Publicado em 15/07/2019 | ||
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6. Libertação
Sulana acorda na manhã seguinte sentindo-se bem melhor. O abdômen ainda lateja um pouco, mas ela consegue ficar em pé e caminhar pelo quarto sem muitos problemas. Abrindo a janela, ela olha para fora. O sol ainda não nasceu, mas o dia já está clareando.
Com um suspiro, ela olha para dentro e estaca, surpresa, ao ver algo sobre a cômoda. Trata-se de um volume envolvido em um tecido fino como seda e amarrado com uma fita vermelha.
Como isso veio parar aqui? Espere… o que aconteceu ontem à noite?
Suas memórias estão confusas, como se tivesse uma névoa mantendo os acontecimentos além de seu alcance, mas não o suficiente para que não pudesse ter vislumbres ocasionais.
Derione me trouxe de volta. Ele cuidou do meu…
Ela abaixa os olhos e percebe que está usando apenas a faixa de tecido que lhe envolve os seios e uma velha calça esgarçada e com diversos furos nas pernas.
O ferimento no ventre havia se fechado, deixando em seu lugar apenas uma pronunciada e avermelhada cicatriz. Ao tentar tocar o local, ela faz uma careta. A pele está muito mais sensível do que imaginava.
Certo. Derione derramou alguma coisa aqui para fechar o corte. Aí eu reclamei com ele por ter me mandado para aquela praia. Mandei que ele me deixasse em paz.
No entanto, por mais que ela tente, não consegue se lembrar direito dos detalhes.
– Mas que raios!
Sulana volta a olhar para o pacote. Tinha que ser coisa de Derione, ninguém mais vem até essa cabana além dele.
O que pode ser isso? Algum tipo de presente? Desde quando aquele infeliz faz esse tipo de coisa?
A impressão de que ele pode ter deixado aquilo ali para manipulá-la de alguma forma faz com que sua raiva retorne com força total. Ela agarra o pacote e o arremessa pela janela, com força. O esforço lhe causa uma forte pontada no ventre.
– Ai! Porcaria! Que meleca!
Ela leva a mão ao ventre, apenas para retirá-la de sopetão, ao sentir o desconforto causado pelo toque na pele sensível.
– Ugh!
Maldito seja, Derione! Ah, quer saber, esquece! Para o inferno com isso tudo!
Irritada, ela caminha para fora da cabana.
Os pássaros cantam, fazendo festa, no topo das árvores, como que caçoando de seu desconforto. Uma leve névoa cobre tudo, dando à paisagem um tom misterioso.
Sulana tenta fazer alguns alongamentos, mas desiste quando percebe que qualquer esforço mais intenso causa fisgadas no ferimento.
– Aff…, mas que inferno!
Então ela agarra uma sacola e caminha até a floresta, o ar frio da manhã penetrando em seus pulmões de forma prazerosa, espantando sua irritação.
Ah, aí estão vocês!
Aproximando-se de uma árvore, ela admira um tufax de um galho baixo. Alegremente, ela a colhe e dá uma mordida. A fruta ainda não está completamente madura, o gosto bem mais ácido do que o normal.
– Hummm…
Ela devora o tufax em menos de um minuto, um pouco surpresa com o próprio apetite. Então, após colher frutas suficientes para encher a sacola, ela olha ao redor, tentando decidir o que fazer a seguir.
Eu devia ir para o abrigo, mas não estou com a mínima vontade. O que há comigo hoje? Já fui ferida antes várias vezes, nunca fiquei assim.
A luta contra a mulher de cabeça raspada, no dia anterior, volta à sua mente. Ela já tinha se perguntado várias vezes qual seria a sensação de se perder completamente para a fúria, como aconteceu com os outros de seu clã. Como aconteceu com seus pais.
Ela imaginava que, quando estivesse às portas da morte, perderia o controle sobre seu corpo e entraria em um frenesi assassino. Mas, surpreendentemente, não foi isso que aconteceu no dia anterior. A febre havia atingido níveis muito além do que experimentou antes, era verdade, mas não houve perda de consciência ou descontrole.
Derione deve ter usado um daqueles truques dele, para garantir que eu não matasse os soldados. O filho da mãe! Depois de tanto sermão sobre não querer que eu “suje minhas mãos de sangue”, não podia esperar outra coisa dele.
Mas o que realmente a incomoda não é o que aconteceu depois daquela infeliz lhe trespassar com a espada, e sim, o que ocorreu antes. Ela ainda pode sentir as vibrações daquele maldito sino lhe percorrendo o corpo. Não imaginava que existisse um artefato como aquele, capaz de afetá-la de forma tão intensa e imediata.
Já lutou contra inúmeros oponentes em sua vida e eles haviam tentado de tudo: fazê-la dormir, estourar seus tímpanos, envenená-la, afogá-la, asfixiá-la… a lista era grande.
Mas Sulana havia herdado de seus pais uma resistência muito além do normal, e nenhum daqueles ataques havia lhe causado preocupações. Até hoje.
Eu podia ter morrido.
A sacola de couro escapa de suas mãos enquanto ela olha, sem ver, os arbustos à sua frente.
Já havia sido ferida em batalha várias vezes, mas nunca chegara tão perto da morte. A súbita realização de que você não é tão invencível quanto imaginava é um pouco assustadora.
Então… é isso? Esse é o meu limite? Finalmente descobri até onde posso chegar? Não é o que eu esperava. Isso é… frustrante!
Seu olhar é atraído para a sacola cheia de frutas no chão. Abaixando-se, ela a agarra e faz menção de arremessá-la com toda a força. Mas o súbito latejar no ventre faz com que desista do movimento.
Respirando fundo, ela fecha os olhos por um momento.
Não, isso não é meu limite. Não vou parar. Isso não vai me impedir de seguir em frente. Não vou deixar aquela maldita mulher me intimidar desse jeito!
Subitamente, a imagem do rosto sorridente de Petroir vem à sua mente. Ela sacode a cabeça, tentando se livrar da sensação ruim que toma conta de seu peito. É algo tão estranho à sua natureza que não sabe muito bem como lidar com isso.
O que estou fazendo? Se eu continuar com essa vida, não encontrarei nada além do mesmo fim que ele.
Ela estreita os olhos.
E por que isso, de repente, parece tão ruim? A sensação de vencer uma luta é tão gratificante que sempre me foi suficiente. Eu vivo na expectativa de voltar a lutar de novo. Enquanto tiver um bom desafio para enfrentar, não preciso me preocupar com mais nada.
Mas por que nada disso me parece mais o bastante? Eu nem mesmo gostava daquele cara, porcaria!
Ela respira fundo, tentando deixar aqueles pensamentos de lado, mas eles insistem em retornar.
