Carmim – Capítulo 8

Publicado em 05/05/2018
< 7. Sacrifício Sumário 9. Lembranças >

carmim-cap-8t

8. Confronto

O castelo flutuante conhecido como “Refúgio” flutuava sobre as nuvens, sendo banhado pelos raios matinais de sol, que refletiam em suas torres de cristal gerando pequenos arco-íris.

Normalmente o céu ao redor estaria repleto de homens e mulheres alados, chegando, partindo, efetuando treinamento de manobras aéreas ou, simplesmente, se exercitando um pouco. Mas não hoje. Provavelmente estavam todos na praça, esperando por ela. A perspectiva de ver alguém ser humilhado era interessante demais para que perdessem tempo com meras tarefas cotidianas.

Tentando ignorar aquilo, a protetora conhecida como Elinora bateu suas asas com força, tentando ignorar a fraqueza e o desconforto causados pelos inúmeros ferimentos. Quando mais rápido chegasse, mais cedo aquilo terminaria.

Como imaginou, havia uma multidão na praça principal do Refúgio. A um gesto do ancião, os demais se afastaram, abrindo espaço para que ela pousasse.

Sem hesitação, Elinora levantou as asas e deixou-se cair, a descida controlada pelo encanto de levitação do qual sua raça se utilizava para poder voar, uma vez que suas asas eram pequenas demais para suportar o peso de uma pessoa e serviam apenas para controlar a velocidade e a direção, além de fazer manobras. Fortes pontadas de dor a afligiram ao atingir o chão, mas seu orgulho a levava a não demonstrar fraqueza para ninguém.

Não houve gestos de boas-vindas. Não que esperasse por aquilo, mas ela acreditava merecer um pouco mais do que aquelas expressões de desaprovação que podia ver em quase todos os rostos, inclusive no do mais velho deles, de cabelos grisalhos e que se apoiava em um bastão cuja ponta era decorada com uma escultura em cristal de um pássaro com as asas abertas.

Ao lado do ancião, o guerreiro alto e de longos cabelos negros que atendia pelo nome Eliel a saudou com um gesto de cabeça. Era um dos poucos ali que Elinora realmente respeitava.

– Atendendo a seu chamado, aqui estou eu – disse ela ao ancião, com uma leve reverência.

O velho resolveu ir direto ao assunto.

– Tem ciência de que oito dos nossos pereceram na luta contra o demônio?

Ela levantou a cabeça, orgulhosa.

– Sim. Eu fui a única sobrevivente.

– Não há mérito algum nisso, portanto, essa sua atitude é desrespeitosa – disse Eliel, muito sério. – Foi uma insídia reprovável, carecendo de planejamento adequado e com uma execução inepta.

Aquilo feriu-lhe o orgulho.

– O líder dos demônios foi destruído – ela argumentou. – Como resultado, outro desertou, restando apenas uma, a mais inábil entre os três. Nunca sequer poderíamos sonhar com um desfecho tão favorável, mesmo que lançássemos um ataque direto ao covil com todas as nossas forças combinadas!

– Os humanos contiveram as investidas dos infestos durante meses – retrucou Eliel. – Esse seu embuste serviu apenas para enfraquecer a ambos os lados. Nada mudou, a guerra vai continuar e inúmeras outras vidas serão ceifadas.

– Podemos acabar com isso agora! – Ela olhou para o ancião. – Me dê uma unidade. Atacaremos imediatamente e erradicaremos a praga demoníaca deste país.

– Você não está em posição de fazer um pedido como esse – retrucou o ancião. – Olhe o estado em que se encontra. Poderá levar meses para se recompor, não teria proficuidade em nenhuma batalha, muito menos na liderança de um grupo de ataque.

Elinora empalideceu.

– Como pode dizer isso?

Eliel olhou ao redor e falou, elevando a voz para ser ouvido por todos:

– Guerreiros! Aqueles dentre vocês que seguiriam Elinora ao campo de batalha imediatamente, se lhes fosse dada essa escolha, que se manifestem!

O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Subitamente, as pernas de Elinora fraquejaram, não mais suportando seu peso, e ela caiu de joelhos. Alguns fizeram menção de se adiantar para ajudá-la, mas o ancião os impediu com um gesto.

