Carmim – Capítulo 3

Publicado em 02/06/2019
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3. Sonho

Do topo do muro da cidade de Revoada, Belísar observa atentamente a batalha que se desenrola no terreno acidentado das redondezas, onde os soldados carmim combatem bravamente os invasores.

Monstros. Hordas e mais hordas de monstros, pertencentes a uma espécie estranha. São extremamente ferozes e agressivos, e têm aparência similar à de cães ou raposas, mas com pelagem de coloração peculiar, num tom marrom esverdeado. Apresentam sinais de inteligência e atacam em bandos, suas garras e dentes afiados sendo mortais para qualquer pessoa que não esteja devidamente preparada. Alguns deles têm poderes místicos, podendo curar seus aliados, aumentar sua força e, em alguns casos, até mesmo realizar conjurações ofensivas, geralmente envolvendo fogo ou gelo.

Não sangram e nem morrem. Quando recebem dano suficiente, simplesmente se dissolvem em uma pilha de cinzas.

Identificando um grupo de soldados em desvantagem contra um bando particularmente perigoso de monstros, Belísar ativa seus estabilizadores e dispara rajadas elétricas de longo alcance, aniquilando a maior parte do bando de invasores que desaparece quase imediatamente, deixando em seu lugar apenas uma nuvem de pó esbranquiçado.

Os soldados não têm problemas em dar conta dos que sobreviveram à rajada e fazem gestos rápidos de agradecimento em sua direção antes de correrem para enfrentar uma nova leva de criaturas.

Satisfeito, Belísar constata que está conseguindo controlar seus poderes de forma consideravelmente mais eficiente. Seus esforços para se aperfeiçoar estão dando bons frutos. No entanto, ainda há um longo caminho a percorrer até poder se livrar definitivamente do peso daqueles braceletes, ombreiras e tornozeleiras.

Na planície, o embate prossegue. Várias centenas de soldados estão espalhados, combatendo os monstros que tentam chegar à cidade por todas as direções.

Belísar olha de um lado para o outro e percebe que suas tropas estão conseguindo controlar a batalha. Aliviado ao concluir que ninguém mais precisa de sua ajuda, ele desativa o poder do bracelete e solta um suspiro.

Isto é bem pior do que antecipamos. Os soldados estão se saindo muito bem por enquanto, mas poderemos precisar de reforços para depois.

Então ele desvia o olhar para o pequeno grupo de rebeldes que havia se juntado à luta.

Até que estão se mostrando úteis. Ela, pelo menos.

Belísar pode avistar a mulher se movendo pelo campo de batalha como um borrão em meio à nuvem de cinzas gerada pelas criaturas que ela destrói sem piedade. Ela é rápida, muito rápida. Tanto que é quase impossível identificá-la daquela distância.

Levantando um dos punhos, ele ativa outro de seus poderes eletromagnéticos.

Sua visão fica desfocada por um momento, mas aos poucos aquilo dá lugar a imagens nítidas e claras, como se ele estivesse em meio ao combate. Até mesmo os sons e os cheiros chegam até ele através do encantamento, o que sempre deixa seus sentidos um pouco confusos até se acostumarem com tantos estímulos.

A primeira imagem que ele consegue avistar com clareza é da mulher agarrando e jogando para longe a criatura que combatia e correr com inacreditável velocidade na direção do amigo em apuros, agarrando o monstro que o atacava no ar, em pleno bote. Em seguida ela gira o corpo e arremessa a criatura para longe, mas nesse momento um outro monstro salta sobre ela.

Ao ver a criatura abocanhar o pulso da mulher, Belísar franze o cenho e aperta os dentes de forma instintiva. Um filete de sangue imediatamente começa a escorrer, indicando que o escudo corporal dela, apesar de incrivelmente forte, não foi suficiente para protegê-la dessa vez.

Aquilo deveria estar causando um inferno de dor.

No entanto, ela não parece sentir nada. E o que faz a seguir é ainda mais impressionante. Com o outro punho, ela golpeia o monstro, atingindo-lhe a cabeça com força suficiente para esmagá-la contra seu outro braço. A criatura não tem tempo de emitir nenhum som, antes de se desintegrar, numa pequena nuvem de pó branco.

Então ela olha para o próprio braço, cujo ferimento tinha ficado muito mais grave devido à força com que ela tinha prensado os dentes da fera contra si. O sangue escorria, abundante, em meio ao pó que cobria não só o braço como também boa parte do resto do corpo dela.

Nesse momento um dos companheiros dela lhe chama a atenção. Ela se vira na direção dele e ele rapidamente envolve o punho sujo e ferido dela com um pedaço de tecido embebido em alguma coisa.

Ela mal espera ele terminar de amarrar o curativo improvisado antes de sair correndo para atacar sua próxima vítima.

– Caramba! – O rebelde de cabelos castanhos estava de olhos arregalados. – Eu tinha ouvido falar sobre a forma com que ela luta, mas sempre achei que estavam exagerando!

– Ela é incrível, não é? – O oriental tinha um sorriso satisfeito no rosto, parecendo orgulhoso.

A mulher usa punhos e cotovelos para transformar mais dois monstros em pó, antes de dar uma olhada na direção de seus companheiros. Aparentemente decidindo que não tinha mais nenhuma ameaça ali, ela se vira e dispara na direção de um grupo mais afastado de soldados que combatia outra leva de criaturas.

– Vamos lá ajudar – disse o oriental.

Por um momento, Belísar imagina se a presença daqueles dois mais ajudava ou atrapalhava, uma vez que a mulher precisava ficar constantemente os protegendo.

– Aqueles olhos dela, cara… – falou o de cabelos castanhos, ainda boquiaberto.

– O que tem?

– Não te dão medo?

O sorriso do oriental aumentou.

– Se você não for idiota o suficiente para tentar fazer um ataque contra ela, não tem perigo nenhum, muito pelo contrário, ela vai atacar qualquer coisa que tente fazer mal a você.

– Ela parece, sei lá, um animal descontrolado.

– Mas está muito longe disso.

Neste momento, Belísar sente uma presença se aproximando e desativa seu poder, antes de encarar a recém-chegada.

– Recobrando as forças? – Falcione pergunta, olhando para ele com uma pequena ruga de preocupação na testa.

Belísar faz um gesto na direção da batalha.

– É o último grupo. Nosso pessoal está se saindo muito bem, não precisam mais da minha ajuda.

Ela assentiu devagar, avaliando a aparência dele com cuidado antes de se virar para a batalha.

– Viu o jeito que aquela rebelde luta?

Belísar olha naquela direção também, mas a ação está longe demais para que possa ver ou ouvir qualquer coisa sem o uso de seus poderes.

– Sim. Ela é uma força considerável em combate.

– Aquela mulher é a arma secreta dos terroristas, responsável pela morte de centenas de nossos soldados – a voz dela sai dura, perigosa.

Ele franze o cenho, surpreso com a informação.

– Tem certeza disso? Ela não parece nem um pouco relutante em lutar ao lado dos nossos – diz ele, enquanto volta a ativar o artefato em seu pulso.

A imagem da rebelde lutando ao lado de dois soldados chega até seus olhos, limpa e clara, como se ele estivesse lá. Os três se moviam como um time, um cobrindo o outro, mas era evidente que a rebelde era a mais perigosa de todos. A qualquer abertura que os oponentes dessem, ela desferia um golpe fulminante, geralmente mortal.

– Isso é mero instinto de sobrevivência – replicou ela, sua voz suplantando os ruídos da batalha que Belísar captava através do artefato em seu pulso. – O que ela está fazendo lá, afinal? O senhor autorizou isso?

– Não exatamente. Quando foi dado o alarme, ela e os companheiros simplesmente correram para fora dos portões. Eu decidi não mandar ninguém atrás deles, em razão da batalha iminente. Estou tão surpreso quanto você por ela ter se juntado ao combate.

– Isso não vai acabar bem – a voz dela volta a endurecer. – Olhe para os olhos dela, para a postura corporal. Está completamente tomada pela febre da batalha. Imagino o que fará quando não houver mais monstros para derrubar.