Agora ela se sente… incompleta. Nem mesmo a possibilidade de vir a enfrentar alguém tão perigoso quanto o General Vermelho lhe parece atraente.
E, ainda por cima, tem Derione.
Estivera tão furiosa com ele que, se não fosse pelo ferimento, teria o feito em pedaços. Ou, pelo menos tentado. Por alguma razão, pensar naquela possibilidade apenas faz com que se sinta pior ainda.
Será que Derione está conseguindo o que queria? Fazer com que eu amoleça? Perca meus instintos? Será que é por isso que me esforcei tanto para poupar a vida daquela infeliz e dos soldados dela? De onde veio essa… aversão pela morte? Como isso pode ser mais forte que os instintos da febre?
Sulana se recorda da noite anterior, quando disse a Derione que não queria tirar a vida de ninguém na frente dele. Com uma careta, ela se dá conta de que aquilo não foi uma mentira. Se não fosse por essa maldita sensação na boca do estômago, ela mataria primeiro e arcaria com as consequências depois, é assim que ela é, e é assim que sempre foi. No entanto, por alguma razão, aquilo não parece lhe servir mais.
Tem algo errado. Algo está me faltando. Mas o que pode ser?
Tentando mais uma vez se livrar daqueles pensamentos, ela sacode a cabeça e olha para a trilha à sua direita.
Deveria estar a caminho do abrigo. Não entendo essa vontade de não fazer nada! De onde é que veio isso?
Colhendo mais uma fruta, ela começa a comê-la enquanto pega novamente a sacola cheia e caminha de volta à cabana.
Para sua frustração, até o tufax parece estar com um sabor diferente agora.
Quando chega, o sol já está alto no céu, o clima, bem mais quente e o ferimento não incomoda mais tanto quanto antes.
Então uma estranha curiosidade toma conta dela, fazendo-a procurar pelo “presente” de Derione.
Devia ter jogado essa coisa no rio.
Ela olha fixamente para o embrulho por um instante e franze o cenho.
Será que esse negócio tem algo a ver com o fato de eu estar tão estranha? Derione pode muito bem ter lançado algum feitiço nisso, não é? Para me amolecer.
Ela encara o embrulho por um momento.
Tenho que me livrar disso!
Determinada, ela agarra o pacote e sai caminhando, se afastando da cabana e tomando a direção do rio. Mas então estaca e olha para o objeto por um longo tempo.
Finalmente, com impaciência, ela agarra a fita e a puxa com força, fazendo-a rasgar-se. Com gestos bruscos, puxa as pontas do tecido branco e o que vê faz seu coração dar um pulo. Com o susto, o embrulho acaba escorregando de suas mãos e caindo sobre a grama verdejante. Confusa, ela se ajoelha e olha para o conteúdo do embrulho aberto, mal acreditando no que vê.
São as roupas que tinha usado durante aquele sonho, que depois descobrira que não tinha sido um sonho.
Hesitante, ela acaricia aquele tecido com os dedos, sentindo a textura suave. Então, percebendo, de repente, o que está fazendo, ela se levanta de forma desajeitada. Tentando se afastar o máximo possível daquelas coisas, ela caminha de costas até chocar-se com uma árvore.
– Ugh!
Ela volta a soltar um suspiro.
O infeliz deve mesmo ter jogado algum feitiço em mim. Não tem outra explicação para me sentir assim só por estar perto dessa coisa.
Tenho que sair daqui. Rápido.
Então, sem se importar com o fato de estar usando apenas a faixa que cobre os seios e a calça que normalmente veste apenas para dormir, ela sai correndo, descalça, pela floresta.
♦ ♦ ♦
De volta a esta maldita praia.
Belísar começa a soltar um suspiro desanimado, quando Sagante passa correndo a seu lado, tropeça em alguma coisa e cai de cara na areia. Levantando a cabeça, o garoto olha para o pai, com expressão de dor, e começa a chorar.
– Aaaaaaiiiii!!
– Ei! Calma! – Belísar se ajoelha ao lado do garoto. – Machucou onde? O pé?
– Sim! Está doendo!
– Tudo bem, calma. Me deixe dar uma olhada.
Ele examina o pé do garoto com atenção e não encontra nada muito grave. Torcendo para que a exaustão não esteja nublando seus sentidos, Belísar se levanta e estende a mão para o filho.
– Aqui, experimente se levantar. Isso! Está doendo ainda?
– Um pouco.
– Consegue andar?
– Acho que sim.
– Sagante! – A voz de Vênega vem de algum lugar entre as palmeiras. – Cadê você?
– Já estou indo – responde Sagante, antes de sair correndo, esquecendo-se completamente do tombo.
Belísar observa o garoto se afastar com um sorriso.
Não seria bom se todos os problemas pudessem ser resolvidos tão fácil assim?
– Você leva tanto jeito com eles!
Ele vira a cabeça para ver sua esposa se aproximando, com aquele sorriso amável no rosto.
– Mas precisa ser um pouco mais firme – completou ela. – Deveria ter ralhado com ele para que não fique correndo por aí sem olhar para onde vai.
– Não acredito que isso seja algo que possa ser aprendido dessa forma. Algumas coisas na vida a gente só entende quando sente as consequências na pele.
Ela o abraça pela cintura, com um suspiro de contentamento, e os dois olham para Baliorge, que pratica artes marciais na areia.
O rapaz parecia não se cansar de repetir os movimentos que Sulana havia ensinado. Com o passar das semanas, parecia dominar cada vez melhor aqueles golpes.
Enquanto isso, Vênega e Sagante correm por entre as palmeiras perseguindo algum inimigo imaginário.
– Ele está indo para o forte!
– Essa não! Temos que alcançar ele, senão o príncipe não vai ter nenhuma chance!
Belísar sorri novamente ao ouvir as vozes animadas de seus filhos. Tudo está tão calmo, tão pacífico.
Nem parece que tem um exército inteiro de prontidão a pouca distância dali.
No horizonte, o sol nascente finalmente sai de trás das nuvens. Os raios de luz refletem na superfície da água do mar, formando um lindo e multicolorido espetáculo.
– Ei, seus pirralhos! – Baliorge chama os irmãos. – Olhem para aquilo!
– O quê?? – Vênega e Sagante respondem em uníssono.
Baliorge aponta para o mar e os jovens soltam uma exclamação de encantamento, antes de correrem para a praia para apreciar a cena junto ao irmão mais velho.
– Papai! Mamãe! Estão vendo aquilo?
– Sim, querida – responde Zelmira. É lindo, não é?
– Demais!
Enquanto os três irmãos conversam, excitados, Zelmira se vira para o marido.
– Como está se sentindo?
– Melhor. Minhas forças estão voltando. – Ele corre os dedos pelos braços dela, que ainda o envolvem pela cintura. – Meus dedos já estão voltando a ficar sensíveis de novo.