– Todos aqui valorizam sua dedicação e coragem – disse o velho homem. – Mas talvez conceder uma posição de liderança a alguém que tenha vindo à luz por tão pouco tempo tenha sido um grande erro de minha parte. Nossa missão é eterna, e não terminará quando esses demônios forem derrotados. Tantas vezes nosso povo os enfrentou durante nossa história que se torna óbvio que essa é uma ameaça recorrente, parte de um círculo que não temos o poder de romper. Se comprometermos nossas fileiras por causa da batalha de hoje, não haverá mais nenhum de nós para as lutas que amanhã virão. Nove guerreiros pereceram, Elinora. Oito durante a batalha e um devido às consequências dela. Quantos mais seriam necessários para você enxergar a inépcia de suas ações?

– Mas isso é uma guerra! – Elinora exclamou. – Não se vence uma guerra sem sacrifícios!

– No futuro, talvez você venha a entender quando um sacrifício é grande demais para ser tolerado. Hoje, você está abalada e combalida pela luta, e deve descansar.

– Não! Eu ainda posso… – ela tentou se levantar, mas suas pernas, traidoras, não obedeceram a seus comandos.

– Levem-na à Câmara da Alma.

Dois protetores se adiantaram e a tocaram, ativando sua habilidade mística de levitação. Elinora sentiu um grande alívio nos músculos castigados e feridos ao se ver flutuando no ar, mas não podia deixar que as coisas seguissem aquele rumo.

– Esperem! E quanto aos amaldiçoados? Eu preciso destruí-los!

O ancião foi implacável.

– Quando estiver recuperada poderá ter outra chance de lutar. Por ora, concentre-se apenas em restaurar suas energias. E em refletir sobre as atitudes reprováveis que tomou.

Assim, Elinora foi levada à câmara, apesar de seus protestos, no episódio mais humilhante de sua existência.

♦ ♦ ♦

Sulana sentiu alívio ao reconhecer Ronam e mais uma meia dúzia de outros membros da resistência se aproximando pela trilha. Finalmente poderia ter algumas respostas em relação ao que tinha acontecido durante a última missão. Precisava desesperadamente de uma explicação para o fato de não se lembrar de nada do que ocorrera nos últimos dias.

– Ei – cumprimentou ela, se adiantando. – Já era hora de algum de vocês aparecer.

Ao vê-la, Ronam estacou e a olhou de cima a baixo, surpreso. Lura, que vinha ao lado dele também a encarou, espantada. Os outros cinco, que vinham atrás, pararam também e lhe lançaram olhares desconfiados.

– Você parece… bem – concluiu Ronam.

– Estou ótima. Mas por que a surpresa? Aconteceu alguma coisa naquela missão? Não consigo me lembrar de nada.

Ronam e Lura se entreolharam por um momento.

– Você ficou para trás para garantir nossa fuga – disse a professora. – Depois de ver você marchar sozinha na direção de uma tropa tão grande quanto aquela, eu tinha poucas esperanças de um dia poder voltar a conversar com você. Como…?

– Enfrentar uma tropa sozinha parece algo que eu faria – Sulana ponderou. – Mas não consigo me lembrar de nada disso. Esperava que vocês pudessem me explicar o que houve.

♦ ♦ ♦

Momentos depois, estavam caminhando para o sul, em direção ao local que seria o ponto de encontro das tropas da resistência.

– Então Alasdio sobreviveu? – Sulana perguntou.

– Sim – respondeu Ronam. – Mas vai levar um bom tempo até se recuperar.

– Não creio que ele vá querer voltar a lutar pela resistência – disse Lura. – Não podemos culpa-lo por isso. Quero dizer, depois de ser quase retalhado por um monstro como aquele…

– Eu achava que tínhamos perdido três companheiros – disse Ronam, olhando para Sulana. – Ainda bem que resolvemos passar pelo abrigo.

– É, ter você com a gente na próxima batalha será muito bom – concordou Lura.

– Vocês parecem animados – comentou Sulana.

– Claro que sim – disse Ronam. – Soubemos que o General Vermelho foi atacado e está ferido, assim como os tenentes dele. Esta é a nossa chance de tomar de volta algumas das nossas cidades.

– Talvez possamos virar o jogo e finalmente deixar o General em desvantagem – comentou Lura, animada.

Sulana podia sentir aquela excitação também. Mas tinha algo errado. Aquela situação lhe parecia irreal, como se estivesse em uma espécie de sonho. Seria essa sensação causada pelo que quer que fosse que havia roubado suas memórias?