Belísar volta a franzir o cenho.

– “Febre da batalha”? Está dizendo que ela veio daquele clã das montanhas?

– Sim.

– Como pode ter tanta certeza?

– Porque eu os conheço muito bem. Lembre-se de que fui eu quem matou os últimos deles. Ou, pelo menos, pensei que tinha matado. Pelo visto, uma sobreviveu. Temos que pará-la! Agora!

Ele observa a batalha atentamente por um instante, antes de responder:

– Não.

– Hã? Como não?! Nossos soldados estão em perigo perto dela!

– Eu confio em você, mas tem algo que não se encaixa. Olhe, parece que está acabando. Vamos ver o que ela vai fazer.

Falcione sacode a cabeça, descontente, mas tira uma pequena luneta do bolso para olhar a ação à distância. Os dois observam enquanto a rebelde salta sobre uma criatura que se preparava para atingir um dos soldados. Derrubando o monstro no chão, ela desfere nele uma sequência de poderosos golpes até que restasse apenas uma pilha de cinzas.

Então ela se levanta e examina os arredores, obviamente procurando mais algum oponente a ser combatido. Por um momento o olhar dela cruza com o dos soldados, que a encaram apreensivos, sem saber direito o que fazer. Ignorando-os, ela continua a olhar ao redor, até dar uma volta completa em torno de si mesma. Por um momento ela para, parecendo confusa, antes de se voltar na direção dos outros dois rebeldes, que se aproximavam dela, devagar.

– Está tudo bem – disse o oriental, aparentemente tentando acalmá-la. – A luta acabou. – Você foi sensacional, como sempre!

– O que está acontecendo? – Belísar pergunta, surpreso, ao ver a mulher se sentar no chão e abaixar a cabeça, numa postura de meditação.

– Não sei – Falcione responde. – Nunca tinha visto nenhum deles agir assim. Quando tomados pela fúria normalmente não escutam ninguém.

– Talvez o rapaz tenha algum poder sobre ela.

– É impossível controlar essa gente. Acredite, eu sei do que estou falando.

– Me parece que ela está se acalmando, o ritmo da respiração está diferente.

Falcione não responde, se limitando a continuar observando a cena, como se esperasse que a rebelde tivesse um surto assassino a qualquer momento.

Belísar volta a desativar seus poderes e abaixa o braço.

– Fique de olho nela. Vou reunir as tropas.

– Devíamos é aproveitar essa chance e nos livrar desse problema de uma vez por todas – responde Falcione, com uma voz cortante. Ela realmente parecia muito preocupada.

– Acha que devemos prendê-la?

– Não é qualquer prisão que consegue segurar alguém como ela.

– Então, o que você quer é terminar sua missão de tantos anos atrás, é isso?

Ela abaixa a luneta e aperta os punhos, enquanto se volta para ele.

– Eles deveriam estar todos mortos! Eu jurei que acabaria com todos ou morreria tentando! – Ela respira fundo, tentando se controlar. – Mas isso não importa agora. O fato é que ela é um perigo em potencial. Deveríamos aproveitar essa oportunidade para nos livrar desse problema de uma vez por todas!

– Ela lutou para ajudar a proteger pessoas!

– Isso não significa nada!

– Para mim significa. – Os dois se encaram por um instante, então ele sacode a cabeça. – Escute, não estou convencido que ela realmente seja um deles, mas, se ela tentar qualquer coisa, você tem carta branca.

Falcione se força a relaxar os punhos.

– Isso é melhor do que nada, eu suponho.

♦ ♦ ♦

Sulana leva vários minutos para voltar a abrir os olhos.

A vontade de voltar ao combate ainda era grande, mas, não sentindo animosidade vinda de lugar nenhum, ela podia sentir o seu controle se fortalecendo cada vez mais.

– Você acordou! – Ronam exclamou, ao seu lado. – Está tudo bem? Pode se levantar?

Ignorando a mão estendida dele, Sulana se põe em pé com agilidade e tenta espanar um pouco do pó de suas roupas. Aquela poeira branca, formada quando os monstros se desintegravam, era difícil de limpar e tinha um cheiro não muito bom, mas ela tinha que admitir que era bem melhor estar coberta com aquilo do que com sangue.

O outro rebelde olhava para ela com desconfiança, mantendo-se longe. Por um momento, Sulana imaginou o que ele faria se soubesse que, se ela realmente quisesse fazer mal a ele, um passo de distância ou trinta não fariam a menor diferença. Então ela levanta a cabeça e olha para as nuvens por um momento, soltando um longo suspiro. Esta batalha tinha sido bastante longa, do jeito que ela gostava, mas agora, o uso intenso de energia mística cobrava seu preço. Parecia que quase toda a força havia sido drenada do seu corpo, que dava a sensação de estar mais pesado a cada segundo que se passava.

– Parece que você está bem – constata Ronam, com um sorriso. – Temos que sair daqui, antes que os vermelhos se lembrem de nós e venham nos prender.

Subitamente, ela se sente observada. Virando-se, ela percebe uma figura em pé a uma certa distância, olhando em sua direção, com um pequeno grupo de soldados atrás. Tratava-se de uma mulher alta, musculosa, de cabeça raspada e tapa-olho, com uma expressão ameaçadora no olhar.

– Vamos para dentro – Sulana responde à pergunta de Ronam, sem desviar os olhos da outra. – Quero saber para onde levaram Giarle.

– Não seria mais prudente aproveitar para fugir? – Ronam perguntou, surpreso. – Podemos descobrir o paradeiro dele mais tarde.

– Esqueça, estão nos vigiando.

Ele olha na direção da cidade e percebe a mulher. Então solta um suspiro, desanimado.

– É… parece que sim. Imagino que seria pedir demais esperar que eles tivessem se esquecido de nós.

– Não estão fazendo menção de se aproximar. Se não vão se colocar no meu caminho, não me importo com eles.

Sulana começa a caminhar na direção da cidade, quando o rebelde de cabelos castanhos a faz se interromper.

– Espere! Vocês estão pensando mesmo em voltar lá para dentro?!

– Se quisessem nos prender, já teriam feito isso – responde ela, seca.

– Mas voltar lá?! Seria como se estivéssemos nos rendendo!

Ela olha ao redor. Havia soldados carmim por toda parte, retornando à cidade após o término da batalha. Todos lançavam olhares na direção deles, alguns desconfiados, outros poucos expressando gratidão, mas a maioria tinha expressões neutras ou curiosas. Lutar ao lado daquelas pessoas havia sido uma experiência estranha. Para dizer o mínimo.

– Quero saber o que vai acontecer agora. Ficar parado aqui não vai resolver nada e não temos como fugir.

– Não, se não tentarmos – teima o rebelde.

– Melhor tentar não arranjar confusão – intervém Ronam. – Tenho dúvidas se o fato de termos ajudado na batalha significa alguma coisa para o general. Além disso, Sulana está ferida. Se tentarmos fugir podemos ser mortos. – Ele se vira para ela. – Falando nisso, como está seu braço?

Ela olha para ele por um momento, confusa, antes de baixar o olhar para o antebraço esquerdo, notando o pedaço de pano ensanguentado amarrado a ele. Com a outra mão, ela toca de leve o local e faz uma careta.

– Ai! Aquelas coisas eram bem mais fortes do que pareciam.

– É, fazia tempo que eu não te via sangrar assim.

Ele se aproxima e desamarra o curativo com cuidado. Aquilo a faz sentir uma fisgada de dor, mas ela tenta não se mover.

– Humm… não está tão mal – constata Ronam.

O outro rebelde ficou ainda mais surpreso.

– Mas como?! Aquela coisa quase arrancou a mão dela fora!

– Besteira – retrucou ela –, mal senti a mordida, meu escudo corporal absorveu quase todo o dano. Além disso, eu me curo rápido.

Ela tentou puxar o braço, mas Ronam a segurou.