– Deve ser horrível perder a capacidade de sentir as coisas pelo toque.
– Não é tão horrível quanto o zumbido no ouvido. Felizmente, dessa vez não precisei gastar tanta energia, então não fiquei tão mal quanto antes.
Os raios do sol aquecem o ar, trazendo a expectativa de um ótimo dia. Baliorge retoma o exercício que havia interrompido, dando um soco no ar, antes de dar meia volta, projetando o cotovelo para acertar um inimigo imaginário do outro lado.
– Hááá!!!
Zelmira se volta para Belísar.
– Aquela protetora não deveria estar por aqui? Quero dizer, uma delas sempre aparece quando a gente vem para cá.
– Nem sempre. O objetivo de Elinora é destruir os responsáveis por todo esse caos no nosso país, então ela não fica me vigiando o tempo todo. Na verdade, na maior parte do tempo ela está lutando. Nossa campanha de expansão e a construção dos muros só teve sucesso até agora por causa dela.
– Ótimo. Quanto menos mulheres bonitas se jogando contra você, melhor.
Ele solta uma risada e aproxima o rosto do dela, beijando-lhe suavemente os lábios.
– Eu nem sei o que eu seria capaz de fazer se aquela arrogante mandona ficasse me chateando o tempo todo.
– E quanto àquela outra? “Sulana” é o nome dela, não é?
Belísar se desvencilha do abraço e se abaixa para pegar uma pequena concha no meio da areia.
– Sulana não é uma protetora.
– O quê? Mas ela… quero dizer… as roupas que ela usava…
– Eu também achei que fosse. Mas depois de conversar com Falcione ontem eu me dei conta de que já havia me encontrado com ela antes. – Ele faz uma pausa. – Ela faz parte da rebelião.
– Mas, como? Eles encontraram alguma forma de se infiltrar? Como ela chegou até aqui?
– Não sei. Norlando tem algumas teorias, mas nada que faça muito sentido. Falcione a encontrou perambulando pelos campos do lado de dentro das muralhas. Tentou atacá-la e acabou… daquele jeito.
– Criador supremo! Então foi isso o que aconteceu com ela?
– Sim. Sulana demonstrou uma resiliência incomum na batalha. Os soldados que se renderam, nada sofreram, mas você sabe como é Falcione.
– Nunca desiste.
– Exato. Ela acabou tomando uma surra brutal. Sulana desapareceu depois da luta. E sem deixar vestígios. É bem possível que não tenha sobrevivido aos ferimentos que sofreu. Não sabemos o que estava fazendo lá, mas aparentemente havia outros rebeldes com ela. Parece que ela lutou contra Falcione para que os outros pudessem escapar. – Ele faz uma pausa e solta um suspiro frustrado. – Nada disso faz sentido, os rebeldes não deveriam ser capazes nem de se aproximar da muralha.
– Tente não pensar muito nisso, querido. Você precisa se concentrar em ficar melhor. Depois pode investigar essa história com calma.
– Mamãe! Mamãe!
– O que foi, meus queridos?
– Vem cá! Vem cá!
– Vem ver, mamãe! Encontramos uma coisa sensacional!
Zelmira se adianta e dá um beijo carinhoso nos lábios do marido antes de se afastar na direção das crianças. Ele não consegue deixar de notar a provocante ondulação daqueles quadris, que sempre o afeta, até mesmo em momentos de grande exaustão.
O vestido de veludo cor de vinho que ela está usando tem um amplo decote e adere a suas curvas de maneira sutil, mas muito atraente. Hoje em dia é muito raro mulheres usarem aquele tipo antiquado de traje, exceto quando queriam parecer bonitas. E Zelmira era uma verdadeira especialista naquilo. Tem um corpo excepcional, apesar da idade, e sabe como valorizá-lo.
Aquela parte dela, ousada e provocante, existia desde sempre, era uma característica que apresentava desde a infância. No entanto, após o… envolvimento com Belísar, ela havia se tornado também uma pessoa atenciosa, dedicada e amorosa. Ela é a esposa perfeita, a mulher dos sonhos de qualquer homem.
Infelizmente, essa personalidade doce é uma mentira, já que ela não passa de uma escrava sem vontade própria.
Ele balança a cabeça.
Melhor deixar isso para lá. Essa linha de raciocínio não serve para nada além de me deixar deprimido. Preciso seguir em frente, ainda há muito a ser feito. Quando minha cruzada estiver concluída, poderei me preocupar em me redimir de meus crimes, agora não é hora para isso.
Recostando-se a uma palmeira, ele tenta relaxar, observando os dois pequenos envolverem a mãe em algum tipo de caça ao tesouro pela areia, o que os faz correrem para cima e para baixo, muito animados.
Belísar fecha os olhos e tenta controlar a respiração, uma técnica que sempre o ajuda a se recuperar dos excessos.
A técnica que Elinora me ensinou. E de muita má vontade, diga-se de passagem.
Ele se concentra e limpa a mente, sentindo os raios de sol sobre a pele. Não saberia dizer quanto tempo havia se passado, quando sentiu uma presença atrás de si. Seu coração dispara e a respiração se torna ofegante, uma emoção há muito tempo não sentida lhe percorrendo o corpo. De alguma forma, ele tem certeza de quem se trata muito antes de virar-se e vê-la com seus próprios olhos.
E soltar uma exclamação de espanto.
– Mas o quê…?!
♦ ♦ ♦
– Eu avisei para vocês que isso ia acontecer! – Linete exclama, com uma expressão de triunfo no rosto. – Era óbvio que essa parede iria desabar. Os sons não mentem!
– É – retruca Riodes –, mas você só esqueceu de nos avisar que estava ouvindo o barulho dos cupins, senão teríamos dado um jeito neles antes de acabarem com a porcaria da parede!
– Mas eu disse que tinha algo errado!
– Para você, sempre tem algo errado. Com tudo.
Sulana olha ao redor, surpresa com o pequeno caos que reina por ali. Metade dos moradores do abrigo anda de um lado para o outro, tentando ajudar como podia no conserto de uma parede desabada. No entanto, aquele povo parecia mais interessado em discutir entre si do que em terminar o serviço.
Então eles percebem a sua presença.
– Sulana! – Linete exclama, alegre. – Você voltou! Que bom te ver!
– Ah, já não era sem tempo – diz Riodes.
Incapaz de ficar parada vendo algo para ser feito, Sulana caminha, determinada, na direção de um dos moradores, e toma o martelo de suas mãos. Com a experiência nascida da prática, ela trabalha ao lado deles, logo transformando aquela bagunça toda em uma operação com boas chances de sucesso. Quando os alicerces já estão todos de pé e os trabalhadores estão pregando as últimas tábuas no lugar e terminando de colocar a palha no novo telhado, ela se afasta para avaliar o resultado.
