Carmim – Capítulo 4

Publicado em 16/06/2019
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Grande Muralha da China

4. Muralha

– Cadê a Sulana, papai?

Belísar termina de prender o cabelo de sua filha, que havia se desamarrado, e a vira para dar um beijo em sua testa.

– Acho que ela foi embora.

Ela faz um biquinho.

– Sem se despedir? Ela ficou brava com a gente?

– O quê? Não! Os protetores são muito ocupados, estão sempre patrulhando o país para… proteger as pessoas. É o trabalho deles.

– Mas a Sulana é diferente dos outros.

– Você acha? Mas ela nem chegou a conversar com você.

– Ela é bem mais legal que aquela de cabelo vermelho.

Não há como Belísar conter um sorriso ao ouvir aquilo.

– Nisso você tem toda razão. Mas isso não quer dizer que Elinora seja má pessoa. – Ele encara a menina nos olhos. – Sabe, filha, os protetores pensam de uma forma diferente da gente. Eles vivem uma vida perigosa e solitária, então o senso de prioridade deles às vezes parece estranho e misterioso para nós. Mas é como eles são. Isso não é culpa de ninguém, a Elinora é assim, mesmo.

– Ah, é?

– Pode estar certa de que sim.

– Da outra vez parecia que ela tinha chupado um limão.

Belísar não consegue conter a risada. Elinora realmente estivera com o rosto contorcido pela fúria da última vez que apareceu em frente às crianças.

– Hahaha! Ela estava bem brava, mesmo, não estava?

– Eu fiquei com medo dela.

– Você já me viu bravo várias vezes, não viu? Acha que eu sou uma pessoa ruim por causa disso? Você tem medo de mim?

– Não!

Nesse momento, o grito excitado de Sagante, vindo da praia, chama a atenção de ambos.

– Vênega! Vem ver o que eu achei!

– Vá lá brincar, filha, vá! – Belísar dá duas batidinhas de leve nas costas dela.

Sem perder tempo, a menina sai em disparada na direção do irmão, enquanto Zelmira se aproxima, com aquele sorriso amoroso no rosto.

– Acho fantástico que, mesmo depois de tudo o que aqueles seres lhe fizeram, você esteja ensinando nossa filha a não os odiar.

Ele se levanta e olha na direção da praia, onde as crianças corriam, animadas, procurando alguma coisa na areia.

– Nossos filhos não herdaram meus poderes, graças aos céus. Então eles não têm o que temer. Os protetores podem ser irritantes e até um pouco sádicos, mas eles seguem um código de conduta. Sempre existe uma boa razão para tudo o que eles fazem. – Ele franze a testa. – Mesmo que eu nem sempre concorde com eles.

– E quanto a essa Sulana?

– O que tem ela?

– Ela não é de muitas palavras, não é?

– Ah, sim. Também é muito mais tolerável do que Elinora.

– Parece mais forte também… e mais atraente.

– Suponho que sim – responde ele, desviando o olhar para o mar, tentando ocultar seu constrangimento. – Ela parecia um pouco deslocada, acredito que não esclareceram direito o que queriam que ela fizesse aqui. Talvez tenha sido por isso que ela foi embora de repente.

– Elinora também não age de forma confusa, às vezes?

– Tem razão. Mas Elinora ao menos sempre demonstra saber o que quer. – Mesmo sendo grossa, arrogante, irritante, pedante e insuportavelmente cheia de si.

– Baliorge ficou encantado com Sulana.

– Sim. E eu não consigo entender qual o sentido disso. Fico imaginando se a intenção da vinda dela era passar algum tipo de mensagem.

– Como assim?

– Não sei. Talvez ela tenha ensinado algumas coisas ao Baliorge para me mostrar que eu não estou me dedicando tanto à educação dos nossos filhos como deveria.

– Mas isso é bobagem! Não existe outro pai tão dedicado quanto você!

– E, pensando bem, uma mensagem dessas também não faria muito sentido – retruca ele, com um suspiro. – Os garotos são todos… normais. Não há razão para os protetores se preocuparem com eles. E nem com você.

– Talvez Sulana seja diferente dos outros. Ela deu um sermão importante aos garotos sobre confiança. Me pareceu que ela realmente se importa com as pessoas.

– Com isso tenho que concordar. Ela realmente parece diferente. Elinora provavelmente machucaria o garoto de propósito se fosse querer ensinar uma lição como aquela. – Ele pensa um pouco e balança a cabeça. – Pensando melhor, acho que ela nem se daria ao trabalho de ensinar nada. Por ela, o garoto poderia estar à beira da morte que não moveria um braço, a menos que isso servisse de alguma forma para coibir ou punir algum tipo de crime. Ou, pelo menos, do que ela interpreta como um crime, já que as leis deles são muito diferentes das nossas.

Apoiando-se em uma palmeira, ele lança um olhar à pequena ilha além das ondas.

Suas terminações nervosas já tinham voltado ao normal, pois ele já conseguia sentir a textura do tronco com total clareza com a palma de suas mãos, e aquilo era a primeira coisa que desaparecia quando usava seus poderes além do ridículo limite estabelecido por aqueles filhos da mãe.

– Você está com um aspecto muito melhor – diz Zelmira. – Como estão seus pulsos?

– Eu estou bem melhor, mas meus braços não podem ser curados tão rápido. Foi a vibração dos estabilizadores que esfolou e queimou a pele. Ferimentos como esse não desaparecem quando reponho minhas energias. Não é como o cansaço, a tontura e a privação sensorial, esses eu já nem sinto mais.

Zelmira olha na direção da ilha, ao longe.

– O que será que tem lá, para causar esse efeito em você? – Ela se vira para ele. – Falando nisso, você foi até lá da outra vez, não foi? Não encontrou nada suspeito?

– Só grama, palmeiras e insetos – responde ele, balançando a cabeça. – Parece que, eu estando na ilha, minhas energias se recuperam um pouco mais rápido do que aqui, mas além disso, não encontrei nada.

Nesse momento, a voz de Sagante pode ser ouvida por sobre o barulho das ondas.

– Mamããããããããe!

– O que foi, meu amor?

– Vem aqui!

– Melhor ir ver o que ele quer – diz Belísar.

Após lançar um sorriso de desculpas ao marido, ela sai caminhando, apressada, na direção do garoto.

Belísar começa a considerar a ideia de dar um passeio pela praia agora que suas pernas já parecem firmes o suficiente para um pouco de exercício, quando ouve o som de passos atrás de si. Virando-se ele se depara com Falcione, trajando roupas curtas que deixavam os braços e boa parte das pernas musculosas à mostra.

– Trajes… interessantes.

Ela aperta os lábios.

– Odeio o calor.