– Espere um pouco, deixa eu limpar isso aí direito e colocar um curativo novo.

– Não precisa.

– Não seja teimosa. Você ainda está sentindo dor. Esse curativo vai fazer com que você se cure ainda mais depressa. Se estamos prestes a entrar num lugar cheio de vermelhos, eu preferia que você estivesse em sua melhor forma, o mais rápido possível.

Sulana solta um novo suspiro e aguarda enquanto ele enrola um outro pano malcheiroso em seu braço. Voltando a olhar na direção da cidade, ela percebe que o grupo de soldados continua no mesmo lugar, mas a mulher que a encarava antes não está mais ali. Entre os soldados, duas figuras levemente familiares lançam olhares em sua direção.

– Parece que você conquistou alguns fãs – brincou Ronam ao reconhecer os dois soldados que Sulana havia derrubado dentro da cidade.

– Não acredito que está fazendo piada com isso – disse o outro rebelde. – Sulana encheu aqueles dois de porrada! Eles podem querer dar o troco!

– Eles deveriam é estar gratos a mim – respondeu Ronam. – Se ainda estão vivos, é porque eu não quebrei a fase dos escudos militares deles. Duvido que, sem aquilo, eles tivessem sobrevivido à surra que tomaram.

Sulana abre e fecha sua mão esquerda várias vezes, testando as amarras do novo curativo feito por Ronam, antes de lançar um breve olhar aos soldados. A expressão deles tinha uma mistura de raiva e medo.

– Aqueles dois parecem tão a fim de arranjar confusão quanto nós. Ignorem eles. Vamos.

Ronam riu.

– Isso mesmo! Deixa esses perdedores pra lá.

O outro rebelde fez uma careta.

– Vocês dois vão acabar sendo mortos desse jeito, sabiam?

Ninguém os impede de entrar na cidade, apesar de muitos dos soldados lançarem olhares desconfiados aos três.

– Vejam – disse Ronam –, eles libertaram nossos companheiros!

– Ah, vocês voltaram – disse uma rebelde, correndo na direção deles, com expressão de alívio. – Nos deixaram preocupados, saindo correndo daquele jeito na direção de um ataque de monstros! Pensamos tinham sido todos devorados!

Sulana franziu o cenho.

– Os vermelhos soltaram todo mundo?

– Sim – respondeu a outra. – Parece que Giarle fez um acordo com o general.

– Que tipo de acordo? – Ronam quis saber.

– Ele se entregaria sem luta em troca da vida e liberdade de todos nós.

Sulana e Ronam se entreolham, surpresos.

– Aquele general nunca honraria uma promessa como essa – disse ele. – O homem deve estar tramando alguma coisa.

– Sim – concordou ela –, esse acordo não faz o menor sentido. E quanto aos moradores da cidade?

– Disseram que não vão prender ninguém, desde que não tentem resistir.

Nesse momento, o general entra pelo portão, seguido por seus lacaios, sendo um deles a mulher que tinha encarado Sulana fora dos muros.

O general caminha se aproxima da pequena aglomeração de pessoas com passos decididos.

– Peço a atenção de todos.

As pessoas imediatamente fazem silêncio. Os que estão mais longe tratam de se aproximar para ouvir melhor.

– O perigo não acabou, ainda podem existir outros grupos de monstros pela região. Por isso, recomendo que os portões sejam trancados e que vocês permaneçam em vigília. Estamos partindo para o norte, onde deve estar a abertura por onde essas criaturas vieram. Até que o portal seja destruído, ninguém estará seguro.

Uma onda de murmúrios pode ser ouvida, entre os aldeões.

– Diversos dos meus camaradas estão feridos. Como não estão em condições de lutar, seria melhor que eles ficassem por aqui até voltarmos. Alguém tem algo contra essa ideia?

Um silêncio perplexo toma conta das pessoas. Sulana se pergunta se aquilo é uma pergunta ou uma ameaça de retaliação caso algo aconteça com os soldados feridos.

– Ninguém? Ótimo. Neste caso, estamos partindo. Voltaremos assim que possível.

Sulana percebe que a mulher de tapa-olho voltava a encará-la, parecendo contrariada. Estreitando os olhos, ela encara a fulana por um momento, levantando um pouco a cabeça, em um gesto de desafio.

Se é encrenca o que você quer, é só vir para cima, vadia.

Felizmente (ou não), a outra se vira e sai atrás dos outros, sem dizer nada.

As pessoas parecem respirar aliviadas quando veem o general partir levando a maior parte de sua tropa.

Os soldados vermelhos feridos ficaram em um acampamento improvisado, do lado de dentro dos muros, mas num ponto um pouco mais afastado das casas. Havia uma única curandeira de uniforme carmim cuidando deles. Como o número de pacientes era grande, ela precisou de ajuda, ao que alguns aldeões se voluntariaram. Tendo visto a forma como os soldados vermelhos lutaram contra os monstros, grande parte das pessoas dali os estava enxergando com outros olhos.

– Eu acho impressionante a forma como as pessoas decidem ajudar umas às outras em tempo de necessidade, mesmo quando são supostamente inimigas – diz Ronam.

– Não sei não – responde um rebelde. – Acho que aceitar cuidar desse pessoal pode ser um erro.

– Hostilizar combatentes feridos é perda de tempo – diz Sulana. – Deixe que se recuperem. Será mais gratificante derrubar eles de novo depois.

Sua intenção não era fazer graça, mas todos os rebeldes ao redor riem, divertidos.

Balançando a cabeça, ela se dirige a um grupo de aldeões que consertava a parede de um velho celeiro. Sem falar nada a ninguém, ela pega uma marreta e um formão e começa a trabalhar no alisamento de um tronco que estava por ali, aguardando o acabamento para ser fincado no chão.

Seus amigos se aproximam e começam a ajudar na construção também, realizando diversas tarefas.

– Como os vermelhos chegaram aqui, afinal? – Sulana pergunta, depois de um tempo.

– Eles vieram do chão – respondeu uma rebelde. – Se prestar atenção, vai ver que tem vários buracos espalhados por aí. Parece que todos eles vão dar em um mesmo túnel, que agora está selado.

– Eles levaram Giarle embora e fecharam tudo para não irmos atrás dele – Sulana concluiu.

– Isso mesmo. – A moça solta um suspiro. – Nosso pessoal está confuso, sem saber direito o que fazer. Tem alguns querendo fugir, outros querem chamar nossos reforços para esperar o general voltar e aproveitar que os vermelhos estarão cansados para dar cabo deles.

– Ideia estúpida – retrucou Sulana. – Se o resto do nosso pessoal estivesse disponível, já estariam todos aqui.

– Acha que alguma coisa aconteceu com eles? – Ronam perguntou.

Sulana olhou para ele.

– Quantas pessoas seguem Giarle? Seiscentas? Setecentas? Se juntasse todos os monstros que atacaram Revoada, nosso grupo não daria nem para o cheiro. Se eles sabem o que é bom para eles, devem ter batido em retirada.

– Assim espero – concordou Ronam. – Só vencemos hoje porque os vermelhos estavam em um número bem maior. E eles ainda têm treinamento e equipamentos melhores que os nossos, sem contar que o general em pessoa veio comandando a tropa. Ainda bem que nosso grupo não estava todo aqui, pois não teríamos chance nenhuma de vencê-los.

– E mesmo que a gente vencesse, aqueles monstros fariam picadinho de nós, depois – acrescentou Sulana, por entre os dentes.

Todos se movem, desconfortáveis, com aquela constatação. Ronam olha para ela.

– Sulana, o que você acha que devemos fazer? Esperar aqui ou ir embora?

– Esperar. Se tiver mesmo mais monstros por aí, eu quero acabar com eles. – Não que ela imaginasse que poderia voltar a lutar com a mesma eficácia. Apesar de satisfatória, a batalha tinha sido longa e muito cansativa, e ela estava ferida. – Vamos terminar esta parede, pelo menos.