– Você é demais, Sulana! – Linete, se pudesse, provavelmente estaria dando pulos de alegria.
– Esses inúteis nunca conseguiriam consertar isso sozinhos – diz Riodes, o que faz com que os moradores protestem, indignados.
Sulana os ignora.
– Acho que vai aguentar – diz ela, por fim, antes de se virar para Linete. – Vai nos contar agora se ouvir mais algum barulho vindo das paredes?
– Claro! Vou contar tudinho! O tempo todo! Outro dia, teve um piado na floresta que…
– Olha o que você fez, Sulana – protesta Riodes. – Agora vou ter que aguentar isso até sabe-se lá quando! Por que não faz algo de útil e providencia um pouco de carne para nós?
O pensamento de sair para caçar não a incomoda. Na verdade, parece uma ótima ideia. Tudo o que quer no momento é ficar longe daquele maldito embrulho, bem como das emoções descontroladas que ele a faz sentir. E nada melhor para tirar tudo aquilo da cabeça do que um pouco de ação.
– Sulana! – Linete a chama, com sua costumeira empolgação. – Você sabe cozinhar cupins, não sabe?
– O quê?!?
Alguns dos residentes caem na gargalhada. Riodes solta um suspiro.
– Esqueça. Essa maluca está insistindo há horas que não precisamos de carne porque temos cupins.
Linete lança a Sulana um olhar suplicante.
– Eles são tão fofinhos! Tão amarelinhos e cabeçudinhos! Devem ser tão gostosos!
Nova onda de gargalhadas. Boquiaberta, Sulana encara a garota. Linete a encara de volta com um sorriso conspiratório. Se não soubesse de longa data que aquela ali não bate muito bem das ideias, Sulana concluiria que ela está apenas se divertindo às custas de Riodes.
– Deixe de falar besteira e vá buscar meu formão, Linete – ralha ele. – Está na primeira gaveta do armário da cozinha.
– Sabiam que na época do império eles grudavam pedrinhas em um pedaço de pano e depois esfregavam nas vigas até elas ficarem lisinhas?
A garota pega suas muletas e sai andando devagar na direção da cozinha, continuando a descrever os benefícios daquela técnica para ninguém em particular.
Riodes solta um suspiro aliviado enquanto alguns dos moradores continuam rindo e fazendo comentários sobre o comportamento da outra.
– Verei se encontro algo para caçar – diz Sulana, preparando-se para sair, mas então sente o olhar dele sobre si e vira-se para encará-lo. – O que foi?
Ele faz um gesto de cabeça na direção do ventre exposto dela, onde a cicatriz levemente avermelhada é visível.
– Isso aí não parece muito bem. Se cuide. Se você bater as botas, sabe-se lá quando vamos conseguir encontrar outro cretino capaz de arranjar comida para esses inúteis.
Sem esperar resposta ele se vira e vai para junto dos residentes. Sulana franze o cenho, mas decide seguir seu caminho sem dizer nada.
Logo está se embrenhando pela floresta, em busca de algum animal selvagem. Não importa que bicho seja, ela matará qualquer coisa que encontrar. Sua vontade de extravasar a frustração é grande demais para ser contida.
A impaciência está chegando a seu limite quando finalmente encontra uma família de javalis fuçando a terra em meio a arbustos cerrados. Sem pensar duas vezes, ela deixa a febre da batalha dominá-la e parte para cima dos animais.
– Mas que, demônios…? – Riodes exclama, um bom tempo depois, ao vê-la se aproximar.
Sulana sente que os efeitos da febre ainda não passaram. Provavelmente suas íris ainda estão levemente avermelhadas. Além disso, está coberta de sangue, carregando nas costas uma pilha de animais mortos, amarrados com cipó.
– Tome – Diz ela antes de, sem nenhuma cerimônia, jogar sua carga aos pés dele, fazendo com que respingos vermelhos voem para todos os lados.
– Ei! Cuidado com isso aí!
Ignorando-o, ela dá meia volta e toma a direção do rio.
– E é melhor se lavar muito bem mesmo, se quiser entrar na minha cozinha! – Riodes esbraveja.
– O que foi, Riodes? – Linete pergunta, se aproximando. – Com quem você está… Uau! Quanta carne!
– É…
– Aquela é a Sulana? O que ela tem?
– Vá chamar alguém, vou precisar de ajuda para limpar tudo isso aqui.
Sulana não se vira para trás, mas pode sentir os olhos dos dois em suas costas o tempo todo, até sumir de vista.
Já está quase chegando ao riacho quando percebe que está mancando. Conforme a febre da batalha se dissipa, a dor do lado direito do ventre fica mais intensa, e automaticamente ela começa a favorecer aquele lado ao caminhar. Não que aquilo esteja ajudando muito.
As poções de Derione não foram tão boas quanto eu pensava. Pegar um javali ou dois nem é tanto esforço assim…
Chegando a uma pequena lagoa no riacho, ela se lança para dentro da água fria, nadando de um lado para o outro, na tentativa de limpar o corpo. O latejar do ferimento vai se intensificando, dificultando cada vez mais a tarefa.
Ugh!
Ela desiste de nadar e apenas deixa o corpo boiar na superfície da água por um longo tempo.
Esse tipo de atividade normalmente a relaxa e ajuda seu corpo a se recuperar de ferimentos e do cansaço. Infelizmente, hoje, não ajuda em nada. Além do desconforto físico, ainda havia o incômodo de seus pensamentos ficarem voltando à cabana e àquele maldito embrulho. E a água esfriava rapidamente o seu corpo, causando ainda mais desconforto. O ferimento não dá nenhum sinal de que possa vir a parar de doer.
Com muito mais esforço do que gostaria de admitir, ela consegue retornar à margem.
Argh! Por que estou tão molóide hoje?
Sair da água e se colocar em pé se mostra um verdadeiro martírio, mas pelo menos o frio diminui consideravelmente, com os raios de sol incidindo sobre sua pele.
Ela se senta em uma pedra e tenta relaxar, mas não consegue encontrar nenhuma posição confortável. Por fim, se levanta e sai caminhando sem rumo, a mente em turbilhão, pensamentos confusos indo e vindo, sem parar.
Para surpresa dela, a parede dos fundos de sua cabana aparece à sua frente, não muito tempo depois.
Hã? Como vim parar aqui? Não posso ter andado tanto assim, posso?
Envolta numa espécie de transe provocado pela dor, ela tenta caminhar na direção da cabana, mas se interrompe ao perceber algo brilhando no chão a certa distância.
Estou alucinando agora?
Sem saber exatamente por que está fazendo isso, ela dá alguns passos naquela direção. Percebe então que se trata apenas do bendito embrulho de Derione, caído no mesmo lugar onde o deixou antes. O brilho nada mais era do que um raio de sol refletido no tecido branco.