A cabeça raspada dela e o tapa-olho são características incomuns em uma mulher e com certeza não são coisas que Belísar considera particularmente atraentes, mas se olhar todo o conjunto, Falcione podia ser considerada bastante desejável. Zelmira tinha boas razões para implicar com ela e fazer todas aquelas brincadeiras sempre que tinha oportunidade. Afinal, há certas coisas que um homem não pode controlar, e sua esposa sabe disso, assim como sabe que ele nunca, em hipótese nenhuma, procuraria conforto nos braços de outra, por mais atraente que fosse.

E Falcione também sabia disso, ele já havia deixado isso claro há bastante tempo.

– É o que você sempre diz – retruca ele, com um sorriso –, mas talvez mudasse de ideia se aproveitasse para dar um mergulho de vez em quando. Afinal, você já está aqui mesmo, coisa que raramente acontece. E está até trajada a caráter para a ocasião.

Ela balança a cabeça.

– Eu tenho outras…

– Prioridades, eu sei – interrompe ele. – O que houve?

– Uma nova incursão ocorreu nos arredores de Mercília.

O sorriso desaparece do rosto dele.

– E quanto ao muro?

– Os trabalhadores não foram atacados, mas ainda vão levar vários dias para concluir. Nossos caçadores estão com a situação sob controle dentro de nossos domínios, mas alguns invasores escaparam pelo lado ainda não murado.

Ele solta um suspiro.

– O que quer dizer que temos uma nova caçada em nossas mãos.

– O senhor sabe que só tem uma forma de acabar com isso de vez.

– E você sabe que não farei um ataque direto. Isso é exatamente o que aqueles malditos esperam que eu faça. Se me capturarem, tudo o que fizemos até agora terá sido em vão.

Ela aperta os lábios e desvia o olhar.

– O que foi? – Belísar pergunta.

– Com todo respeito, senhor, não consigo mais imaginar esse conflito terminando antes que alguma tragédia aconteça.

Era muito raro ver Falcione manifestar insegurança daquela forma. Adivinhando o que ela estava pensando, ele a encara, com determinação.

– Anos atrás eu conheci uma garota que tinha certeza de ter cumprido seu destino e de não ter mais razão para continuar entre os vivos. Com apenas um empurrão na direção certa ela percebeu que ainda podia fazer toda a diferença, mesmo contra todas as evidências em contrário.

– Eu não me esqueci de nada disso, e sou muito grata. Mas agora as coisas são diferentes.

– Por quê? Você acha que, por minha vida estar em jogo, eu não deva lutar?

– Olhe para tudo o que o senhor conseguiu realizar em tão pouco tempo! O senhor é a inspiração de milhares de pessoas. Muitas vidas perderão o sentido se…

– Não foi para isso que eu acolhi você.

Ela olha para ele, surpresa.

– C-como?

– Eu preciso de você. Eu quis você do meu lado para ter alguém competente e confiável para tomar conta das coisas caso algo acontecesse comigo. Tudo o que eu fiz por você até hoje sempre teve esse objetivo. Não poderei lutar tranquilo se eu não tiver certeza de que está disposta a assumir essa responsabilidade. – Ele faz uma pausa enquanto a encara, sério. – Pois, se não se considera à altura desse desafio, isso significa que falhei com você.

Ela se empertiga e arregala de leve os olhos umedecidos. Então, respira fundo e volta a aprumar o corpo.

– Se o senhor me considera digna, não tenho como argumentar contra isso.

– Não, não tem. E acho melhor esclarecer: não tenho a menor intenção de perder a vida. Lutarei essa guerra até o final, e não pretendo deixar que nada e nem ninguém me impeça.

♦ ♦ ♦

Ao fim da tarde, Sulana está rachando lenha quando Riodes se aproxima.

– Não esperava ver você por aqui até meados da semana que vem. O que aconteceu? Não me diga que se perdeu no trajeto?

Ela olha para ele por um momento, confusa com a pergunta, mas então se lembra de que a cidade de Revoada fica há vários dias de viagem dali.

– Não, deu tudo certo – responde ela. Um… amigo me enviou de volta para cá depois da batalha, por isso voltei tão rápido. Só não me pergunte como ele fez isso.

– É mesmo? Conseguiram derrotar os vermelhos dessa vez, então?

Ela solta um suspiro.

– Não.

Ele franze o cenho.

– Você não disse que tinha dado tudo certo?

– A cidade foi atacada, mas por monstros, não pelos vermelhos. Eu vim embora depois que acabamos com todos eles.

– Monstros, hein?

Ela bate o machado com força, rachando mais um pedaço de madeira antes de olhar para o homem, desconfiada.

– Como sabia sobre essa missão?

– Eu tenho minhas fontes.

Sulana coloca o machado no chão e se vira para ele.

– Uma ova! O Giarle está te pagando, não é?

– O quê?! E para que aquele encrenqueiro impulsivo iria querer me pagar?

– Não sei. Me diga você.

– Acha que ele me colocou aqui para vigiar você? Se pensa que ele é capaz de fazer uma coisa dessas, por que trabalha para ele?

– Se não é ele, então quem é? Não me diga que o general…

– Não seja estúpida – ele a interrompe. – O que ele iria ganhar colocando um espião neste fim de mundo?

– Eu estou aqui, não estou?

– Você é ainda mais idiota do que pensei se acha que o general teria qualquer interesse em alguém como você! A única coisa que você tem é muita sorte! Só lutou contra soldados rasos, nunca precisou enfrentar ninguém da elite do Exército Carmim, muito menos alguém tão poderoso quanto o general!

– Estou perdendo a paciência. Se não trabalha para nenhum dos dois, como sabe tanto?

Ele cruza os braços.

– E o que vai fazer se eu não contar? Vai me matar?

– Você acha que merece morrer?

– E desde quando você se preocupa com o que alguém merece ou não?

– Cada vez que me responde uma pergunta com outra, me preocupo menos.

Riodes olha para ela com uma expressão de surpresa por um momento, e então um sorriso gradualmente aparece no rosto dele. No instante seguinte ele começa a rir, como se tivesse ouvido algo muito engraçado.

– Qual é a graça? – Sulana esbraveja.

– Nada, nada. Você só fez eu me lembrar de alguém. – Ele balança a cabeça e solta um suspiro. – Eu só… tenho amigos. Amigos que gostam de me distrair com notícias do que acontece longe deste lugar.

– E esses seus “amigos” são de qual lado?

– Não gosto desse seu tom de voz.

– O quê?! E como acha que eu deveria tratar alguém que age de forma tão suspeita?

– Não me venha com essa. Se realmente me achasse suspeito, eu já estaria morto. – Ele a encara, desafiadoramente. – Não estaria?

– Como assim?

– Ora, não é essa sua linha de ação? Destruir todos os obstáculos? Derrotar todos os inimigos?

Sulana chega a abrir a boca para negar aquilo, mas de repente percebe que havia um fundo de verdade naquelas palavras. Então resolve seguir uma outra linha de raciocínio.

– Talvez eu esteja interessada em descobrir quem contratou você antes de te degolar e jogar seu corpo aos abutres.