Com o esforço combinado deles, logo a parede do celeiro estava consertada. O prefeito da cidade agradeceu a ajuda e ofereceu comida a todos. Os rebeldes não pensaram duas vezes antes de aceitar, e assim passaram algumas horas contando histórias e se divertindo. No entanto, a perspectiva da volta do general pairava sobre todos como uma nuvem tempestuosa. O sol já estava quase se pondo quando a tensão começou a ficar insuportável.

Um dos rebeldes encara Ronam com expressão de impaciência.

– Já estamos esperando há o quê? Umas quatro horas? O que garante que os vermelhos não vão acabar prendendo a todos nós?

– Não sei, cara – Ronam respondeu. – Se quisessem, já podiam ter nos prendido, junto com Giarle.

– O que quer que seja que o general quer de nós, já vamos descobrir – diz Sulana, se virando na direção dos portões. – Estão chegando.

No entanto, a volta do Exército Carmim acaba sendo um anticlímax. O general, que parece exausto, faz apenas um breve discurso, sem esclarecer muita coisa.

– A ameaça foi neutralizada – diz Belísar. – A cidade está segura. Soldados, quero que improvisem macas para transportarmos os feridos. Estamos voltando para casa.

E assim, o Exército Carmim parte da mesma forma como chegou: silenciosa e rapidamente, ignorando completamente as perguntas feitas por aldeões ou rebeldes. Entram todos nos tuneis e usam meios místicos para selar as aberturas, de forma que ninguém possa segui-los. Não levam ninguém com eles além de Giarle.

– Não acredito! – Ronam exclama. – Eles simplesmente foram embora!

– Aconteceram tantas coisas absurdas hoje que nem estou me surpreendendo mais – retruca Sulana.

– O que faremos agora?

Ela olha ao redor. Os rebeldes a encaram ansiosos, como se ela fosse capaz de lhes dar qualquer resposta.

– Sem reforços, não tem nada para fazermos aqui – ela diz, querendo acabar logo com aquela conversa. – Se eu fosse vocês, arranjaria algum lugar para dormir e voltaria para casa amanhã cedo. Ficar mais tempo por aqui pode ser perigoso.

– Acho que é o jeito – concorda Ronam. – Mas porque está falando só de nós? Você não vem com a gente?

Sulana olha para uma figura solitária sentada sobre o muro. Uma que ninguém além dela é capaz de ver.

– Eu preciso ir.

Ronam arregala os olhos, surpreso.

– Agora? Mas é perigoso andar sozinha por aí à noite. Eu vou com você.

– Não se preocupe, não vou ficar “andando por aí”. Mas eu realmente tenho que ir. Sozinha. Vejo vocês na próxima missão.

♦ ♦ ♦

Belísar sente as paredes da caverna se fecharem ao seu redor. A sensação claustrofóbica parece ficar pior a cada segundo. Respirando fundo, ele tenta se concentrar nas conversas das pessoas ao seu lado.

– Os geoportais de Revoada já foram dissipados? – Falcione pergunta a uma das oficiais.

– Sim, senhora!

– Alguma possibilidade de os portais terem desestabilizado o subsolo?

– Não, senhora. Quero dizer, não de nenhuma forma perceptível.

Falcione solta um suspiro, tentando reunir paciência.

– O que isso quer dizer? O chão vai ceder? As casas da cidade podem desabar?

– Oh, não, senhora! O que eu quis dizer é que é impossível criar um geoportal que não desestabilize o terreno, mas nesse caso, os danos residuais ficaram muito abaixo das escalas determinadas, conforme…

– Tudo bem, tenente, apenas um “não” é suficiente.

– Sim, senhora! Quer dizer, desculpe, senhora.

– Me traga aqui um oficial capaz de usar um pergaminho ancorado, e avise aos tenentes para manter todos na área de efeito.

– Sim, senhora!

Emelin sai caminhando, apressada, pelas escuras câmaras subterrâneas, que se estendiam por muitos quilômetros em todas as direções. Quase mil soldados carmim estavam espalhados por aqueles túneis, aguardando para retornar para casa.

– O senhor está bem? – Falcione pergunta a Belísar.

Ele levanta a cabeça.

– Pretende mesmo gastar um pergaminho desses por causa disso?

Ela demonstra surpresa.

– Acha mesmo que tenho alguma escolha? Se tivesse, eu nunca concordaria em deixar aquele bando de rebeldes livre!

– Eu posso aguentar algumas horas de caminhada, Falcione.

– O senhor está ferido e suas energias estão esgotadas. Precisamos levá-lo de volta o mais rápido possível.

– Eu usei uma sucessão muito rápida de pulsos, sempre leva algum tempo para eu me recuperar depois disso. Em algumas horas eu estarei bem.

– O senhor salvou a minha vida e a de cada um dos soldados que está aqui! Não quero nem pensar no que aconteceria se aquele portal não fosse destruído antes de mais daquelas aberrações surgirem! E pode ter certeza de que nenhum de nós gostaria de voltar a enfrentar coisas como aquelas sem o senhor do nosso lado. Por causa disso, não queremos arriscar sua saúde. Precisamos sair daqui o mais rápido possível. Além disso, temos muitos feridos em estado grave, que não podem esperar.

– Não quero deixar ninguém para trás.

– E não vamos.

Neste momento, a tenente entra correndo na câmara, esbaforida.

– Estão todos dentro da área de efeito, senhora.

Falcione se vira para ela.

– Encontrou alguém com experiência com esse tipo de pergaminho?

– Desculpe, senhora. Vieram conosco cinco oficiais experientes, mas um deles não sobreviveu, outro está entre a vida e a morte e os outros três estão inconscientes.

– Maldição! Temos alguém que pelo menos saiba usar um pergaminho?

– Acredito que eu seja a única que concluiu esse treinamento.

Falcione olha a tenente de cima a baixo. Aparentemente convencida de que a moça era sua única opção, ela se ajoelha e abre uma bolsa que está no chão e tira de lá um pergaminho enrolado, que estende para a oficial.

– Tome. Nos tire daqui.

Emelin olha para o pergaminho com uma expressão reverente, sem fazer nenhuma menção de pegá-lo.

– O que está esperando? Pegue.

– Eu nunca… nunca segurei nada tão valioso antes…

Belísar pode sentir a irritação de Falcione atingindo seu limite.

– No momento, esse negócio não vale absolutamente nada a menos que alguém seja capaz de ativá-lo! Pode fazer isso ou não?

– Posso, sim senhora!

A moça pega o pergaminho e lança um olhar pesaroso para o general.

– Algum problema, tenente? – Belísar pergunta, intrigado.

– Desculpe, senhor… eu estava só me perguntando… o senhor parece ferido… se ativarmos esse pergaminho… vai mesmo conseguir voltar para casa sozinho?

– Do que você está falando, garota? – Falcione brada, incapaz de conter a fúria na voz.

– É que… como os artefatos de estabilidade peridual neutralizam todos os fluxos transversais… bem, a âncora é basicamente um fluxo transversal, então…

– Como é?! – Falcione agora estava perplexa.

Belísar se adianta.

– Você está dizendo que o pergaminho vai mandar todo mundo de volta, exceto a mim, por causa dos meus estabilizadores?

– Desculpe, senhor… achei que soubesse…

– Isso é fácil de resolver – contrapõe Falcione. – O senhor remove os artefatos e assim o mandamos de volta junto com os outros.

Ele sacode a cabeça.

– Isso é arriscado demais. Estou muito cansado, não há como prever o que vai acontecer se eu tirar os estabilizadores agora. Meus poderes podem sair totalmente de controle.

– Isso ainda é menos arriscado do que manter o senhor longe de casa.

– É tão arriscado quando usar o resto das minhas energias para ir voando.

– O senhor não pode estar falando sério!

Ele fecha os olhos e pensa por um instante. Qualquer uma das opções poderia colocar inocentes em perigo. Tinha que escolher a solução mais rápida, aquela em que o menor número possível de pessoas pudesse se machucar.

Voltando a abrir os olhos ele encara a tenente.

– Está disposta a correr o risco de ficar ao meu lado quando eu tirar esses estabilizadores?