– Vai saber – comentou Ronam, sorrindo para Lura. – Com Sulana do nosso lado, talvez possamos até mesmo derrotar o general e acabar com a guerra.

– Eu duvido – disse Sulana.

Ronam e Lura olhara para ela, espantados.

– Como assim, “duvida”? – Ronam perguntou. – Você é, de longe, a mais forte de todos nós. Se alguém pode enfrentar o homem, é você.

– Não se ele tiver mesmo o poder de uma divindade – disse Sulana, dando de ombros.

– Divindade? – Lura estranhou. – Como assim?

Sulana balançou a cabeça.

– Ah, nada demais. Só lembrei de uma história que o cozinheiro do abrigo me contou.

As palavras do velho Riodes lhe voltaram à mente, com incrível clareza.

Depois do casamento, Marcelius Belísar revelou sua verdadeira face: a de um homem ambicioso e faminto por poder. Viajou pelo continente à procura de encantamentos e poções, começou a cultivar todo tipo de ervas venenosas, construiu um enorme laboratório, gastou quase toda a fortuna da esposa com isso. Chamava sábios para ajuda-lo, mas depois frustrava-se com eles e os mandava embora.

Certo dia ouviu falar de uma entidade que havia se manifestado em uma floresta no centro da província e foi para lá. Depois de gastar até sua última moeda, ele conseguiu fazer contato com o ser. Então, usando todas as poções e encantamentos que tinha aprendido, derrotou a entidade e tentou assumir o lugar dela. Esse foi seu pior erro: é impossível um humano assumir uma posição divina. Mesmo tendo conseguido roubar alguns dos poderes da entidade, ele foi violentamente banido de lá e amaldiçoado a viver em um certo local, ao qual precisa voltar periodicamente para restabelecer suas energias e não enlouquecer.

Não satisfeito com o enorme poder que tinha conseguido, ele criou artefatos para ajudar a ampliá-lo ainda mais. Mas nunca conseguiu se livrar da maldição.

Quando o império foi dissolvido e o conselheiro imperial Raduar tentou assumir o comando da província, ele o desafiou. O conselheiro aceitou o desafio, mas Belísar usou de truques sujos e trapaças para derrota-lo. Raduar conseguiu fugir, prometendo que nunca deixaria alguém tão perverso assumir o comando de sua gente. Então, quando as pessoas começaram a aceitar Belísar como o novo governante, o conselheiro fundou a resistência, e aí a guerra teve início.

Como pode ver, o General Vermelho vai até as últimas consequências para conseguir poder, não tendo nenhuma hesitação em vender a própria alma, se isso lhe for útil.

Seus poderes são variados, mas a maioria deles se baseia em eletricidade. Pode voar e conjurar relâmpagos com a mesma facilidade com que um soldado brande uma espada.

Sulana não tinha certeza se tudo aquilo tinha algum fundo de verdade, pois o Marcelius Belísar que ela conheceu naquela manhã não lhe parecera nem um pouco com a pessoa egoísta e faminta por poder que Riodes descrevera. Ela ainda tinha dificuldade em aceitar que tinha passado tantas horas ao lado dele naquela praia. Aquilo era completamente impossível, não era? Tinha que ser um sonho, uma ilusão ou algo do tipo.

De qualquer forma, ela decidiu compartilhar a conversa que tivera com o velho cozinheiro com os rebeldes.

Ronam recebeu aquilo com ceticismo.

– Essa história parece um pouco exagerada, mas até que explica algumas coisas – disse ele. – O homem realmente tem poderes que não são normais.

– É – concordou Lura. – Controlar mentes, por exemplo. Nenhum ser humano tem esse tipo de poder. Apenas uma entidade divina poderia conceder um dom como esse.

Sulana tentou imaginar como seria ter sua vontade dominada por outra pessoa. Então pensou naquela excitação que sentia, que parecia ser compartilhada por todos os outros rebeldes, aquela vontade de ir para o combate e subjugar o inimigo. Seria o controle da mente algo assim? Ter uma vontade dentro de si o empurrando a fazer algo?

– De qualquer forma, eu nunca tinha ouvido essa história antes – disse Ronam. – Tem certeza que não é só uma invenção?

– Ele diz que era amigo da família da esposa do general – respondeu Sulana.

– Muito suspeito isso – opinou Lura. – Eu tomaria cuidado com esse sujeito, se fosse você.