– Pode fazer o que quiser, nem vou tentar impedir. Meus dias de guerreiro se foram há muito tempo.

– Certo, então que tal responder algumas perguntas?

De repente, Sulana percebe que está se sentindo excepcionalmente paciente hoje. Talvez seja consequência da batalha do dia anterior. Provavelmente ainda estava um pouco “bêbada” com a sensação de bem-estar causada por extravasar sua fúria. Era a única explicação para ainda estar querendo conversar com aquele homem irritante.

– Me diga – exige ela –, o que você pensa sobre Marcelius Belísar?

Para aquilo, ele tinha a resposta na ponta da língua.

– É um maldito de um usurpador cruel e desumano que gosta de escravizar pessoas.

– Isso é o que todo mundo diz. Já cansei de ouvir as pessoas repetindo isso.

– Repetem isso porque é a verdade.

– Quero ouvir algo diferente. Nunca pensou na possibilidade de ele, sei lá, ser um pai de família ou algo assim?

– Ele é um pai de família. Eu fui ao casamento dele.

– É mesmo?

Ele dá de ombros.

– Eu e minha esposa fomos convidados pela noiva, temos um… parentesco distante com ela. Belísar só veio a se tornar um vilão vários anos depois.

Sulana franze o cenho. Aquilo lhe parece algo saído de uma história infantil. Bem do tipo que um dos homens que mora no abrigo vive recitando em voz alta pelos cantos.

– Vai me dizer que a noiva era uma donzela pura e que o homem a transformou em uma megera?

Riodes solta uma risada sem muito humor.

– Quer dizer, como naquela história que o Tonien gosta de contar?

Ela apenas o encara, em expectativa.

– Não, não – responde ele. – Eu diria que foi o contrário. Zelmira era arrogante, preconceituosa, egoísta e cheia de si.

Sulana franze o cenho. Zelmira?

– Mas ela mudou da água para o vinho quando começaram a namorar, ficou calma, educada, alegre – continua ele. – Nos primeiros anos tudo parecia bem, mas logo perceberam que o útero dela tinha algum problema. Ela engravidava, mas logo nos primeiros meses perdia a criança. Isso aconteceu várias vezes e ouvi dizer que, a cada vez, a personalidade de Belísar ficava pior. Ela já tinha passado dos trinta quanto eles se casaram, então já estava quase chegando ao fim da linha, logo não poderia mais ter filhos. O medo de nunca ter um herdeiro provavelmente foi o que levou aquele maldito a enlouquecer. Então nasceu um menino e um ano depois uma menina. As coisas pareceram se acalmar. Não ouvimos mais falar neles por uns seis anos, até que os monstros começaram a atacar e o império caiu. Aí Belísar arranjou uma pequena milícia e se declarou o governante da província, começando uma campanha de dominação, escravizando as pessoas das cidades que conquistava.

– Então ele tem dois filhos?

– São três, se contar com o moleque que Zelmira teve ainda solteira e que nunca contou para ninguém quem é o pai. – Ele estreita os olhos. – Não me surpreenderia se ela admitisse que nem mesmo ela sabe quem é. – Ele balança a cabeça e volta a suspirar. – De qualquer forma, Belísar adotou o garoto logo depois do casamento, acho que hoje ele deve estar quase chegando à maioridade.

Sulana cruza os braços, sentindo-se desconfortável. Aquilo está parecendo coincidência demais.

– Quais os nomes dos filhos dele?

– Por quê? Quer me testar para ver se eu estou falando a verdade? – Ele balança a cabeça novamente quando ela apenas o encara, sem dizer nada. – O do mais velho é Baliorge, o do meio é Sagante e a menina se chama Vênega.

Ela arregala os olhos.

Não é coincidência! Que raios?! Nada daquilo foi sonho! Eu devo realmente ter encontrado o homem e a família dele! Como isso é possível?

Então ela se lembra da conversa que tivera com Derione na tarde anterior. “Vou ajudar você”, dissera ele, “mas só posso mostrar o caminho. Para isso funcionar, você precisará caminhar por conta própria”.

Foi Derione! O infeliz me jogou no colo do General Vermelho! Vou matar aquele traidor quando o vir de novo!

– O que há com você? – Riodes pergunta. – Queria os nomes, eu falei. Por que essa cara de quem comeu e não gostou?

Sulana estuda o homem por um momento.

– O quanto você sabe sobre o general?

– Sei mais sobre aquele infeliz do que gostaria.

– Então comece me dizendo quais são os poderes dele.

♦ ♦ ♦

O laboratório alquímico do palácio é um lugar impressionante, uma verdadeira homenagem ao conhecimento. Normalmente, Belísar gosta muito do lugar, principalmente da calma e da tranquilidade dos sábios que trabalham ali.

Infelizmente, no momento, aquela calma e tranquilidade não pode ser encontrada em parte alguma.

– Fomos sabotados, senhor! É a única explicação.

O general olha para o sábio, que o encara de olhos arregalados, como se temesse pela própria vida. Norlando é o mais experiente e poderoso dos sábios que trabalham aqui, o homem é famoso em toda a província. Mas Belísar sabe muito bem que, por mais poderoso que alguém seja, isso não significa que seja invencível ou imune à fadiga. Sua barba, quase tão longa e encaracolada quanto os cabelos, além de ter o mesmo tom cinzento entremeado por fios brancos, estava oleosa e mal cuidada. Os olhos azuis, que normalmente esbanjavam inteligência hoje estavam avermelhados e emoldurados por grandes olheiras. O manto azul cheio de detalhes intrincados que ele usava estava amassado e com manchas de sujeira e o chapéu pontudo, da mesma cor do manto, estava ligeiramente torto.

– Você está cansado – diz Belísar, comentando o óbvio.

– Não poderia deixar de estudar esse caso, uma vez que é algo urgente e…

– Cale-se!

O homem fica muito pálido, parecendo mortificado. Mas, pela primeira vez desde o começo daquela reunião, fica quieto.

– Você passou dos seus limites – continua Belísar –, está acabado, não está raciocinando direito.

– Mas, senhor, eu…

– Não, não quero ouvir mais nada, apenas fique calado e escute. Você vai para casa. Quero você longe deste laboratório por, pelo menos, uma semana. Fique em casa com seus filhos ou vá para as montanhas, para a praia, ou qualquer outro lugar, desde que mantenha distância do trabalho.

– Se vai me punir por isso, pelo menos me deixe antes…

Belísar não o deixa continuar.

– Ninguém está punindo você, homem! Apenas vá para casa e descanse. Nós cuidaremos de tudo agora. Falcione, poderia, por favor, conduzir o sábio até a saída?

– Mas eu não posso ir embora! Esse trabalho é a minha vida! O senhor não pode me expulsar daqui, assim!

Falcione o agarra pelo braço e começa a conduzi-lo na direção da porta.