– Claro, senhor – responde a moça, imediatamente, sem nenhuma hesitação, apesar de sua voz soar um pouco mais trêmula do que o normal.

– Falcione, tire todos daqui. Vai ser mais seguro se eu for…

Ele se interrompe, de repente, quando uma figura entra no seu campo de visão. Falcione e Emelin notam o seu olhar surpreso e olham para trás, mas, como ele já esperava, não veem nada.

– O que houve? – Falcione pergunta. – O senhor viu alguma coisa?

Belísar solta um suspiro.

– Acabei de me dar conta de algo. Não se preocupem comigo. Vão para a outra câmara e usem o pergaminho. Eu tenho um assunto para resolver.

– Mas o senhor não está em condições de…

– Falcione, por favor. Isso é sério e eu sei o que estou fazendo. Estarei de volta à capital em breve.

Ela franze o cenho por um instante e então arregala de leve os olhos ao se dar conta do que está acontecendo. Então abre a boca para falar algo, mas desiste ao ver a expressão resoluta no rosto dele. Então solta um suspiro frustrado.

– Entendo. Vamos, tenente.

Emelin lança olhares confusos de Falcione para Belísar, mas obedece, dirigindo-se à abertura na parede que leva à próxima câmara. Com movimentos bruscos, Falcione pega a pesada bolsa de couro do chão e sai também, pisando duro.

Belísar leva a mão à testa e sacode a cabeça para tentar clarear os pensamentos. Está cada vez mais difícil lutar contra a sensação claustrofóbica.

– O que você quer?

A mulher que ele havia avistado antes se aproxima. Tinha cabelos ruivos e usava uma armadura prateada, que brilhava mais do que qualquer metal conhecido.

– Minha missão é erradicar esses demônios.

Belísar lhe dirige um olhar cortante.

– Você sabe muito bem onde fica o covil deles.

– Assim como você.

O nome dela era Elinora. Era membro de um grupo de seres que se intitulavam “os protetores”. Diziam lutar para proteger o equilíbrio e castigar malfeitores, mas a julgar pela arrogância e prepotência com as quais agiam, era difícil acreditar naquilo.

– Não vou mandar meus soldados para a morte certa apenas para atender a um capricho seu.

– Poupe seu fôlego. Olhe para o seu estado. Mal consegue dar conta de fechar um portal dimensional sem se ferir.

– Foram vocês que… – ele se contém, sabendo que discutir com ela era inútil. – Esqueça. O que está fazendo aqui?

– Impedindo que abra uma cratera no meio da província. Você sabe que nunca deve remover os estabilizadores quando está nesse estado.

– Eu não ia abrir cratera nenhuma, eu tinha um plano! Estaria bem longe daqui muito antes de a desestabilização atingir nível crítico.

– Vejo que derrotar alguns monstros aumentou em muito sua confiança. Entretanto, isso não trará nenhuma melhoria em seu controle sobre a força primordial. Não posso permitir que coloque tal ignóbil plano em ação.

– Ah, é? E o que você vai fazer para me impedir? Vai retirar os meus poderes? Por que não faz isso, então? Não é o que você quer? Ficar poderosa o suficiente para poder derrotar os demônios sozinha?

– Vou dizer de novo: poupe seu fôlego. Seus patéticos ataques verbais não me afetam. Agora fique quieto e feche os olhos.

Sentindo-se impotente, ele solta o ar dos pulmões com força e cobre os olhos com uma das mãos. E pergunta-se, pela milionésima vez, quando esse pesadelo em que sua vida se transformou vai terminar.

♦ ♦ ♦

Dessa vez, Derione não deu nenhuma bronca. Simplesmente transportou Sulana de volta para a cabana dela, sem fazer nem mesmo um único comentário.

Ao vê-lo se virar para ir embora, ela o segura pelo ombro.

– Ei, o que é isso? Vai embora assim, sem dizer nada?

Ele a encara por sobre o ombro, parecendo irritado.

– E de que adiantaria eu falar qualquer coisa?

– Se pensa assim, por que foi atrás de mim?

Ele se vira para ela e cruza os braços.

– Só queria tirar você de lá antes que algo ruim acontecesse.

Ao ouvir aquilo, ela arregala os olhos.

– Como assim? A cidade está em perigo? Se for isso, quero que me leve de volta.

Ele a olha de cima a baixo, estreitando os olhos ao ver o curativo improvisado em seu braço.

– Você está exausta. Quanto tempo ficou lutando? Quantos oponentes enfrentou?

– Nem faço ideia.

– Quanto mais cansada, mais suscetível fica a perder o controle. Precisa descansar. E não, a cidade não está em perigo.

Ela solta um suspiro. Esgotada e sem mais nada para dizer, ela lhe dá as costas a ele e começa a caminhar na direção da cabana. Dessa vez ele é quem vai atrás dela e a segura pelo ombro.

– Ei! Espere!

Ela o encara por sobre o ombro, sem dizer nada.

– Eu… só estou preocupado com você, está bem? – Ele balança a cabeça e olha ao redor, como que procurando pelas palavras corretas. – Você continua se envolvendo em batalhas que não deveria lutar. Dessa vez não há sangue em suas mãos, mas essa sua atitude é irresponsável.

– Eu não sirvo para nada além de lutar.

– Isso é um absurdo! Tem dezenas de pessoas que dependem de você. Aquele abrigo não duraria uma semana sem o trabalho que faz lá. Além disso, você tem sua arte…

– Isso não é suficiente!

– O que mais você quer?

– Eu preciso de mais. Preciso de algo que faça eu me sentir… completa.

Ele descruza os braços e a olha com uma expressão terna.

– É aquilo, não é?

Ela desvia o olhar. Sabia ao que ele se referia, mas não tinha a menor ideia de como responder. Depois de procurar, sem sucesso, palavras para expressar o que sentia, ela perde a paciência e o encara com raiva.

– Não sei! Como poderia saber? Como alguém saberia que sente falta de algo que nunca experimentou?

– Existe uma pessoa que pode ajudar você.

Uma sensação desconfortável a envolve e Sulana dá um passo para trás.

– Não preciso de ajuda! Não para isso! Maldição, você mesmo disse na cabana que…

– Estamos falando sobre você! Das suas necessidades.

– Eu não quero falar sobre isso.

– Vou ajudar você, mas só posso mostrar o caminho. Para isso funcionar, terá que caminhar por conta própria.

Sem nada além daquelas palavras misteriosas, ele lhe dá as costas.

– Ei! Eu não concordei com nada… espere! Onde está indo?

Ele se afasta alguns passos e assume o que ela imagina que seja sua verdadeira forma. Sua pele se torna branca como as nuvens e um par de grandes asas emplumadas surgem em suas costas. Seus trajes também se modificam para uma túnica branca simples, que deixa à mostra seus braços, as costas e boa parte das pernas.

Não dá para negar que ele é um exemplar muito atraente do sexo masculino. Por um momento, ela não consegue fazer nada além de olhar para ele.

Então ele abre as asas e começa a flutuar, seu corpo se afastando lentamente do chão como se uma força invisível o puxasse para cima.

– Apenas lembre-se de que a sentença imposta pela Fênix ao seu clã não é a infelicidade – diz ele, em um tom de voz calmo.

Aquelas palavras imediatamente a tiram do transe contemplativo.

– Não, imagina! Lógico que ela não me quer infeliz! Ela me quer é morta!

– Se esse fosse o desejo dela, não estaríamos tendo esta conversa.

Então ele bate as asas com força, projetando-se para cima e ganhando cada vez mais velocidade enquanto se afasta.

Ela o observa por algum tempo até ele desaparecer à distância.

Pelo visto, ele está de bom humor hoje, já que se contentou em apenas chamá-la de “irresponsável” ao invés de ficar ameaçando mandá-la para algum tipo de prisão. Mesmo assim, seria pedir muito que ele falasse como uma pessoa normal, de forma que fosse possível entender o que está dizendo, pra variar? Aquele mistério todo era irritante.

