minhas risadas. A princípio achei que ela fosse ficar furiosa por eu estar me divertindo às suas custas, mas para minha surpresa, ela riu também e no final ambos nos divertimos bastante com aquela situação.

Naquele ponto, tanto tempo já havia passado que minha raiva tinha esfriado bastante. Vendo o óbvio interesse que ela estava tendo por mim, decidi acabar com aquele jogo e terminar com ela, jogando em sua cara tudo o que eu tinha visto e ouvido aquele dia na mansão.

Para minha surpresa, ela não ficou brava ou magoada. Ao invés disso, se mostrou completamente horrorizada. Ela me implorou, entre lágrimas, que não a abandonasse, prometendo que nunca mais faria absolutamente nada que me desagradasse. De joelhos no chão, jurou que nunca mais iria tocar no garoto se não fosse com carinho.

Foi nesse momento que percebi que algo estava errado.

A expressão no rosto dela… Era como se tivesse sentido dor física quando admiti o quanto o choro do garoto tinha me afetado.

Perguntei sobre o que os empregados haviam comentado a respeito dela e, novamente, ela me surpreendeu. Confirmou tudo. Chorando, admitiu que tinha sido uma pessoa horrível e que nunca mais faria nada daquilo de novo. Me implorou repetidamente para que eu não a abandonasse. Era como se a vida dela dependesse de uma resposta afirmativa minha.

Voltei a encontrar o meu “tutor na arte da conquista”, como ele gostava de se definir, e contei o que estava acontecendo. Ele pareceu não ver nada de errado e se mostrou orgulhoso de mim pelo sucesso e de si mesmo por ter me ensinado direito. Por fim, me recomendou continuar tentando agradar a princesa e fazê-la feliz para sempre.

Achando o comportamento dele bastante suspeito, comecei a imaginar o que poderia estar acontecendo. Então me lembrei daquele feitiço idiota e voltei até a cabana da velha. Para minha frustração, a mulher apenas disse que o espírito havia me ouvido e que eu estava recebendo o que havia pedido. Não consegui arrancar mais nada dela.

Nos dias seguintes, eu concluí que poderia fazer, literalmente, o que eu quisesse com a princesa mimada. Ela atendia a qualquer pedido meu. Perguntei-lhe o que faria se eu não a quisesse mais e ela respondeu, com toda seriedade, que sem mim sua vida não valeria mais a pena e que sofreria tanto que apenas a morte lhe traria alívio.

Achei aquela colocação tão bizarra e assustadora que fiquei uma noite sem dormir por causa dela. Eu tinha conseguido. Havia feito com que a infeliz rastejasse aos meus pés. Poderia fazê-la sofrer o quanto eu quisesse. Mas percebi que aquilo não me faria feliz. Eu ainda a odiava, mas ela não era mais uma bastarda arrogante e mimada. Agora ela havia se transformado em outra coisa.

Tinha passado a trabalhar comigo todos os dias no galpão, sem reclamar. Tratava minha família com polidez e respeito, ao invés da condescendência de antes. Tinha se tornado prestativa, se oferecendo a fazer até mesmo a mais humilde das tarefas. Voltou a se reaproximar do filho, de vez em quando até trazia ele para o galpão, ocasiões essas em que ela o tratava com carinho e veneração. E além de tudo aquilo, ela… bem, ela tinha se tornado sedenta por… carinho.

Como alguém poderia querer se vingar de uma pessoa assim? Ela não tinha mais a menor semelhança com a pessoa que era antes. Fazê-la sofrer não fazia mais nenhum sentido. E eu também não podia abandoná-la, ela tiraria a própria vida se eu fizesse isso.

Então nos casamos, e nossa união durou todos esses anos. Adotei Baliorge e depois nasceram Vênega e Sagante. Por mais que eu tenha me esforçado para isso, nunca consegui libertar Zelmira daquele feitiço. Ela nunca mais recobrou sua independência e força de vontade. Até aquele demônio amaldiçoado aparecer e tirar a vida dela.

Após a conclusão do relato, ambos ficaram em silêncio por um longo tempo, até que ela se virou para ele.

– Um parente distante de sua esposa me contou que depois do casamento você começou a ficar obcecado por poder.

– Presumo que isso seja verdade. Eu queria encontrar uma cura, um jeito de libertá-la. Por mais que aquela situação a tivesse transformado em uma pessoa melhor, isso não era relevante, pois ela havia perdido o livre arbítrio. Havia se transformado em uma espécie de escrava. Então eu saí em busca de uma explicação, queria confrontar o tal “espírito” e arrancar explicações dele. Descobri que, para tal, precisava de poder. Então fui até as últimas consequências para consegui-lo.

Marcelius esfregou os olhos. Relembrar tudo aquilo tinha sido demais para ele. Não queria enveredar por outra história dolorosa, pelo menos não agora.

– Para resumir, meu pai, minha mãe e meus irmãos pereceram por causa de minhas ações. Paguei um preço alto demais, mas consegui todo o poder que precisava. Quando finalmente consegui fazer contato, a mensagem que recebi foi que o que está feito não pode mais ser mudado. Que as ações têm consequências. E que eu teria que me virar com elas sozinho. Logo depois disso os demônios vieram e legiões de monstros começaram a atacar a província. Decidindo usar o poder que eu havia conseguido para fazer algo de útil, comecei a combate-los. E isso é o que nos trouxe até aqui.

Ela se virou para ele.

– Você não lamenta a morte dela?

– Sim, porque ela não merecia morrer daquele jeito. Convivemos por tantos anos, tivemos filhos, então não posso dizer que não sentia uma ligação com ela. Mas nunca realmente a amei. Quando me dei conta que estava morta, ao invés de dor, eu senti alívio.

– Não sei se compreendo direito esse tipo de coisa, mas, pelo que entendi, você a fez feliz. É assim que se referem a esse sentimento de realização que o relacionamento supostamente traz, não? Fazer o outro feliz. Você fez isso, mesmo ela sendo uma pessoa que desprezava.

– Sim, mas não há nenhum consolo nisso.

— Fim do capítulo 12 —
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