Sulana apenas assentiu.

– Mas a parte de desafiar o conselheiro nós sabemos que é verdade – ponderou Ronam. – Eu fico pensando: por que o general se daria ao trabalho de fazer isso? Quero dizer, se o objetivo dele era poder, ele conseguiu, pois todo mundo sabe que o homem é poderoso pacas. Para que dominar o país? Quero dizer, ele não vai ganhar mais poder fazendo isso.

– Talvez ele só queira ser reverenciado – respondeu Lura, antes de fazer uma expressão irônica. – Ou talvez ele acredite naquela história de que os conselheiros imperiais eram malignos e dividiram o império entre si para que cada um deles pudesse governar uma das províncias.

Ronam riu.

– Os soldados vermelhos gostam de falar isso, bem como as pessoas que têm sua vontade roubada. Garanto que o general os obriga a falar essas coisas para que o povo não o veja como o vilão que é.

– Onde está esse conselheiro Raduar? – Sulana perguntou. – Quero dizer, ele é o líder da resistência, não é? Algum de vocês já o viu?

– Não – respondeu Ronam. – Ele se mantém oculto, o que é compreensível. Afinal, se Belísar conseguir descobrir o esconderijo dele, seria o nosso fim.

– Sabemos que ele foi seriamente ferido na batalha contra o General Vermelho – disse Lura. – É possível que não tenha se recuperado completamente ainda.

Sulana pensou consigo mesma que, se um ferimento não se curava depois de quase um ano, provavelmente não se curaria nunca mais.

– Você está diferente – comentou Ronam, olhando para Sulana com atenção. – Parece mais calma, mais tranquila, menos…

– Assustadora – sugeriu Lura, com um sorriso.

Sulana deu de ombros.

– Eu me sinto um pouco diferente. Mas não acho que tenha nada errado ou fora do lugar.

– Vamos falar com um curandeiro – sugeriu Lura. – Eu não percebi nenhuma anomalia, mas nunca se sabe.

– Não se preocupem comigo. No momento, tudo o que eu preciso é esmagar alguns crânios.

O tom leve que Sulana usou sugeria que não estava falando sério, mas isso não impediu que Ronam e Lura sentissem arrepios na espinha ao ouvir aquilo.

♦ ♦ ♦

Aparentemente, toda a resistência estava reunida ali. Sulana nunca tinha lutado ao lado de grupos muito grandes, a maior força que ela se lembrava não passava de umas poucas centenas de pessoas. No entanto, ali havia milhares delas.

A recepção que eles tiveram não foi das melhores. Ninguém os cumprimentou. Na verdade, todos viravam o rosto, evitando cruzar olhares com eles, especialmente com Sulana.

– O que está havendo? – Lura cochichou.

– Estão com medo de mim – concluiu Sulana.

– É o que parece – Ronam concordou. – Se ao menos Giarle estivesse aqui…

– Eu não reconheço ninguém – comentou Lura, olhando para Ronam – E quanto a você?

Ele apenas sacudiu a cabeça.

– Ah, vocês chegaram – disse uma mulher grandalhona e mal-encarada, se aproximando deles e colocando as mãos na cintura. – São do antigo grupo de Giarle, não é?

– Sim – confirmou Ronam.

A mulher avaliou Sulana por um momento e assentiu.

– Podem me chamar de Iraele.

– Ah, então foi você quem comandou a resistência na batalha de Fragata – concluiu Ronam.

– Isso mesmo. E aquela vitória não será nem de longe tão grandiosa quanto a de amanhã – a mulher voltou a se concentrar em Sulana. – E, para isso, precisamos de toda a ajuda possível.

Iraele passou para eles um resumo do plano de ataque, bem como do que era esperado de cada um deles.

O plano parecia simples: iriam utilizar um encanto místico para mandar pelos ares uma parte de uma das muralhas e invadiriam o território do Exército Vermelho. Tomariam a cidade de Laguna e estabeleceriam ali a nova base da resistência, a partir dali avançariam para as cidades ao norte, nordeste e leste.

– Estou curiosa com esse encanto – disse Lura, excitada, depois que a grandalhona se afastou para cuidar de outros afazeres. – O que será que vão usar? Ouvi dizer que temos aliados capazes de conjurar elementais de fogo. Queria muito ver um deles em ação.