– Essa porcaria ainda está aqui?
O brilho do sol faz com que perceba alguma coisa entre os tecidos. Ela se abaixa e desdobra a túnica, revelando alguns frascos de vidro. Foi fácil reconhecer o líquido esverdeado que Derione tinha usado na tarde anterior para neutralizar a dor e fazê-la dormir. A ideia de cair num sono abençoado lhe parecia a melhor coisa do mundo no momento.
Então ela pega o embrulho e tenta se levantar. Mas percebe que tem algo errado.
Mas o quê…?
A floresta subitamente começa a girar ao seu redor. Depois de um confuso instante, ela sente suas costas e sua nuca se chocarem contra a grama.
Eu… caí?
Ela tenta se mexer, mas seus esforços se mostram em vão. Seu corpo está pesado, muito pesado. Seus olhos de repente ficam pesados demais para que possa mantê-los abertos. Então ela ouve o som de conversas e passos se aproximando, mas está cansada demais para se importar.
– Encontrei! Ela está aqui, venham!
– É ela mesmo! Riodes tinha razão, ela está mesmo doente.
– É… quando você vê Riodes e Linete concordando em alguma coisa, pode saber que deve ser sério.
A mente confusa de Sulana não consegue entender direito o que está sendo dito. Todas as vozes lhe pareciam iguais, sendo impossível para ela saber quantas pessoas estavam ali além dela.
– Ela não parece machucada. Mas está pálida. E a barriga dela está arroxeada ao redor daquela cicatriz.
– Acha que esse unguento que a Linete passou vai servir para alguma coisa?
– Vai dar ouvidos àquela doida? Já devia ter jogado esse negócio fora!
– O que é isso que ela está segurando? Parecem roupas e… poções?
– Saiam da frente, vocês dois! Céus, ela está pior do que pensei! O que ela tem na cabeça, saindo para caçar nessas condições?!
– Aquele frasco ali parece ser um bálsamo regenerativo.
– Onde será que ela conseguiu essas coisas? Olha só essa túnica!
– Ela luta com a rebelião, deve ter recebido deles.
– O que faremos?
– Levem ela para dentro. Tirem essas roupas molhadas e depois a coloquem na cama. Vamos esperar que essa poção não seja velha demais a ponto de ter perdido o efeito.
Sulana solta um gemido involuntário quando aquelas pessoas a levantam do chão, a dor se tornando cada vez mais intensa. Os sons ao seu redor se transformam em um borrão em sua mente. Ela então está sendo carregada, no momento seguinte sendo despida e depois sendo vestida de novo, numa sequência que não faz muito sentido para sua mente confusa.
Ela não faz ideia de quem sejam essas pessoas, mas também não se importa. Tudo o que deseja é ser deixada em paz.
No instante seguinte é deitada sobre algo confortável e alguém volta a abrir suas vestes. Então algo é derramado sobre seu ventre e uma abençoada sensação de amortecimento envolve o ferimento, levando a dor embora.
– Está fazendo efeito. Ela deve dormir por algumas horas.
– Não devíamos, sei lá, chamar alguém?
– Chamar quem? Ninguém mais mora por aqui, foram todos embora.
– Ei! O que está acontecendo com ela?
– Ela está desaparecendo!
– Que raio?!
As vozes vão ficando cada vez mais distantes até sumirem por completo. Então, um clarão surge diante de suas pálpebras fechadas, fazendo-a apertar os olhos.
Ela agora se sente bem. A dor finalmente foi embora. O alívio é tão grande que ela nem questiona o fato de subitamente estar em pé, seus dedos se afundando de leve na areia quente.
Abrindo os olhos, ela pisca por causa da claridade e tenta se equilibrar sobre pernas fracas demais para suportar seu peso. Seus olhos se focam devagar. E então percebe que está encarando um rosto masculino muito atraente.
– Mas o quê…?! – Marcelius Belísar exclama, a encarando de volta com olhos arregalados.
Sulana mergulha naqueles olhos preocupados e sente um frio na barriga, uma sensação difícil de descrever, mas muito intensa. Ele se adianta e a segura pelos ombros, evitando que desabe no chão.
– Sulana? Sulana!
Ela tenta responder, mas tudo o que consegue é pender para a frente e se chocar contra o corpo dele. A sensação de seu rosto contra aquele ombro e daqueles braços a seu redor é tão boa… Os pensamentos se dispersam quando ela começa a perder a consciência.
– Zelmira! – Belísar grita. – Me ajude aqui!
♦ ♦ ♦
– Como está Falcione? – Belísar pergunta ao soldado.
– Não recebemos mais nenhum sinal do emissor da curandeira de Mercília, senhor, então concluímos que não deve ter havido nenhuma mudança.
O general aponta para Sulana, que está desacordada sobre uma pilha de tapetes no chão.
– Falcione disse que havia trespassado essa mulher com a espada.
– Isso é verdade, senhor, eu estava lá.
– Humm… – o curandeiro, que também está por ali, coça o queixo, pensativo. – A pele do ventre dela está arroxeada, indicando que ocorreu algum trauma sério. Eu diria que alguém tentou curar o ferimento de uma maneira bastante… peculiar.
– O que podemos fazer por ela? – Belísar pergunta.
– No momento, nada. Ela não parece estar correndo nenhum risco e está sob o efeito de alguma poção, então é mais seguro esperar que ela acorde, antes de tentarmos fazer qualquer coisa.
– Entendo.
– Mas é estranho, senhor…
– O quê?
– As leituras místicas não fazem muito sentido. É como se o corpo dela reagisse de forma diferente a certos tipos de estímulo.
– Na verdade, eu acho que faz sentido, sim. De acordo com Falcione, ela é uma descendente do clã das montanhas.
– Sim, eu sei. Mas o que eu acho curioso é que já vi leituras bastante similares antes.
– É mesmo? Quando?
– Naquela vez em que… eu examinei o senhor.
– O quê?! Ela tem leituras parecidas com as minhas?! O que isso quer dizer?
O curandeiro pensa um pouco e sacode a cabeça.
– Talvez não seja nada. Se ela sobreviveu a um ferimento como o que o senhor descreveu, é porque tem um potencial energético muito forte. Talvez essa seja a semelhança: o nível de poder.
– Interessante.
– O senhor sugere algum curso de ação em relação a ela?
– Espere ela acordar.
– Se prefere assim, senhor.
– Tenho outros assuntos para tratar no momento. Se tiver alguma mudança no quadro dela, me avise.
– Sim, senhor!
Com um gesto de assentimento, o general se vira e sai da tenda, para encontrar Zelmira o esperando do lado de fora.
– Desculpe deixá-la esperando. Tentei resolver isso o mais rápido possível.
– Eu sei.