– Vamos – diz ela. – E pare de se debater, homem, o laboratório vai estar exatamente no mesmo lugar quando voltar!

O aposento fica em silêncio depois que os dois saem.

Belísar encara por alguns instantes o “altar”, composto por inúmeros tubos de vidro de diversos tamanhos. A estrutura está fixada sobre uma base de metal cuja superfície apresenta um relevo incomum, formando runas diferentes dependendo da direção em que se olha. Durante séculos, aquele aparato havia vibrado com energia, pequenos pontos de luz de diversas cores percorrendo aqueles tubos para cima e para baixo, o tempo todo. Mas agora, não há mais energia nenhuma emanando dali. Nenhum brilho, nenhum calor.

Ao lado dele, a tenente Emelin limpa a garganta.

– Talvez a Grande Fênix não esteja mais nos dando sua proteção.

Ante o olhar inquisitivo dele, um leve rubor toma as faces dela.

– E-este altar era um símbolo do… compromisso que a entidade assumiu… de nos proteger dos invasores. Quero dizer… que outra explicação existiria para ele parar de funcionar assim? A Fênix deve estar contrariada devido ao fato de o império não existir mais!

– Eu acho que a Fênix tem mais com o que se preocupar. Se ela se importasse tanto assim, teria impedido a separação do império, para começo de conversa. Se não fosse por aquilo, Ebora nunca teria sido invadida por esses demônios.

Emelin abaixa a cabeça, sem ter como responder. Belísar aponta para o artefato e continua:

– Encontre os outros sábios e peça a eles para desmontar essa coisa. Quero saber como isso funciona.

– Mas, senhor, eles não podem fazer isso sem o sábio Norlando! Ele é quem mais estudou o artefato…

– Norlando vem trabalhando nisso dia e noite há semanas. Preciso dele saudável, descansado e disposto. Enquanto ele estiver fora, quero que coloquem em prática tudo o que aprenderam e tentem fazer algo de útil. Ah, e peça também para fazerem uma varredura residual, se qualquer pessoa estranha tiver chegado perto desse altar no último ano, eu quero saber. Mande um mensageiro me avisar caso descubram qualquer coisa relevante.

– S-sim, senhor!

Belísar se despede dela com um gesto de cabeça e se dirige à saída. Falcione o encontra na porta.

– A situação já estava ruim com aquela coisa funcionando – comenta ela, em voz baixa. – Agora este lugar vai virar um caos. Não seria melhor tirar logo todo mundo daqui?

– Se não tiver ninguém por perto, a incursão não poderá ser contida – responde ele. – Eles poderão mandar verdadeiros exércitos para cá. Não teremos para onde fugir porque não existirá mais nenhum lugar seguro.

– E o que faremos?

– Eu vou descobrir o que está acontecendo e vou corrigir o problema. O equilíbrio se manteve por centenas de anos. A bênção de uma Grande Entidade não se desvanece assim, de uma hora para outra.

– E se a Fênix tiver retirado a bênção de propósito?

– Então eu farei com que ela resolva isso. Nem que eu tenha que ir até ela pessoalmente e obrigá-la.

Falcione o encara, espantada por um momento, mas logo esboça um leve sorriso.

– Para falar a verdade, não duvido que o senhor seja capaz disso.

– Estou falando sério. Se as grandes entidades não queriam que eu causasse problemas, não teriam me dado esses poderes. Quando tiver alguma evidência de que seja esse o caso, irei exigir satisfações.

Ela apenas assente.

– As tropas estão prontas? – Belísar pergunta, passando por ela e tomando o corredor.

– Sim. Posso liderar a busca, se quiser. O senhor tem algumas disputas a resolver, não?

– Zelmira pode se encarregar isso, ela leva jeito para resolver essas coisas.

Ele se dirige para fora do palácio, na intenção de liderar mais uma caçada aos monstros invasores.

Desculpe, Zelmira, mas você vai ter que dormir sozinha esta noite.

♦ ♦ ♦

Depois de uma semana trabalhando no abrigo, a euforia da batalha já está esfriando e Sulana começa a sentir os primeiros sinais de impaciência.

A vontade de encontrar Derione e exigir dele algumas explicações sobre aquele “sonho” é grande, mas ela não tem como contatá-lo. Não que tenha grandes esperanças de conseguir intimidá-lo ou persuadi-lo a fazer o que quer que seja. Durante todos aqueles anos em que ele a estivera atazanando, ela perdeu a conta de quantas vezes tentou enfiar a mão na cara dele, sem nunca conseguir tocar em nenhum fio de cabelo do infeliz. Ele sempre conseguia superá-la de alguma maneira bizarra e inesperada e aquilo sempre acabava de uma forma humilhante para ela. Já tinha sido deixada amarrada no meio da floresta, presa dentro de algum buraco, quase morrendo afogada no meio de um rio e, a pior alternativa de todas, completamente exaurida a ponto de não conseguir mover nenhum músculo.

Ele provavelmente pode me matar ou me levar presa até o tal “refúgio” dele quando quiser. Eu nunca fui e provavelmente nunca serei um desafio para ele, em termos de poder ou força física.

O que eu não entendo é a insistência dele em tentar me persuadir a fazer qualquer coisa na base da conversa, sendo que ele podia muito bem me obrigar a fazer o que quisesse.

Ela sente um arrepio ao se lembrar da noite que passou com ele na cabana do vale.

Com toda a minha… falta de experiência, além do outro problema… Bem, aquilo não foi nada… memorável.

Sulana se lembra das histórias românticas que vem ouvindo desde a adolescência. Nunca tivera muito interesse naquilo, mas era impossível evitar aquele tipo de conversa entre garotas. As histórias eram sempre tão cheias de floreios, como se união amorosa fosse a melhor coisa do mundo. Como se qualquer problema pudesse ser resolvido através de um casamento com o parceiro perfeito.

Eu não quero isso para mim. Não preciso de ninguém do meu lado me dizendo o que fazer de minha vida.

Mas e quanto a ele?

Ela solta um suspiro.

O que ele vê em mim, afinal? Ah! Não dá para entender aquele homem! Se é que posso chamar aquela criatura de “homem”…

Será que é por isso que ele me jogou naquela praia? Para me punir por não ser… do jeito que ele quer que eu seja?

Um movimento entre as árvores chama a atenção dela, que se vira, para ver Ronam caminhando em sua direção com um sorriso.

– Você parece bem – diz ele, alegremente. – Conseguiu descansar? Como está o braço?

Com familiaridade, ele se aproxima, pega um dos baldes de água que ela está carregando e começa a caminhar a seu lado, na direção do abrigo.

– Estou como sempre estive – responde ela, dando de ombros.

Ele a olha de cima a baixo, como se tentasse confirmar se está falando a verdade.

– Quando disse que se curava rápido, você não estava mesmo brincando, hein?

– Não, mas você já sabia disso. Não é qualquer arranhão que vai me tirar da luta. Ainda tenho muito o que fazer nessa vida.