Ronam sorriu ao ver a animação da outra. Pensativa, Sulana pegou um tufax de sua mochila e deu uma mordida, antes de franzir o cenho e comentar:

– Eu não sou inteligente, então não entendo direito essas coisas. Mas para que derrubar o muro? Já entramos lá uma vez saltando por cima dele, então para que gastar energia com isso? Quero dizer, não temos cavalos e nem carroças de guerra, só um bando de gente andando a pé.

Lura e Ronam olharam para ela, arregalando os olhos, como se nenhum deles tivesse pensado naquilo até agora.

– Hã… imagino que a derrubada do muro facilite uma possível retirada estratégica – ponderou Lura.

– E lembre-se de que quem escalou o muro foi você – completou Ronam, com um sorriso. Nós só conseguimos porque usamos escadas.

Sulana achou desnecessário comentar que estavam no meio de uma floresta e que a confecção de um objeto simples como uma escada, se feita direito, consumiria bem menos energia do que lançar uma bola de fogo.

No momento de montar o acampamento para passar a noite, mais uma vez, se sentiram como estranhos no ninho. Disseram que haviam reservado um espaço especial para eles, mas ficava bastante evidente que, na verdade, ninguém queria ficar por perto deles.

– Não precisam se isolar aqui por minha causa – disse Sulana. – Esse pessoal não tem nada contra vocês, a bronca deles é comigo.

Tendo convivido com o ódio e a desconfiança das pessoas desde que se conhecera por gente, Sulana já deixara de se importar com aquele tipo de tratamento há muito tempo.

– Somos da mesma unidade – respondem Ronam. – Quando tratam um de nós desse jeito, na verdade estão tratando assim a todos nós.

Os outros rebeldes que vieram com deles concordaram com Ronam, sem nem mesmo hesitar. Sulana franziu o cenho, pois sabia que aqueles cinco também não gostavam dela e já a haviam tratado com reservas em ocasiões anteriores.

A noite acabou sendo tranquila, com cada um dos oito se revezando em turnos de vigilância. A manhã logo chegou, gloriosa, com um céu limpo que prometia um dia bonito e ensolarado.

Foi com um grande sentimento de antecipação que todos se alimentaram e levantaram acampamento, partindo para a batalha.

– Quer que eu leve isso para você? – Ronam perguntou, apontando para a mochila que Sulana colocava nas costas.

– Por quê?

Ele franziu o cenho.

– Você sempre me disse que luta melhor sem peso extra.

Sulana deu alguns puxões na mochila, sentindo o seu peso e concluindo que era irrelevante.

– Isso não vai me atrapalhar.

– Você está mesmo diferente hoje. Normalmente até o peso das roupas a incomoda.

Aquele comentário fez com que os outros rebeldes que estavam por perto se entreolhassem e levassem a mão ao rosto para esconder as expressões de surpresa e os risinhos irônicos.

Ignorando-os, Sulana ficou em silêncio, pensativa. Era verdade que estava se sentindo bem mais cheia de energia do que de costume. Seu corpo estava leve, seus movimentos, precisos, os músculos desejosos de esforço, de ação. Se tivesse que passar o dia no abrigo, com certeza iniciaria uma nova escultura de madeira. Talvez aquilo ainda fosse efeito da euforia provocada pela batalha que diziam que ela tinha participado e da qual não se lembrava. De qualquer forma, não adiantava ficar pensando naquilo agora.

Algum tempo depois, os companheiros de Sulana foram obrigados a admitir que, em uma coisa, ela tinha acertado com bastante precisão: derrubar parte da muralha consumiu muita, mas muita energia. Dois grupos de conjuradores ficaram bombardeando as pedras durante vários minutos até se darem por satisfeitos e acionarem um outro dispositivo místico que emitiu um brilho rápido e se desmaterializou no ar. Depois daquilo os conjuradores voltaram a soltar bolas de fogo e relâmpagos até que a parede pareceu mudar de cor e cedeu, as pedras desabando como um castelo de cartas.

– Vamos em frente! – Iraele gritou, levantando sua espada e marchando na direção do domínio inimigo.

Ronam, Lura e Sulana, que haviam sido destacados para a dianteira do batalhão de vanguarda, foram atrás dela, seguidos pelos demais. Os conjuradores não poderiam participar da batalha, uma vez que tinham ficado quase que completamente exauridos com a derrubada da muralha.