Ele a pega pela mão e a conduz na direção da praia. Depois de um longo silêncio, Zelmira pergunta:
– Como ela está?
– Há indícios de um ferimento, mas parece ser interno.
– Pobrezinha. Baliorge está preocupado com ela.
Belísar examina a expressão da esposa com atenção.
– O que foi? – Zelmira pergunta.
– Imaginei que você fosse ficar descontente por ela ter aparecido de novo.
Ela pensa por um momento, antes de dizer:
– Eu tenho deixado você frustrado, não tenho? Sei que sou muito ciumenta…
– Isso não é culpa sua – protesta ele.
– Mas você já tem tanta coisa para se preocupar. Não é justo você ter que ficar lidando com meus… descontroles.
– Não se preocupe com isso. Como eu disse, não é culpa sua.
Ela está trêmula. Não deve estar sendo nem um pouco fácil para ela lutar contra os próprios impulsos.
– Essa mulher… Sulana… ela nunca desiste, não é? Vocês a cercaram junto com outros rebeldes em Revoada. Ela nunca se rendeu, não foi? E quando os monstros atacaram, ela lutou ao lado de vocês. Agora, ela lutou sozinha contra Falcione para ganhar tempo para seus amigos fugirem.
– Zelmira…
– Esse é o tipo de pessoa que eu gostaria de ser. Alguém capaz de fazer qualquer coisa para proteger aqueles a quem ama. Eu percebi que eu me acomodei muito nesses últimos anos. Me contentei com o fato de estar sentindo toda essa felicidade por viver com você. E deixei que a inveja me consumisse. Inveja de outras mulheres… que são tão mais fortes do que eu. Mulheres tão mais dignas dessa felicidade do que eu.
– Mas isso é injusto. Você não tem controle sobre…
– Eu já me apoiei nessa muleta por tempo demais! Passei tantos anos conformada com o fato de não ter controle sobre minha vida e me frustrando por não ser quem eu gostaria de ser. Eu sou uma pessoa horrível, Marcelius. Se tem alguém que merece ser privada de sua liberdade, sou eu.
– Mas…
– Não! Me deixe terminar. Você pode ter cometido um erro. Mas equívocos não definem quem somos. O que nos define é como lidamos com eles. Você decidiu arcar com as consequências e se tornar uma pessoa melhor. Não sei até onde minha condição me permite tomar decisões, mas… eu sei que meu ciúme não é involuntário. É apenas a manifestação da minha insatisfação. Do quão… ruim eu sou. Você vem lutando há anos, sacrificou quase tudo para tentar me libertar. E eu… eu apenas me acomodei. – Ela esfrega a mão no rosto para limpar as próprias lágrimas. – Não quero mais isso! Não quero mais me sentir ameaçada por toda mulher corajosa que aparece na minha frente. Eu quero ser corajosa também!
Belísar a puxa contra si e cola os lábios ao dela, obrigando-a a interromper a frase. Depois de se recuperar da surpresa, ela se entrega ao momento. Em pouco tempo, Zelmira se esquece completamente de tudo, praticamente derretendo-se nos braços dele. O tempo deixa de existir, enquanto suas almas feridas buscam conforto e alento uma na outra.
E então os gritos e sons de batalha começam.
♦ ♦ ♦
É o instinto de sobrevivência quem acorda Sulana. Imediatamente alerta, ela permanece imóvel e de olhos fechados enquanto aguça os sentidos. Não sabe onde está, mas obviamente aquela não é sua cabana. Há alguém ali a seu lado, mas essa pessoa não é a fonte do perigo que sente. O que quer seja que a acordou tem uma presença sinistra, emitindo sons e cheiros singulares, animalescos e familiares.
Monstros. E de uma espécie que ela tinha combatido recentemente.
Ela ouve os passos da pessoa que está a seu lado se afastando e imediatamente conclui que está indo para a morte certa.
Apressada, ela se levanta, sentindo a febre da batalha tomar seu corpo, espantando completamente o sono e a letargia. O homem se volta e a encara de olhos arregalados.
– Você…?
Sem hesitar, ela corre na direção dele e o puxa para trás com força. Pelo barulho, ele deve ter caído sobre os panos no chão, onde ela estivera antes, mas não há tempo de olhar para conferir, pois nesse momento uma criatura monstruosa invade a tenda. Um monstro do mesmo tipo que ela enfrentou dentro das muralhas.
Ronam não estava ali para dissipar aquela pele acinzentada que funciona como um escudo corporal, mas não importa.
Isso só vai prolongar sua agonia.
O monstro ataca com o ferrão, com o objetivo claro de separar sua cabeça do corpo. Ela rola no chão, esquivando-se do golpe e se aproximando do corpo da criatura no mesmo movimento. Levantando-se com agilidade, desfere diversos socos na cabeça do monstro, fazendo-o balançar de um lado para o outro. Ele tenta revidar, mas tudo o que consegue é enroscar seus ferrões no tecido da tenda, que acaba por vir abaixo.
Com facilidade, Sulana rasga o tecido que cai sobre ela e olha ao redor. Há soldados combatendo monstros por toda parte. Então percebe que o monstro que a atacou está tendo dificuldade para se desenroscar do tecido da tenda.
Ela canaliza toda a sua fúria, o que faz com que sua visão se torne rubra. Então pula sobre ele, agarrando um de seus ferrões pelo lado cego. Apoiando um pé sobre o peito do monstro, ela puxa com toda força. Não leva mais do que alguns segundos para as proteções místicas cederem e o braço da criatura se separar do corpo. Então, num movimento contínuo, ela gira o corpo, agarrando o ferrão com as duas mãos e golpeando o monstro com ele. Ao ter o peito trespassado por sua própria arma natural, a criatura se imobiliza, começando imediatamente a se desintegrar.
Nesse momento, os soldados parecem finalmente perceber sua presença.
– Ela de novo?! Como veio parar aqui?!
– Não sei, o general disse que ela surgiu do nada. Mas estava inconsciente até agora há pouco!
– Ei! Precisamos de apoio aqui!
Sulana olha na direção do soldado que pedia ajuda, vendo que ele e alguns companheiros enfrentam um grupo de monstros em séria desvantagem numérica.
Ela sorri, preparando-se para correr na direção da peleja, mas percebe que seu corpo não está respondendo direito. Está fraca, com reflexos mais lentos, como se tivesse algo a prendendo no lugar. Aquilo a irrita sobremaneira e ela levanta a cabeça, soltando um grito gutural.
Os soldados a olham, assustados, mas ela os ignora. O grito tem o efeito que esperava: a fúria se amplia em seu peito, a febre da batalha se tornando mais intensa. A sensação de fraqueza subitamente desaparece e ela se sente leve e pronta para qualquer coisa.