– Com certeza.

– Tem trabalho para mim?

– Não, exatamente.

– O que isso quer dizer?

Ele olha para os próprios pés, demonstrando uma hesitação bastante incomum para ele.

– Me diga, você não está preocupada com Giarle?

– Ele é um guerreiro como qualquer um de nós. Sabia no que estava se metendo quando entrou nessa briga.

– Sim, eu sei. Mas você não gostaria de resgatar o cara se tivesse uma chance?

Ela o encara, espantada.

– É essa a missão que estão nos dando?

– Não. – Ele hesita antes de continuar. – Recebemos instruções há uns dois dias. Devemos nos mudar para uma região mais ao sul para nos unir a um outro grupo.

– Nos mudar? Quer dizer, ir embora daqui?

– Sim.

Sulana franze o cenho e olha ao redor. Não dá para ver muita coisa além de árvores, mas ela sabe que o abrigo está logo adiante e sua cabana fica há meia hora de caminhada no sentido oposto.

– Pensando bem – conclui ela –, não há nada que realmente me prenda a este lugar. Para falar a verdade, isso aqui está um tédio. Nem lembro da última vez que apareceu algum monstro ou animal selvagem atrás de encrenca.

Ele abre um sorriso.

– Para alguém como você isso deve ser frustrante.

– É. E o que tem de interessante ao sul?

– Tem um outro grupo rebelde lá. Maior, mais forte… e mais agressivo, também…

– Parece interessante.

Ele solta um suspiro triste, mas não responde.

– O que foi?

Voltando a encará-la, ele agora parecia resoluto, determinado.

– Você não se preocupa com seus companheiros?

– Como assim?

– Giarle era um ótimo líder, sempre tratou você tão bem. Não se preocupa com ele?

Ela aperta os lábios, sabendo muito bem o motivo pelo qual Giarle a tolerava. Se tivesse senso de humor, ela provavelmente riria da ironia de ter ao seu redor tantos homens que a viam como mulher, quando era incapaz de retribuir os sentimentos de qualquer um deles.

– O que você está querendo? – Sulana pergunta. – Está pensando em ignorar as ordens da facção e invadir os domínios do general para resgatar Giarle sem a ajuda deles?

Ele volta a hesitar por um momento antes de responder.

– Eu estou confuso, sabe?

Quando os portões do abrigo entram no campo de visão, ele para de caminhar e coloca o balde no chão antes de se voltar para ela.

– Não me parece que estejam dando a Giarle o devido valor. Quero dizer, o cara sacrificou tudo que tinha pelos ideais dele: perdeu a família, a casa, o dinheiro, as terras, tudo mesmo. E então, quando ele mais precisa de ajuda, ninguém quer mover nenhuma palha por ele? Parece injusto.

Ela pensa por um momento, antes de assentir.

– Sim, tem muita coisa estranha acontecendo.

– Isso mesmo! – Ronam concorda com entusiasmo, parecendo aliviado. – E tem mais alguns de nosso grupo que pensam como nós.

– Então você está mesmo pensando em invadir as terras do Exército Carmim.

– Bem… sim. Como nossa tropa não quer se envolver, não tem outra forma de descobrir onde Giarle está. Vou entender se não estiver interessada, a maior parte do nosso grupo já partiu para se juntar com os outros no sul. Pode ir com eles, se quiser.

Invadir os domínios do general é, praticamente, uma missão suicida. Acabaremos nos metendo em batalhas contra incontáveis inimigos. E ainda é bem possível que venhamos a descobrir outros segredos de Belísar, talvez até mesmo encontrar com ele pessoalmente de novo.

Resumindo: havia incentivos demais para que ela sequer cogitasse a possibilidade de recusar.

– Vou com você. Quando partimos?

♦ ♦ ♦

Os sons da batalha ecoam pela floresta enquanto os soldados carmim tentam deter o avanço dos monstros.

Belísar deflete o ferrão de uma das criaturas com seu bracelete e encosta a palma da outra mão no peito dela, antes de liberar uma carga mortal de eletricidade.

Enquanto o monstro agoniza e se desintegra, ele olha ao redor e vê um invasor prestes a saltar sobre as costas de Falcione, que está ocupada combatendo outro inimigo. Um pouco mais adiante, Emelin tenta se concentrar para invocar algum encantamento enquanto um outro monstro corre na direção dela.

Numa manobra arriscada, ele ativa os estabilizadores dos dois pulsos, disparando duas rajadas simultâneas. Sua pontaria se mostra impecável, e os dois monstros caem no chão, fulminados.

Emelin termina sua conjuração e invoca uma forte onda de choque seletiva, fazendo com que todos os monstros num raio de 100 metros sejam lançados para longe.

Aproveitando que os invasores estão caídos, os soldados carmim atacam, estando agora em clara vantagem. Em poucos minutos, os monstros restantes são erradicados.

Vitoriosos, os soldados soltam brados de alegria.

Belísar luta para recobrar o fôlego, enquanto olha de um lado para o outro, mal acreditando na cena ao redor. Assim como ele, seus soldados estão exaustos, mas felizmente não houve baixas desta vez.

Falcione e Emelin se aproximam, ambas apresentando pequenos cortes e arranhões, mas fora isso, pareciam bem.

– O que significa isso? – Belísar pergunta. – A mobilidade deles não deveria ser limitada? As fronteiras com as outras províncias deveriam estar seguras, eles não deveriam ser capazes de se afastar tanto do ponto zero. Como vieram parar aqui?

– Com o artefato desativado, eles devem estar mais poderosos – diz Falcione.

– Não pode ser isso – retruca Emelin. – O artefato apenas dificultava a abertura de portais para o mundo deles.

– Então, como explica o fato de essas aberrações terem chegado tão longe? – Belísar pergunta.

– Talvez tenham… o senhor sabe… encontrado uma forma de… compensar.

Falcione franze o cenho.

– Compensar? Como?

– Quando os pulsos atingem determinada frequência, é possível recondensar a transcendência. Usando esse artifício, a energia é transferida para o canal compatível de maior proximidade. As pontes de vento imperiais funcionam com um princípio similar. Ou funcionavam, antes do conselheiro Raduar destruir todas as que tinham em Ebora. Não sei qual é a natureza da energia usada pelos demônios, mas esse processo de recondensação pode perfeitamente viabilizar uma ruptura no…

– Ah! Pare! – Falcione exclama, irritada. Você está fazendo minha cabeça doer!

– Oh, desculpe! Eu…

– Não entendi tudo o que você disse – responde Belísar –, mas se nós conseguimos manipular energia desse modo que você explicou, faz todo sentido eles também poderem. Resta saber por que mandariam essas monstruosidades para cá. Quero dizer, estamos dentro da Província Central, não estamos?

– Sim – responde Falcione. – Estamos há pelo menos cinco quilômetros além da fronteira.