A exaustão que ela sente parece ficar maior a cada segundo. Seus músculos estão levemente doloridos, mas a sensação era boa, muito boa. Fazia tanto tempo que não se soltava daquela forma durante uma batalha que nem mesmo o comportamento enigmático de Derione era capaz de lhe deixar desanimada.

Entrando na cabana, ela trata de se livrar das roupas velhas e se joga sobre o catre, fechando os olhos e imediatamente mergulhando em um sono profundo e reparador.

♦ ♦ ♦

Ao acordar, Sulana se sente muito melhor. Sentando-se, ela alonga os músculos dos braços, sentindo-se viva, cheia de energia. Então, abre os olhos e pisca, confusa.

Ela não está mais em sua cabana. Ao invés disso, a paisagem à sua volta é de uma praia. Está sentada em uma longa faixa de areia que é lavada pelas ondas, que chegam até bem próximo de seus pés. Em toda sua vida, apenas uma vez ela esteve no litoral, há alguns anos, ao norte da província. E, definitivamente, este não é o mesmo lugar. O sol começa a nascer no horizonte, formando um espetáculo multicolorido por sobre as águas.

Sulana se levanta com agilidade. Não há mais nenhum sinal de cansaço em seus músculos. Até mesmo o ferimento no braço parece ter se curado enquanto dormia.

Então ela percebe que está usando roupas estranhas: uma espécie de túnica longa e branca que a cobria do pescoço aos tornozelos, e cujas mangas largas chegavam até seus pulsos. O tecido era fino, macio e confortável. Ela não se lembra de algum dia ter vestido algo de tão boa qualidade. Aproximando um dos pulsos do rosto, ela inspira, sentindo um perfume nem um pouco familiar, mas bastante agradável. Nunca havia se sentido tão… limpa.

Para aumentar ainda mais sua perplexidade, seus cabelos estão amarrados na nuca, numa espécie de coque, algo que também não se lembrava de já ter feito alguma vez em sua vida.

O que é isso? Algum tipo de sonho? Mas por que eu sonharia com algo assim?

Olhando com mais atenção para sua túnica, ela nota que o tecido é tão bem feito que é quase impossível avistar o traçado dos fios.

Espere! Eu já vi esse tipo de pano antes. Derione! Esse é o tipo de roupa que ele usa! Mas por que eu…

Neste momento, um movimento à sua direita chama sua atenção.

A certa distância, há um homem sentado na areia e com as costas apoiadas a uma palmeira. Ele está segurando a ponta do que parece ser uma fina faixa de tecido, que balança ao sabor da brisa.

Ansiosa por algumas respostas, Sulana caminha, determinada, na direção dele.

O estranho usa roupas de boa qualidade, na cor vermelho escuro. Sua camisa não tem mangas, expondo braços fortes, mas não musculosos demais. Seus pulsos estão envolvidos com faixas de tecido similares àquela que ele segura com uma das mãos.

Aquilo são ataduras? Será que está ferido?

Ele está com os olhos fechados e respira devagar. No entanto, aquela posição parece desconfortável demais para alguém conseguir dormir. O sujeito parece estar com trinta e poucos anos, tem o queixo quadrado e maçãs do rosto proeminentes, além de muitas linhas na testa, dando a impressão de que passava muito tempo franzindo o cenho. Os cabelos estão cortados bem curtos e sua cor predominantemente negra parece estar começando a perder terreno para os fios grisalhos.

Então, Sulana para de caminhar, surpresa. Ela conhecia aquele rosto.

Mas, como…?

De repente, o homem abre os olhos e vira a cabeça em sua direção. Ao vê-la, ele estreita os olhos.

– O que foi dessa vez?

Sulana está surpresa demais para sequer se preocupar em tentar entender a pergunta.

– Você é o General Vermelho!

Ele franze o cenho e a encara com atenção, antes de responder, por entre os dentes.

– Sim. Qual é o problema?

Ela cerra os punhos.

O que eu faço? Devo atacar? A guerra termina se ele morrer, e provavelmente todos os rebeldes dominados por ele serão libertados.

Mas, para sua surpresa, seu corpo não parece interessado em se meter em uma briga. Ela não sente nenhum tipo de perigo, nenhuma animosidade, nada que aguce seus sentidos e lhe alimente a fúria. Pela segunda vez, estava diante daquele homem e sem a menor vontade de voar na garganta dele, como pensara em fazer tantas vezes nos últimos meses.

Notando a indecisão dela, ele se levanta e coloca as mãos nos quadris, a ruga em sua testa se aprofundando.

Sulana percebe que ambos tinham quase a mesma altura, a dela excedendo a dele por apenas alguns poucos centímetros. Percebe também que ele não parece nem um pouco intimidado, como a maioria dos homens ficava ao se deparar tão de perto com o porte físico dela pela primeira vez.

De repente, a expressão dele muda, agora parecendo preocupado.

– O que está havendo? Está tudo bem com você?

Ela nota um certo brilho nos olhos dele enquanto a fita de cima a baixo.

Ah, não, por favor, não! Toda vez que um homem me olha assim, eu acabo metida em alguma confusão. E na maioria das vezes, sem contribuição nenhuma da minha parte.

Engolindo em seco, ela tenta imaginar o que fazer a seguir.

Ah, sim, Giarle! Preciso descobrir o que aconteceu com ele!

Ela abre a boca para fazer uma pergunta ao general, mas antes que possa dizer qualquer coisa, ouve o som de conversas, risos e gritos infantis. Ela vira-se a tempo de ver uma família surgir pela trilha entre as árvores. Duas crianças pequenas, um rapaz e uma mulher bem mais velha, que carrega uma grande cesta. Todos olham para ela, surpresos, mas continuam se aproximando, como se sua presença ali fosse algo normal.

As crianças menores, depois de encarar Sulana por um instante, parecem ver algo muito mais interessante de repente e passam por ela correndo. Sulana dá um passo para o lado e observa, surpresa, enquanto os dois pequenos se lançam contra o general, cada um deles abraçando uma de suas pernas.

– Papai!!

– O que foi, que alegria toda é essa? – Belísar diz, enquanto passa as mãos, afetuosamente, nas cabeças deles.

Sulana mal pode acreditar em seus olhos ao ver o sorriso tranquilo que ele dirige às crianças, a ruga em sua testa desaparecendo completamente. De repente, ele parece uma pessoa completamente diferente, toda a semelhança com o General Vermelho se esvaindo.

– A mamãe disse que podemos brincar na água!

– Vem nadar com a gente, papai!

– Talvez mais tarde – responde o general. – Podem ir brincar, mas não vão muito longe.

– Êba!!

As crianças correm para a água, enquanto a mulher mais velha e o rapaz se aproximam. De perto, a fulana parecia mais jovem. Era muito bonita, com uma farta cabeleira negra e com um corpo cheio de curvas, que as roupas leves não conseguiam ocultar.

– Bom dia!

Até a voz da infeliz parecia perfeita, suave, feminina. Por alguma razão, Sulana sente uma antipatia imediata por ela. Aquele sorriso tranquilo, por alguma razão, não lhe parece muito autêntico.

Já o rapaz não suscita nenhuma impressão negativa. Ele encara Sulana, esbanjando entusiasmo.

– Você é uma protetora! Faz tempo que não vemos uma! – Ele faz uma pausa e pende a cabeça para o lado, parecendo intrigado. – Mas por que você não tem asas?

Protetora?

Deviam estar pensando que Sulana era da raça de Derione. Mas por quê? Seria por causa de suas roupas? E por que essas pessoas conheceriam protetores? O bando de Derione não costuma se mostrar para ninguém, exceto aqueles que consideram perigosos.

A menos que…

Sulana olha para o general, pensativa.

É claro! Faz todo sentido! Esse homem é mais perigoso do que eu. Se estão de olho em mim, devem estar vigiando a ele também.

Belísar desvia o olhar das crianças e volta sua atenção para Sulana, com uma expressão cautelosa no rosto. Ela estreita os olhos.