Então sai em disparada, se lançando sobre o monstro mais próximo e desferindo nele uma sequência implacável de golpes, sem dar a menor chance de reação. A carapaça vai enfraquecendo, cada novo ataque se mostrando mais eficiente que o anterior. Logo as proteções do monstro deixam de funcionar e ela consegue aplicar um golpe mortal, a criatura finalmente desabando no chão e começando a se desmaterializar.
Sulana se move de um adversário para o outro, numa euforia assassina sem igual. O mundo, para ela, havia se resumido a duas coisas: os irrelevantes e os inimigos.
Os irrelevantes se movem a seu redor mantendo uma certa distância. Como não atrapalham, ela os ignora. Mas de certa forma são úteis, pois atraem mais inimigos. Às vezes também interceptam oponentes que tentam atacá-la pelas costas. Ela não entende direito porque fazem isso, mas também não se importa. Tudo o que quer é matar, destruir, erradicar os inimigos da existência.
– Ela está demolindo os invasores!
– E salvando a nossa pele no processo. Nunca vi ninguém lutar assim!
– Cara, aquele sorriso dela está me dando arrepios!
– Hahaha! Larga a mão de ser franguinho e ajuda a segurar a retaguarda!
– É! Olha o estrago que ela está fazendo! Vamos acabar com essa invasão rapidinho!
– Mantenham formação! Vamos continuar dando apoio!
– Isso aí! Se ela não nos matou ontem, quando nós éramos o inimigo, hoje não vai dar nada!
– Que os céus te ouçam!
Sulana ouve o que os irrelevantes dizem, mas não se importa o suficiente para tentar entender.
Essa luta é um verdadeiro deleite. Muito melhor que a última. Os monstros lhe parecem mais fortes e são muito mais numerosos. A ação nunca acaba, após derrubar um deles, outro toma o seu lugar. E quando isso não ocorre, basta apurar os ouvidos e seguir os gritos dos irrelevantes nas redondezas para saber onde encontrar mais inimigos. Nunca se sentiu tão satisfeita, tão poderosa, tão viva!
♦ ♦ ♦
Belísar ainda não tinha recobrado energia suficiente para lidar com aquilo. Felizmente, havia antecipado a possibilidade de um ataque e trazido uma tropa considerável consigo naquela manhã.
De qualquer forma, o momento que mais temia finalmente havia chegado. O momento em que os inimigos encontrariam uma forma de ultrapassar todas as barreiras e invadir o coração de seus domínios, ameaçando sua família.
– Daqui vocês não passarão!
Ele eletrifica seu braço e utiliza a energia para potencializar sua força, atingindo o ventre da criatura à sua frente com um poderoso soco. O ser é lançado para trás com violência, sendo empalado pelo ferrão de um dos outros de sua espécie.
Ainda tem muito mais de onde veio isso, suas aberrações!
Enquanto a criatura ferida se desintegra, ele ataca a próxima, usando seus punhos eletrificados para golpear os ferrões da criatura, quebrando-lhe primeiro um e depois o outro. Desarmado, o monstro tenta mordê-lo, o que apenas facilita sua vida, pois a cabeça dele acaba entrando no raio de alcance de seu soco. Então, ele afunda o crânio da criatura e ela silenciosamente começa a se transformar em pó.
Olhando para os lados, o general percebe que dois outros monstros correm em sua direção, vindo por lados opostos. Lutando para manter o foco apesar da exaustão, ele fecha os olhos, ativando o poder de clarividência eletromagnética. Sua mente imediatamente recebe a imagem de si mesmo, como se vista de longe. Concentrando-se na movimentação dos monstros, ele calcula a trajetória de seus ataques e se move levemente para a direita, antes de abaixar-se e rolar pelo chão na direção oposta. Os monstros tentam corrigir a trajetória de seus golpes com o fim de atingi-lo e um deles acaba acertando o outro no ventre. Escapando por pouco do outro ferrão, Belísar se levanta e concentra toda sua força para atacar o monstro que ainda está ileso pelas costas. Enquanto ele cai, mortalmente ferido, o outro tenta atacar, mas o ferimento no ventre o torna lento. Belísar facilmente se esquiva do golpe e o atinge com mais um soco fulminante, tirando-o de combate.
Nesse momento, um outro grupo de monstros vem na direção dele, mas subitamente o chão onde pisam se torna mole e começa a tragá-los. Em poucos segundos, as criaturas são completamente engolidas pela areia.
Belísar olha para o lado e vê Norlando desativando, com um gesto, o poder de um de seus bastões especiais.
– Senhor!
– Bom vê-lo por aqui, meu amigo.
– Viemos assim que detectamos a anomalia. Devo dizer que assistir ao senhor em ação é sempre bastante educativo.
Belísar agradece ao elogio com um gesto de cabeça, antes de perguntar:
– Alguma ideia de como isso aconteceu? Achei que tínhamos conseguido isolar de novo as muralhas ontem.
– Sim, senhor, eu sei o que aconteceu. Mas o senhor não vai gostar. E conversar sobre isso não vai adiantar de nada se não neutralizarmos esta invasão primeiro.
– Muito bem.
– E sua família?
– Zelmira e as crianças estão na praia ali atrás, com outros não combatentes, protegidos por alguns soldados.
– Decisão inteligente. As emanações daquela ilha interferem com a frequência dos portais. Para chegar lá, os monstros precisarão passar por nós.
– Assim espero.
Os dois avançam para se juntar às tropas que combatem os monstros numa luta acirrada, mais adiante.
E é então que Belísar a vê.
Um grupo de soldados dá cobertura enquanto Sulana aniquila um monstro após o outro.
O general sacode a cabeça, tentando recuperar-se da surpresa, e corre na direção dos soldados, aproveitando para derrubar um dos monstros que estava no caminho.
– Obrigada, senhor – agradece a soldado, que estivera lutando com o monstro.
Belísar aponta para Sulana.
– Ela estava inconsciente há menos de meia hora. Como é possível estar lutando assim?
– Não sabemos, senhor. Quando a vimos, ela já estava em ação. Tentamos falar com ela, mas não conseguimos. Ela até parece ouvir, mas nos ignora. Acho que não entende o que falamos.
Olhando de perto, ele percebe que a rebelde está se movendo de uma forma estranha, travada, como se precisasse fazer um esforço além do normal para realizar seus movimentos. Os olhos dela também estão diferentes. O vermelho está mais brilhante, mais intenso, mais sinistro.
– Tem algo errado. Em Revoada ela não estava assim. – Ele arregala os olhos. – O ferimento! Ela ainda não se recuperou do ataque de Falcione, deve estar com sangramento interno!
– Mas como pode? Ela, sozinha, já deu conta de um verdadeiro exército desses bichos!
Um novo grupo de criaturas surge nesse momento, correndo na direção deles.