Ele olha ao redor.

– Para onde esses filhos da mãe estão querendo ir, afinal?

– Deve ter algo por aqui que eles querem – responde Falcione.

– Só tem uma coisa que esses malditos querem – retruca o general. – Nos esmagar! Eles mesmos fazem questão de dizer isso!

– Podem estar querendo encontrar algo para usar contra nós.

– Ou – diz Emelin –, talvez isso seja… o senhor sabe… uma distração…

Belísar olha para a tenente, pensativo.

– Isso faz sentido. Esse grupo era barulhento e se movia devagar.

– Sim, senhor – responde ela, parecendo incrivelmente feliz por ele concordar com o raciocínio dela. – Vou contatar a base e verificar se eles detectaram mais alguma incursão desde que partimos para cá.

Belísar se vira para Falcione.

– Se estivessem atrás de alguma coisa por aqui, faz alguma ideia do que poderia ser? – Ele faz um gesto de cabeça na direção em que os monstros estavam marchando. – O que tem no fim dessa trilha?

– Não acho que o alvo possa ser aqui por perto. Adiante só existem algumas comunidades rurais.

Ele franze o cenho.

– Onde estão os guardas do império, afinal? Não deveríamos ser capazes de entrar nos domínios deles assim tão fácil.

– Pelo que sabemos – responde Falcione –, houve um outro ataque mais ao leste. Acredito que as tropas que deveriam guardar essa região foram mobilizadas para lá para ajudar. A nova imperatriz ainda não estabeleceu completamente sua autoridade. Não acredito que tenham contingente o suficiente para reforçar essa fronteira.

– O que sabemos sobre essa imperatriz?

Emelin limpa a garganta.

– Temos… quero dizer… os sábios possuem vários arquivos sobre ela. O que o senhor gostaria de saber?

– Qual a origem dela?

– Valena Delafortuna ela era uma órfã lutando para sobreviver nas ruas da capital. Recebeu a marca da Fênix com 15 anos. Isso ocorreu três anos atrás. Desde então ela vem sendo treinada pela Guarda Imperial para assumir o trono. Quando o imperador morreu, ela inda não tinha atingido a maioridade, então não pôde assumir o trono imediatamente. Ela desapareceu quando o palácio imperial sofreu um ataque, supostamente dirigido a ela. Durante sua ausência, ocorreu o golpe de estado onde os conselheiros imperiais assumiram o poder e dividiram o país.

– O que trouxe Raduar para cá – conclui ele.

– Felizmente – diz Falcione –, o senhor conseguiu se livrar dele antes que pusesse seus planos em prática.

– Fico imaginando – ele responde – se não era melhor ter Raduar comandando a província do que ver nosso povo lutando por suas vidas dessa forma.

– Os demônios teriam aparecido, não importa quem estivesse no comando. E pelo que sabemos de Raduar, o maldito seria bem capaz de se unir a eles ao invés de combatê-los, como o senhor fez.

Ele olha para Emelin.

– Como ela chegou ao poder?

– Valena estava foragida na época do golpe de estado. Ela reapareceu quando o homem que aparentemente liderava os golpistas foi morto. Como ela já tinha a marca da Fênix, era a escolha perfeita para assumir o trono, principalmente depois de todo o terror e confusão causados pelo golpe. O povo aceitou a liderança dela de imediato. Aparentemente ela é muito popular, apesar de ser jovem e inexperiente.

– Ou seja – conclui Falcione –, ela recebeu tudo de mão beijada.

– Sim – concorda Emelin –, ela não precisou lutar para chegar ao poder, nem nada do gênero. Mas, supostamente, a Grande Fênix apenas concede sua marca à pessoa mais digna de assumir o trono.

Belísar estreita os olhos.

– A Fênix também não deveria permitir que demônios invadissem Ebora, portanto ela não me parece muito confiável, no momento.

– Senhor! – Emelin exclama, horrorizada. – Falando dessa forma, o senhor corre o risco de atrair a ira dela!

Falcione solta uma exclamação de descrença e balança a cabeça. Emelin olha para a outra e hesita por um momento, antes de retomar o assunto original.

– De qualquer forma, pelo que sabemos, Valena não é negligente. Ela vem trabalhando com afinco na reconstrução da província desde sua aclamação.

– Ela tem o apoio das outras províncias? – Belísar pergunta.

– Não até onde sabemos. A Sidéria e as Rochosas são reconhecidamente hostis e já tentaram invadir a Província Central. Lemoran e Halias se mantém distantes, não temos muita informação sobre o que ocorre por lá. Mesembria parece ser neutra, pois é a única província além de Ebora não dominada pelos golpistas.

– Quem diria que as pessoas de lá deixariam seus preciosos livros de lado e teriam culhões para lutar contra um déspota – comenta Falcione.

– Ei! – Emelin protesta. – Ser um sábio não significa ser covarde!

Falcione lança um olhar surpreso à tenente.

– Estou vendo. Não imaginava que você pudesse ter culhão para responder alguém desse jeito.

– Oh! Eu… eu…

– Relaxe – diz Falcione.

– Então – diz Belísar –, a imperatriz não tem muitos aliados?

– Bem… ela tem os recursos da Província Central à disposição. Era a província mais rica e desenvolvida do império antes do golpe. Dizem que o exército deles tem heróis poderosos, além de artefatos místicos muito raros.

Falcione volta a olhar para a tenente.

– Você está surpreendentemente bem informada sobre o assunto.

– Isso é ruim? Quero dizer… aqueles documentos não eram confidenciais, eram? As ordens eram para organizarmos as anotações do sábio Norlando e eu ajudei a…

– Está tudo bem, tenente – responde Belísar. – Falcione disse aquilo como um elogio.

– É mesmo? Puxa! Quero dizer, obrigada!

Falcione aperta os lábios e balança a cabeça, desviando o olhar.

– Alguma possibilidade de a imperatriz estar envolvida com os demônios? – Belísar pergunta.

– Existem relatos de pessoas que avistaram um homem com aparência demoníaca nas masmorras da capital do império – responde a tenente. – Dizem que Valena capturou o monstro quando ele tentou matá-la na Sidéria. Mas não há nenhuma evidência conclusiva de que Valena tenha qualquer interesse em Ebora.

– Ela provavelmente tem interesse em unificar o império, de forma que possa governar todo o continente – sugere Falcione.

– Creio que, no momento, os ataques das outras províncias são uma preocupação maior – responde Emelin.

– De qualquer forma – diz Belísar –, não poderemos contar com a ajuda da imperatriz. Temos que impedir que os demônios voltem a mandar monstros para fora de Ebora.

– Mas… como? – Emelin pergunta.

Falcione olha para ele, surpresa.

– O senhor está considerando aquela ideia dos protetores?

– Parece ser a única alternativa. Não temos como monitorar tantas centenas de quilômetros e combater os invasores ao mesmo tempo.

– O senhor acha que podemos confiar neles?