Sulana sentia a animação e o ímpeto, a sede de batalha se formando dentro dela, e não gostou muito daquilo. Não que não fosse uma sensação familiar: sempre havia se sentido daquela forma em todas as batalhas das quais participara ao lado dos rebeldes. Na verdade, até apreciava aquilo. Mas desta vez ela imaginou de onde aquele sentimento vinha. Ela não gostava de lutar, fazia aquilo por necessidade. O impulso, a ânsia, a sede que precisava ser saciada eram sentimentos negativos, que não lhe causavam nenhum tipo de alegria ou prazer. Aquela antecipação pela batalha que surgia quando estava ao lado dos rebeldes era muito diferente.

Seria aquilo reflexo de sua solidão? Estaria realmente vivendo de forma isolada por tempo demais, como Derione gostava de dizer?

E, por que, raios, estava pensando nisso quando estava prestes a entrar em combate? Sacudiu a cabeça, tentando se livrar daqueles pensamentos. Definitivamente, tinha algo muito estranho com ela.

Quando ultrapassaram uma elevação no terreno acidentado, perceberam que estavam sendo esperados. Um contingente enorme de soldados vermelhos estava a postos, bandeiras tão vermelhas quanto os uniformes balançando ao vento.

Iraele fez um gesto para que todos mantivessem posição e pegou uma luneta para estudar os adversários.

Neste momento, Sulana se lembrou do Marcelius Belísar da praia. Da forma amorosa como tratava a esposa e os filhos. Raios, até mesmo aos soldados e servos ele dirigia a palavra com educação e respeito. Nenhuma daquelas pessoas parecia servi-lo contra a vontade, pareciam todos felizes e satisfeitos por estarem lá. Seria aquilo efeito do controle da mente que tanto ouvira falar?

Cedendo a um impulso, que não sabia ao certo de onde vinha, ela se adiantou e simplesmente tirou a luneta nas mãos da comandante. Iraele chegou a fazer cara feia, mas se conteve assim que percebeu quem tivera o atrevimento de lhe tomar o objeto. Então ficou parada, sem saber muito bem o que fazer, enquanto Sulana olhava pela luneta, com atenção.

– Sulana, o que está fazendo? – Ronam exclamou, adiantando-se, enquanto lançava um olhar de desculpas para a comandante.

A resposta dela foi abaixar a luneta e apertá-la até entortar e inutilizar completamente o objeto.

– Por que fez isso? – Iraele exclamou, adiantando-se para pegar a luneta arruinada das mãos dela.

– Mantenham posição – Sulana disse, em voz alta. – Preciso resolver uma coisa.

– Como é que é? – Iraele franziu o cenho. – Sou em quem…

Sulana virou-se e a encarou com os olhos brilhando naquele tom avermelhado característico de quando estava prestes a entrar em fúria. Todos os rebeldes, incluindo Ronam, Lura e a comandante, deram um passo para trás, intimidados.

– Aquele que sair de formação irá se ver comigo! – Sulana exclamou, para ninguém em particular, antes de se virar e marchar, determinada, na direção do inimigo.

– O que ela está fazendo? – Lura sussurrou.

– Não sei – disse Ronam. – Nunca a vi agir dessa forma antes. Ela nunca toma atitudes imprudentes durante uma batalha, muito menos intimida pessoas… Olha! Parece que alguns dos soldados vermelhos estão se adiantando também, indo na direção dela.

– Isso é um ultraje – disse Iraele, apertando os punhos. – Se acabarmos perdendo essa batalha por causa dela, eu…

– Vamos ver o que acontece – disse Ronam, em tom conciliador. – Talvez ela tenha um plano.

Ao perceber que alguns soldados vermelhos vinham a galope em sua direção, Sulana parou e esperou que a alcançassem, enquanto avaliava mais uma vez o exército inimigo. Haviam muitos deles. A força rebelde estaria em grande desvantagem naquela batalha.

Os cavaleiros de uniforme vermelho pararam de repente quando estavam a uma distância de cerca de dez passos. Enquanto quatro deles se entreolhavam, parecendo apreensivos, o quinto desmontou e correu na direção dela, arrancando o elmo da cabeça. Aqueles cabelos curtos e espetados eram inconfundíveis.

– Sulana! – Exclamou ele, parando à sua frente, esbaforido. – Você está viva!

– Resolveu se unir aos inimigos agora, Giarle Miliens?

— Fim do capítulo 8 —
< 7. Sacrifício Sumário 9. Lembranças >