Pensando bem, com todos os crimes de guerra que esse homem cometeu, os protetores já deviam tê-lo prendido há muito tempo, não?

– Baliorge, não seja inconveniente – diz a outra mulher, repreendendo o filho pelo que dissera antes. – Você não deve sair enchendo as pessoas de perguntas na primeira vez que as vê!

O rapaz fica em silêncio, apesar de não parecer nem um pouco arrependido. A mulher deixa a cesta no chão ao lado da palmeira e lança a Sulana um sorriso de desculpas que, novamente, não lhe parece totalmente sincero.

– Não me lembro de já ter conhecido você. Eu sou Zelmira. Seja bem-vinda!

– Também é a primeira vez que a vejo – diz Belísar. – Qual é mesmo o seu nome?

– Sulana – ela responde, sem saber direito o que fazer naquela situação absurda.

Zelmira amplia o sorriso.

– Que nome lindo!

– Baliorge – diz Belísar –, vá cuidar de seus irmãos, não deixe que eles entrem em águas muito fundas.

– Sim, senhor!

O rapaz lança a Sulana um último sorriso jovial, antes de se afastar, na direção dos menores. Enquanto isso, a mãe dele continua encarando Sulana com aquela expressão sorridente.

– O que podemos fazer por você? Não está com calor? Quer tomar alguma coisa?

– Zelmira – Belísar interrompe –, você sabe que os protetores não apreciam ser tratados com familiaridade.

A mulher leva a mão aos lábios

– Oh, tem razão, Marcelius, sinto muito! – Ela se vira para Sulana com uma expressão mortificada. – Por favor me perdoe. Estou sendo inconveniente, não estou? Você deve estar querendo tratar de negócios com meu marido, então pode ficar à vontade. Se precisar de alguma coisa é só me chamar. Foi um prazer conhecê-la.

Sem esperar uma resposta, Zelmira vai atrás do filho mais velho, deixando Sulana e o general sozinhos, num silêncio incômodo.

Então, o primeiro nome do general é “Marcelius”? Até que é um nome bonito, combina com ele. Com esta versão dele, pelo menos.

De repente, Sulana percebe que o está encarando e desvia o olhar.

O que há de errado comigo, afinal?

– Por que você está aqui? – Belísar indaga.

– O que você fez com Giarle?

Muito surpreso, ele pensa por um instante, antes de responder.

– O coronel da resistência? Está sendo interrogado. Está vivo e muito bem, se é isso o que quer saber.

– Vai subjugar a vontade dele, como fez com os outros?

Uma expressão de confusão passa pelo rosto dele, seguida por outra, de raiva.

– Não sei do que está falando! O que aconteceu agora? Vocês encontraram algum novo crime para me acusar? Quem é você, afinal? Onde está Elinora?

– Não é de sua conta!

Na verdade, ela não tinha resposta para nenhuma daquelas perguntas, mas também não estava gostando nada do tom de acusação na voz dele.

– O que veio fazer aqui?

– Pensa que eu vim por sua causa?

– Vocês sempre vêm por minha causa. Se o problema dessa vez não é comigo, então é com quem?

– E desde quando protetores dão satisfações a alguém?

Ela cruza os braços, em postura desafiadora, enquanto ele estreita ainda mais os olhos, claramente irritado com a pergunta.

Se isso é um sonho, não há problema nenhum em provocar um pouco o homem, não é? Nunca me imaginei fazendo esse tipo de coisa, mas com certeza é divertido ver ele fechar a cara desse jeito.

Para a decepção dela, no entanto, o general respira fundo, recuperando a compostura.

– Então é isso. Vai ficar por perto para me monitorar e garantir que eu não me esqueça de que vocês existem.

Ele aperta os punhos, sua musculatura impressionante forçando o tecido das ataduras.

– O que houve com seus pulsos?

Surpreso, ele olha por um momento para as faixas firmemente atadas no fim de seus antebraços.

– Como se você não soubesse que tivemos uma batalha ontem.

Sulana se recorda do dia anterior, do pequeno discurso do general antes de ele bater em retirada. Ele não parecia estar ferido ou sentindo dor naquele momento.

– E você lutou ao lado dos seus soldados?

– Claro que sim, não deixo ninguém lutar minhas batalhas por mim!

– Mas agora está aqui, na praia, com a família.

Ele volta a ficar nervoso, o olhar dele praticamente lançando adagas na direção dela.

Eu poderia facilmente me acostumar com isso. Nunca imaginei que provocar alguém pudesse ser tão divertido. Essa expressão furiosa no rosto dele é impagável.

– Vocês sabem muito bem o quanto essas batalhas exigem de mim! Foram vocês que fizeram isso comigo! – Ele aponta para uma ilha que podia ser avistada por sobre as ondas. – Graças a vocês eu não posso mais usar meus poderes sem ter que passar dias perto de uma fonte de energia para me recuperar! Você pode pensar que sabe quem eu sou, mas não me conhece! Não tem o direito de me acusar de negligência!

Aquela informação deixou Sulana sem ação e ela ficou ali apenas olhando para ele, sem saber o que fazer. Até que barulhos vindos do mar chamam a atenção dos dois.

Entre as ondas, Zelmira e as crianças estavam se divertindo, gritando e rindo enquanto pulavam de um lado para o outro. Então, de repente, a menina solta um grito e começa a chorar.

Sem hesitar, Belísar sai correndo na direção da filha, deixando Sulana sozinha.

Não é possível que esse seja o general verdadeiro. Nada disso combina com o que sei sobre ele. Este homem parece… vulnerável. Eu diria até… infeliz. Muito diferente do megalomaníaco que eu esperava encontrar.

De longe, ela observa enquanto ele pega a menina no colo e a traz de volta para a areia. A julgar pelo pouco que Sulana consegue ouvir da conversa, parece que a pequena havia pisado em alguma criatura venenosa. O general então lava cuidadosamente o pé da garota com água de um cantil que Zelmira lhe entrega. Depois daquilo, ocorre uma breve discussão e todos decidem ficar longe da água.

Enquanto o pai, a mãe e o irmão mais novo conversam com a garotinha ferida, o irmão mais velho se afasta um pouco e começa a praticar movimentos de luta corporal na areia. Notando que Sulana o está observando, ele começa a treinar com mais empolgação, desferindo socos e chutes no ar com muito mais força do que deveria.

– Ei, pare! – Sulana exclama, caminhando na direção dele, que imediatamente se imobiliza.

– O que foi?

– Não está sentindo nada no ombro?

Ele fez uma careta ao levar a mão ao ombro direito.

– Hum… está doendo um pouco.

– Melhor ir com calma.

– Isso não foi nada. Eu treino assim desde criança.

– Não quero que seu pai me culpe por deixar você se machucar.

Na verdade, Sulana não fazia a menor ideia de porque tinha falado aquilo, mas o garoto pareceu gostar de ouvir.

Ah, que se dane, esse sonho já está tão doido mesmo, vou é fazer umas maluquices para ver até onde isso chega.

Ela para ao lado do garoto e se vira, de forma a ficar ombro a ombro com ele.

– Aqui, deixa eu mostrar o que você fez de errado.

Ela passa os minutos seguintes mostrando ao rapaz a postura correta para desferir certos golpes sem se machucar no processo.

Mas, querendo ou não, parte de sua atenção continua focada no general. Ela percebe o momento exato em que ele a vê ao lado de Baliorge. Ele parece desconfiado, mas, por alguma razão, prefere não interferir.

– Você é boa nisso! – Baliorge exclama, fascinado.

– Não tenho muita escolha. Vamos tentar uma sequência. Veja se consegue me acompanhar.

Sulana nunca havia se imaginado na posição de instrutora. Também não tinha um repertório muito grande de coisas que podia ensinar. Afinal, não passava de uma criança na última vez que alguém tentou lhe ensinar algo daquela forma. As lições que recebera de seus pais ficaram gravadas em sua memória para sempre, mas o tempo que passou com eles foi muito curto.