– Não, não acho. Mas nossas escolhas estão ficando limitadas. Se os demônios aumentarem ainda mais sua área de influência, será um caos. Já basta eles controlarem metade de Ebora. Não podemos permitir que expandam seus domínios.

♦ ♦ ♦

Uma enorme muralha foi erguida nos arredores de Mercília. A enorme estrutura serpenteia pelos vales e montanhas, se estendendo para ambos os lados a perder de vista.

– Então essa é a muralha carmim?

O homem que está comentando o óbvio se chama Alasdio Cebine, e é um dos primeiros rebeldes que Sulana conheceu quando se mudou para esta região. Tem fartos cabelos negros e encaracolados que lhe caem pelo pescoço e ombros, além de um rosto que parece pequeno e murcho no meio daquela cabeleira toda. Cultiva um enorme bigode que Sulana classificaria como ridículo caso viesse a se dar ao trabalho de pensar sobre isso e tem uma voz engraçada, anasalada, o que torna bastante difícil a tarefa de levar o que ele fala a sério.

– Levaria anos para construir uma coisa dessas.

Quem responde é a mulher que boa parte dos rebeldes, incluindo Sulana, chama de “professora”. Tratava-se de uma loira pequena, de olhos azuis, que usa enormes óculos e veste um manto verde, carregando um enorme livro debaixo do braço. O nome dela é Arluria Donatine, mas atende pelo apelido de “Lura”.

Estudantes de artes místicas não são muito comuns na rebelião, pois normalmente preferem perseguir sonhos de glória e grandeza ao norte, onde a inteligência é muito valorizada. Mas Lura gosta de dizer que se importa mais com os amigos do que com sua própria carreira, por isso prefere permanecer entre eles.

– Só o trabalho de cortar e transportar todo esse granito seria uma tarefa hercúlea – conclui ela.

A muralha tem um inegável aspecto estético, com pouco mais de oito metros de altura e cheia de ameias em toda sua extensão. Parece perfeita demais para ter sido construída por mãos humanas.

– Dizem que o General Vermelho levantou esse muro em um dia – comenta Ronam. – Cercou toda a região de Mercília desde Tinamar até Bariale, que pelo que sabemos têm muros bem mais altos que esse.

– Esse homem deve ser mesmo muito poderoso – conclui Petroir Gadama, um sujeito muito magro, mas que possui uma agilidade fora do comum, sendo especialista em ataques furtivos. Tem cabelos e olhos castanhos e parece estar o tempo todo com uma expressão de espanto no rosto, devido ao formato dos olhos que dá a impressão de estarem sempre arregalados.

– Não estou vendo guardas – diz Sulana, analisando os arredores com atenção.

– A distração que nossos amigos fizeram deve ter funcionando – conclui Ronam, alegre.

– Espero que estejam bem – comenta Lura.

– Como vamos fazer isso? – Alasdio olha para o outros. – Não podemos simplesmente nos aproximar e… – Ele se interrompe ao ver Sulana caminhando, determinada, na direção da muralha. – Ei, o que você está fazendo?

Ela o ignora e continua seguindo em frente. Sua audição aguçada, no entanto, consegue captar claramente a conversa sussurrada que eles têm a seguir.

– Essa mulher é um perigo – comenta Petroir. – Vai acabar nos matando.

– Vamos – diz Ronam, se preparando para seguir atrás de Sulana.

– Você confia mesmo nela, não? – Lura pergunta.

– Claro. Os instintos dela são melhores que todos os nossos combinados.

– Que eu saiba – retruca Petroir –, os instintos da tribo dela foram concedidos por uma das Grandes Entidades com o único objetivo de matar seus oponentes.

– O que é a vida sem um pouco de aventura? – Alasdio pergunta, rindo.

Sulana não se importa com aquela desconfiança. Aquilo acontece em qualquer lugar em que esteja desde a sua infância, por isso, ela acabou aprendendo a não se deixar afetar.

Os outros quatro a alcançam quando ela está examinando com atenção as pedras da muralha. Olhando de perto, a construção parece ainda mais impressionante e imponente, as pedras colocadas uma sobre a outra com perfeição, sem nenhuma fresta aparente. A superfície da parede, apesar de um pouco irregular, é uniforme em toda a construção, como se todas as pedras tivessem sido cortadas com a mesma ferramenta a partir do mesmo bloco sólido de granito. Um bloco que teria que ser impossivelmente grande.

Alasdio coça o bigode.

– Será que encontraremos pessoas tentando fugir para o lado de cá?

– É provável – responde Ronam. – Por que razão alguém construiria um negócio como esse, se não fosse para manter as pessoas do lado de dentro?

– Para manter invasores do lado de fora, talvez? – Lura retruca.

Ronam se aproxima e encosta a mão na parede.

– Olha só, é tão liso que é praticamente impossível de escalar. Lura, acho que vamos precisar daquele seu… – Ele se interrompe e arregala os olhos. – Sulana, o que está fazendo? Vai acabar caindo! Desça daí!

Para a surpresa dos rebeldes, Sulana escala a parede de pedras praticamente lisas com grande facilidade, levando poucos segundos para chegar até as ameias e se projetar para o outro lado da amurada.

Dali de cima é possível avistar dezenas de quilômetros em todas as direções. Sulana não sabia exatamente o que esperar, mas o aspecto dos domínios do general é completamente… normal.

Se aproximando da outra amurada, ela olha para baixo por entre as ameias e vê uma enorme escada encostada na parede, próximo de onde ela está. Um pouco mais para o lado havia outra, e depois outra. Do outro lado também há escadas similares encostadas na muralha, em intervalos um tanto irregulares.

– Se o propósito desse muro é manter gente presa do lado de dentro, estão fazendo um péssimo trabalho – comenta ela, em voz alta o suficiente para os outros a ouvirem, lá de baixo.

– Por quê? – Ronam quer saber.

Ignorando a pergunta, ela caminha até uma das escadas, que é longa o suficiente para chegar a um palmo da amurada. Inclinando-se pela abertura, ela segura a madeira e testa seu peso. Vendo que não é tão pesada quanto parece, ela respira fundo e a puxa para cima.

– Sulana? – Ronam chama, lá de baixo. – O que está havendo?

Ela segura a escada sobre sua cabeça por um momento antes de começar a baixá-la, devagar, para o outro lado.

Os rebeldes soltam exclamações de surpresa.

– Onde foi que você conseguiu isso?! – Ronam pergunta, enquanto ajuda a ajeitar a escada numa posição adequada para que eles possam subir.

– Tem um monte dessas apoiadas na parede do lado de dentro. Se tivesse alguém querendo fugir, já teria saído daqui há muito tempo.

– Fascinante – exclama Lura.

– Não é marcenaria normal – diz Sulana.

– Tem razão – responde a professora. – Isso foi construído por meios místicos.

– Bem, já que estamos aqui, vamos em frente – diz Ronam, começando a subir.