– Continuem dando cobertura! – Belísar ordena. – Ela pode não entender o que dizem, mas tem bons instintos de combate em equipe. Os monstros dificilmente vão conseguir atingi-la se não puderem cercá-la.
– Sim, senhor. Essa é a estratégia que temos usado até agora.
Belísar assiste, perplexo, enquanto Sulana derruba um monstro com extrema facilidade. E então outro. E mais outro. Em poucos instantes, mais da metade do grupo de monstros é massacrado.
Pela misericórdia! Ela até parece mais fraca, mas está é muito mais forte do que antes!
Mais de uma vez ele a vê defletir os ferrões afiados com os antebraços nus e sair completamente ilesa. Os poucos ataques que os monstros conseguem acertar nela soam como metal se chocando contra rocha sólida. Alguns chegam até mesmo a gerar faíscas. O escudo corporal dela, no momento, parece mais resistente do que qualquer um que ele já viu na vida.
Belísar entra no combate, lutando ombro a ombro com os soldados, tentando não gastar mais poder do que o imprescindível.
Então, quando o último monstro cai, ele se vê face a face com ela. O que ele vê não é humano, mas também não parece um animal. É uma face de puro caos, emanando destruição e morte. Os olhos cor de sangue brilham intensamente, mas os lábios estão ressecados, a pele pálida. E ela não parece estar respirando.
O general sente seu coração se apertar, um horror profundo o envolvendo. Um estranho sentimento de perda o faz apertar os punhos, frustrado.
– O que houve com você?
Ela ergue a cabeça de leve, como se estivesse tentando sentir seu cheiro ou algo assim, mas logo parece perder o interesse e olha ao redor. Ruídos de batalha podem ser ouvidos por toda parte. Então ela parece detectar alguma coisa na direção da praia e sai em disparada para lá. A postura dela enquanto corre é estranha, encurvada, às vezes tocando uma mão no chão, quase como se fosse um quadrúpede lutando para ficar em pé nas patas traseiras.
– Atrás dela!
– Sim, senhor.
– General!
Belísar estaca no lugar ao ouvir a voz de Emelin e, com um gesto, ordena que os soldados continuem atrás de Sulana, antes de se virar para a tenente. E se surpreende ao ver o quê, ou melhor, quem ela está carregando nas costas enquanto corre pelo campo de batalha, como se sua carga não tivesse peso nenhum.
– Ge… neral… – diz Falcione.
Belísar corre até elas.
– Tenente, o que está fazendo? Ela deveria estar descansando! Vai acabar complicando a situação dela carregando-a por aí desse jeito!
– Foram ordens dela, senhor!
– Me… coloque… no chão…
O general ajuda Emelin a deitar de costas na areia a convalescente, que ainda está com a maior parte do corpo enrolada em bandagens.
– O que estão fazendo aqui?
– Ela ficou inquieta quando soube que a rebelde estava aqui com o senhor – responde a tenente. – E então, quando Norlando deu o alerta de invasão nessa região, ela insistiu que a trouxesse.
Emelin une as mãos atrás das costas, num alongamento estranho e faz uma careta quando seus ossos estalam.
– Ai! Odeio encantos de aumento de força.
– Onde… ela está…?
– Sulana está lutando – responde Belísar. – E eu preciso ir ajudar, tenho que…
– Ah, não! Como… ela está?
O general luta para controlar sua impaciência.
– Está estranha. Olhar febril e comportamento quase animalesco. E está mais forte do que nunca.
– É… o último estágio…, ela… já está morta…
Belísar arregala os olhos.
– Não pode ser! Ela está lutando lado a lado com os soldados! Consegue distinguir muito bem aliados de inimigos!
– Não sei… como faz isso…, mas ela nunca perde o controle… não importa o que aconteça…
– Você tentou me convencer do contrário inúmeras vezes!
– Eu olhei… nos olhos dela… depois que… a feri…, ela não é… como eles…
– Você não deveria ter vindo, aqui é muito perigoso! Tenente, leve Falcione a um lugar seguro.
– Sim, senhor!
– Eu… a matei…
Aquelas palavras calam fundo em Belísar, aumentando ainda mais sua apreensão.
Dando as costas às duas, ele sai correndo na direção da praia.
É possível ouvir os soldados batalhando contra monstros em quase todas as direções. Ele constata que o Exército Carmim está se saindo muito bem, dadas as circunstâncias, os tenentes parecem ter pleno controle da situação.
Humm… Sulana correu para uma região afastada, sendo que tinha monstros muito mais próximos de onde estava. Será que ela detectou uma ameaça maior? Tenho que me apressar!
Quando ele finalmente consegue encontrá-la, numa parte isolada da praia, a situação, que já lhe parecia preocupante, se transforma em um pesadelo.
– Não!
Seus filhos… suas pobres crianças… estão caídos no chão, próximo a uma palmeira. Há sangue e corpos espalhados por toda parte. Vênega está imóvel, caída de bruços. Baliorge está deitado sobre o irmão mais novo, um ferimento horrível em suas costas sangrando abundantemente. O pequeno Sagante chora, desesperado, abraçado ao irmão inconsciente.
E, diante deles, Sulana e um daqueles malditos monstros amarelos estão envolvidos em um abraço mortal, um tentando esganar o outro.
Belísar para no lugar, tentando recuperar o fôlego.
– O que… eu faço?
Ele já sente uma leve dormência nos dedos das mãos e dos pés. Com certeza não tem forças para batalhar contra um monstro daqueles.
E então, como se tudo aquilo não fosse desesperador o suficiente, ele ouve passos atrás de si.
– Esperava você, general.
Belísar se vira e encara, estarrecido, o rosto de seu pior inimigo. Ou melhor, de um deles.
Um demônio. Pele escura e levemente avermelhada, grandes chifres brotando da testa calva, caninos proeminentes, garras mortíferas nas mãos e nos pés e uma cauda que termina numa espécie de apêndice pontudo.
E ele acaba de jogar no chão um corpo inerte, cujo tronco e membros formam ângulos impossíveis, envoltos por pedaços de um tecido cor de vinho todo dilacerado e ensanguentado.
O general sente suas pernas fraquejarem e cai de joelhos sobre a areia.
– Zelmira!
Várias coisas passam por sua cabeça neste momento.
Como aquelas criaturas tinham conseguido ultrapassar todas as barreiras místicas e chegar até ali? Teria sua hora finalmente chegado? É assim que sua cruzada terminará? Com ele fraco, indefeso e sozinho frente ao pior tipo de monstro que já pisou sobre essa terra?
Mesmo que, por algum milagre, vença essa batalha, o que vai lhe restar?
Belísar sonhou durante muito tempo com o dia em que finalmente teria a sua libertação. Mas agora que vê o fim diante de si, o abençoado alívio que sempre imaginou que sentiria, simplesmente não vem.
— Fim do capítulo 6 — | ||
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