– Flexione mais os joelhos.

– Assim?

Ela assente, um pouco surpresa ao ver o quão rápido ele aprendia.

Os minutos vão se passando enquanto ela demonstra que tipo de exercícios ele deve fazer para fortalecer os músculos de forma a potencializar seus golpes.

Sulana quase tinha perdido a noção do tempo quando o irmão mais novo chega correndo do lado deles.

– Que legal! Quero brincar também!

O menino tenta imitar os movimentos, sem muito sucesso. O mais velho ri e repete o golpe, devagar, enquanto o mais novo tenta repetir o que ele faz. Logo, os dois irmãos estão entretidos com o treinamento, rindo e provocando um ao outro o tempo todo.

Sulana respira fundo. O barulho das ondas, o calor do sol em sua pele e a tranquilidade daquele lugar são agradavelmente relaxantes. Ela não conseguiria pensar num dia e local mais propícios para uma boa sessão de treinamento. Quase sem perceber, ela inicia uma das sequências que aperfeiçoou durante os anos. Logo os garotos param o que estão fazendo para observá-la, fascinados.

Sem estar acostumada a ser o centro das atenções daquela forma, ela decide ignorá-los e continuar com seu treinamento, pois seus músculos estavam praticamente gritando por alguma atividade.

Sua sequência está quase terminando quando Belísar se aproxima.

– Vamos fazer uma pausa, meninos.

– Ahhhhhhhh, pai!

– Mas agora que estava ficando interessante!

O general cruza os braços.

– Olhe para vocês dois, mal se aguentam em pé. Além disso, se ficarem mais tempo debaixo desse sol vão acabar torrados. Venham, vamos comer alguma coisa.

Baliorge lança um novo olhar de admiração a Sulana.

– Esses movimentos são demais! Você é a professora mais legal do mundo!

Sulana troca um rápido olhar com o general, antes de retrucar:

– Ah, é mesmo?

Ela não saberia dizer de onde aquele impulso veio, só sabia que estava cheia de energia e não queria que aquele treinamento improvisado acabasse daquela forma. Então, num movimento extremamente rápido, ela se aproxima do rapaz, segura ambas as mãos dele atrás das costas e o agarra pelo pescoço com a outra mão, colocando-o diante de si como se o fosse usar como um escudo humano.

O general começa a se mover instintivamente para proteger o filho, mas então o olhar dele cruza com o dela e ele se interrompe.

Sulana então dirige sua atenção ao rapaz.

– E se eu disser que meu objetivo era só obter a sua confiança para poder te sequestrar? O que acha que seu pai estaria disposto a fazer para ter você ou qualquer um de seus irmãos de volta?

– Eu… não sei… – balbucia ele.

– Papai!

Ao ver o irmão mais novo correndo para abraçar as pernas do pai, ameaçando chorar, ela solta Baliorge e lhe dá um empurrão com o pé, o que faz com que ele precise dar vários passos para a frente antes de recuperar o equilíbrio.

– Você nunca me viu antes, garoto – ralha ela. – Seu pai nunca te ensinou que não deve confiar em ninguém assim tão fácil?

– Sim, mas…

– Lembre-se de uma coisa: as únicas pessoas que têm a obrigação de nunca te trair são as da sua família. Ninguém mais é obrigado a isso. Se decidirem ser leais a você, o fazem por escolha própria. E nem todos fazem essa escolha.

Ele engole em seco.

– Acho que entendi. Mas como a gente pode saber em quem confiar?

– Quem é a pessoa em quem você mais confia?

– Meu pai – responde ele, sem titubear.

– E acha que seu pai confia em mim?

O rapaz pensa um pouco e umedece os lábios antes de responder.

– Sim.

– É mesmo? Por quê?

– Porque, quando você me… segurou, ele ficou só olhando e não fez nada.

Ora, vejam só! Parece que o garoto é bem mais esperto do que aparenta.

Sulana olha para o general e nota o olhar de aprovação dele, enquanto acaricia os cabelos do filho mais novo.

– Isso mesmo – responde ela, voltando a atenção para Baliorge. – Quando estiver em dúvida ou em apuros, procure sempre a orientação daqueles que você sabe que pode confiar.

Foi estranho ouvir aquelas palavras saindo de sua própria boca. Afinal, ela mesma não tinha em quem confiar há duas décadas. Mas algo naquele garoto fazia com que se lembrasse de sua própria infância e das lições que seus pais tanto se esforçaram para que aprendesse. Não que seus progenitores tivessem boas intenções quando a ensinaram tudo aquilo, mas os pais deste rapaz não eram assassinos ensandecidos. De alguma forma, ela tinha certeza daquilo.

Apesar de tudo o que o General Vermelho tinha feito no mundo real, este Marcelius Belísar era diferente.

– Ei, vocês! – Zelmira chama, lá de longe. – A comida está pronta! Venham!

Os garotos soltam gritos de alegria e saem correndo na frente. Sulana lança um olhar a Belísar.

– O conselho vale para você também. Eu poderia muito bem estar aqui para matar você. Ou coisa pior.

– Eu sei reconhecer uma ameaça quando vejo uma. Você não sabe realmente por que está aqui, sabe?

Ela o encara por alguns instantes antes de resolver responder com franqueza.

– Não, não sei. Mas a primeira coisa em que pensei ao reconhecer você foi em pôr um fim à sua vida.

– Eu percebi algo assim, mas… – ele se interrompe quando Zelmira volta a chamá-los, perguntando por que estão demorando. – Vamos comer. Podemos conversar depois.

Sulana não consegue encontrar nenhuma razão para recusar o convite. Enquanto caminham, Belísar continua a vigiando com o olhar, mas a raiva inicial parecia ter sido substituída por outra coisa, que ela não conseguia discernir o que era. Ela lança um olhar para a ilha à distância, tentando processar tudo o que tinha ocorrido hoje.

O que está acontecendo, afinal? Nada disso aqui faz sentido. Nunca tive um sonho que parecesse tão real. E por que eu sonharia com o General Vermelho?

Ela desvia o olhar para ele e vê que o general ainda a está encarando, mas dessa vez com uma expressão curiosa. Ela o encara de volta por um instante e ele desvia o olhar.

A emanação mística que vem do corpo dele é forte o suficiente para Sulana perceber, mesmo sem a ampliação de sentidos concedida pela febre da batalha.

Como alguém pode parecer tão perigoso e tão inofensivo ao mesmo tempo? Quem é esse homem, afinal?

Ela sacode a cabeça, tentando afastar aqueles pensamentos.

Argh! Melhor esquecer tudo isso e tratar de encher logo a barriga!

Depois de terem comido praticamente tudo o que Zelmira havia trazido na cesta, as crianças voltam a brincar na areia, demonstrando possuírem uma reserva impressionante de energia.

Sulana prefere se deitar sob uma palmeira, satisfeita com a refeição improvisada.

Que dia maluco!

O sono vem rápido enquanto ela recapitula os acontecimentos, tentando encontrar algum sentido em tudo aquilo. Assim, pela primeira vez em mais de vinte anos, ela adormece tranquila, completamente esquecida de onde está e com quem.

Mais tarde, ela acorda e se espreguiça, sentindo-se animada e cheia de energia. Então abre os olhos e percebe que está de volta à sua cabana, despida sobre o catre, exatamente do mesmo jeito que pegara no sono na noite anterior.

Levantando-se, ela abre a janela e olha para fora. A posição das sombras indica que já é início da tarde.

Eu dormi mesmo tanto assim?

Bom, não deixa de ser um alívio saber que aquilo tudo foi mesmo só um sonho. Não que uma situação tão doida pudesse ser qualquer outra coisa.

Devo ter gastado energia demais na batalha de ontem. Essa é a única explicação para eu ter dormido tanto tempo e tido um sonho tão idiota.

Mas não importa. O céu está limpo, meu braço não está mais doendo e me sinto cheia de energia. Hora de trabalhar um pouco!

— Fim do capítulo 3 —
< 2. Rotina Sumário 4. Muralha >

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