Enquanto isso, Sulana se apoia na amurada do outro lado e observa a paisagem.

Tudo parece normal e tranquilo. Florestas, rios, montanhas, plantações, uma ou outra construção ocasional, como casas e moinhos de vento. A única coisa realmente estranha ali é aquela muralha, bem como as centenas de escadas apoiadas na parede pelo lado de dentro.

No que estamos nos metendo? Quantas surpresas mais o General Vermelho pode ter para nós?

– Uau! Olha que vista! – Ronam exclama.

– Sim, é bonito – concorda Lura. – Também parece… absolutamente normal.

– O que você esperava? – Petroir pergunta. – Campos de trabalhos forçados?

– Eu não fazia ideia do que esperar. Mas isso? É até meio que…

– Frustrante? – Ronam sugere.

– Sim, um pouco – concorda ela.

– Não sei quanto a vocês, mas essa vista está me dando fome – diz Alasdio, com um enorme sorriso. – Que tal pararmos para o almoço?

Ronam olha para ele, surpreso.

– Aqui em cima?

– Por que não? Pode ser nossa última chance. Vai saber o que vamos encontrar lá embaixo.

– Não seria mais prudente descer e fazer a refeição lá embaixo, do lado de fora? – Lura sugere.

– Ah, mas a vista aqui é tão inspiradora – retruca Alasdio. – A carne seca vai ficar tão mais gostosa.

– Eu topo – diz Petroir.

Ronam olha de um para o outro, perplexo.

– Sério que vocês querem fazer isso?

– Aqui de cima temos vista privilegiada – comenta Sulana. – Podemos ver qualquer coisa que se aproximar e as ameias dificultam a visão de quem estiver lá embaixo.

– Hummm… – Lura murmura, aproximando-se da amurada. – Imagino que observar um pouco o território inimigo antes de invadi-lo não seja uma ideia tão ruim…

Ronam solta um suspiro e levanta as mãos.

– Tudo bem, vocês me convenceram.

– Vamos lá, pessoal, hora do rango! – Alasdio exclama.

– Mas evitem ficar todos juntos – diz Petroir. – Assim, se formos pegos de surpresa por um ataque aéreo, teremos mais chance de sobreviver.

– E fiquem atentos para o caso de os vigias voltarem – comenta Lura.

Os rebeldes se espalham pelo topo da muralha. Sulana vê Ronam se apoiar a uma das amuradas, vigiando o território inimigo enquanto tira um pedaço de pão de sua mochila.

Ela pega um tufax de sua própria bolsa, que está carregando nas costas, e dá uma mordida, se aproximando de Ronam devagar enquanto corre os olhos pelos domínios do general.

– Ei – diz ele, lançando-lhe um sorriso. Então ele dá uma olhada para o que ela está comendo e pisca, surpreso. – Isso aí é tudo o que você trouxe para comer? Como consegue manter sua energia só com isso? Eu trouxe bastante carne seca aqui, quer um pouco?

– Estou bem.

Ele a encara, com atenção.

– Você parece preocupada ultimamente. Quer conversar?

– Eu… não sei.

– Deve ser algo importante, nunca tinha visto você parecendo indecisa antes. Dizem que a melhor forma de resolver problemas é conversando. O que se passa por sua cabeça?

Ela dá uma outra mordida na fruta e observa o horizonte enquanto mastiga. Então se volta para ele.

– Por que você luta?

– Nessa guerra, você diz?

Ela assente.

– Porque é a coisa certa a ser feita. Tem um tirano escravizando nosso povo e forçando as pessoas a fazerem coisas contra a vontade. Alguém tem que dar um fim nisso.

– Como sabemos que ele faz isso?

– Como é?

Ela faz um gesto na direção das terras além da muralha.

– Alguém já viu o general controlar a mente de alguém?

– Não que eu saiba, mas você não se lembra de todos aqueles ex-companheiros contra os quais tivemos que lutar? Que outra prova você precisa além dessa?

Ela dá mais uma mordida na fruta, pensativa, antes de retrucar:

– Alguém tentou conversar com algum deles? Depois que foram… escravizados?

– Por que faríamos isso? Eles levantaram armas contra nós!

Ela volta a olhar para o horizonte.

– Sim, é assim que nós somos, não é? Se alguém se coloca no nosso caminho, nós matamos.

– Como pode falar um negócio desse? – Ronam pergunta, horrorizado. – O que você tem? Aconteceu alguma coisa?

– É o que todos falam de mim, não é? Que eu não me importo com nada além de lutar?

– Mas isso não é verdade…

– E estão certos. Eu não me importo mesmo. Eu quero lutar, eu preciso disso. Está no meu sangue. O resto não me importa.

– Que raio? Se não se importasse, você não estaria puxando esse assunto!

– Não me importo. Eu sou assim, mas…

– Mas…?

Ela volta a olhar para ele.

– Mas vocês, não.

Ele pisca, confuso.

– O quê? Do que está falando?

– Que provas nós temos de que o general é mau?

– Não pode estar falando sério!

– Quando encontramos ele em Revoada, o que ele fez de errado?

– Quer dizer, além de invadir a cidade, render todo mundo e levar um prisioneiro?

– Ele estava lá para enfrentar os monstros.

Ronam agora estava perplexo.

– Olha, eu não sei o que está acontecendo com você, mas estou ficando preocupado. Os monstros foram um contratempo! Ele decidiu aniquilar todos por terem interrompido os planos de conquista dele!

Sulana se lembra daquele primeiro encontro que teve com o general.

“Quanto a você, acalme-se, agora não é hora para isso”, havia dito ele.

“Você não acha mesmo que vou deixar que faça o que quiser com essa cidade, não é?”, ela tinha retrucado.

“Não, não acho, e no seu lugar eu faria a mesma coisa. Mas, se puder me ouvir por um momento…”

“O que pretende fazer com toda essa gente?”

“Temos que tirar todos daqui. E rápido.”

“Por quê?”

E então tinha vindo o alerta de que os monstros estavam atacando.

Ao ver Sulana ficar tanto tempo em silêncio, Ronam fica ainda mais preocupado.

– Sulana, tem certeza de que está bem? Podemos voltar, se você quiser. Deixamos essa missão para outro dia.

Ela o encara, surpresa.

– Você faria isso?

– Por você? Claro que sim, sem pensar duas vezes!

– Achei que estava preocupado com Giarle.

– E estou, mas me preocupo com você também. Venha, vamos chamar os outros.

– Espere!

– O que foi?

Ela hesita por um instante.

– Nada. Deixa para lá. Estou bem, vamos continuar.

– Tem certeza?

– Sim. Vamos descobrir para onde levaram Giarle.

Ela se volta para a amurada e dá outra mordida no tufax.

Não sei o que está acontecendo, mas as respostas podem estar lá. Então, é para lá que eu vou.

— Fim do capítulo 4 —
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