Publicado em 26/11/2017 | ||
< Dedicatória | Sumário | 2. Sonhos Infantis > |
1. Lugar ao Sol
Os sons de batalha se espalhavam por todo o vale.
Todos os animais que viviam por ali tratavam de se esconder, os pássaros tendo saído em revoadas, os coelhos se embrenhando em suas tocas, os alces se dirigindo a campinas mais isoladas e seguras. Até mesmo os predadores agiam com extrema cautela, e havia uma ótima razão para isso: quando energia negativa estava envolvida, nada ou ninguém estava seguro, não importava o quão forte ou poderoso fosse.
Zumbis caminhavam por entre a grama, sua energia residual fazendo com que as folhas, antes verdejantes, passassem a apresentar uma tonalidade mais escura e bem menos saudável. Se não dessem conta daqueles monstros logo, boa parte da vida naquele vale estaria seriamente comprometida.
Era de se esperar que uma pessoa ficasse assustada, temerosa ou desesperada tendo que encarar de perto cadáveres putrefatos dotados de poderosas presas e garras, não era?
Mas não era o que acontecia com Valena Delafortuna. Na verdade, ela se sentia muito bem, confiante, destemida e poderosa, enquanto brandia sua espada envolta em chamas místicas, atingindo em cheio um dos monstros humanoides, causando um corte profundo o suficiente na pele arroxeada para que o fogo encantado começasse a consumir o sangue profano que corria pelo que restava das veias da criatura.
O zumbi caiu no chão, convulsionando-se, enquanto seu corpo perecia, finalmente liberando sua alma para o merecido descanso.
Valena virou-se bem a tempo de se proteger do bote de uma criatura que, em vida, deveria ter sido um felino de grande porte, talvez um tigre ou jaguar, mas que agora era difícil de reconhecer, uma vez que tinha perdido toda a pelagem, bem como boa parte da pele. Infelizmente, não perdera muito de sua agilidade.
Num reflexo, ela colocou a espada diante de si, segurando a parte cega da lâmina flamejante com a mão enluvada, e aparando dessa forma o que poderia ser um golpe mortal. O zumbi, que tinha saltado com a boca aberta na direção de seu pescoço, acabou mordendo firmemente a lâmina e soltando um urro ao sentir o contato com o fogo.
Com sua força e agilidade incrivelmente ampliadas, Valena não teve problemas em empurrar o monstro para sua esquerda, dando imediatamente um giro no sentido horário e aplicando um poderoso golpe horizontal que atingiu seu oponente em cheio, fazendo com que caísse no chão se contorcendo por um instante até finalmente perecer.
– Que tal isso, seu qosol badan?
Ela brandiu a arma no ar mais uma vez, sentindo-se extremamente satisfeita consigo mesma.
Valena tinha uma altura bem acima da média, cabelos ruivos longos e levemente encaracolados e uma pele que poderia ser branca, se não fosse por todo o tempo que ela passava ao ar livre, o que lhe dava um saudável bronzeado. Possuía algumas sardas, mas muito menos do que outras pessoas com tonalidade de pele e cabelos como a sua. Tinha um corpo forte e atlético, apesar de não tão curvilíneo e voluptuoso quanto ela gostaria. No momento aquele corpo estava coberto por um traje militar especial resistente a fogo, cuja cor predominante era o branco com detalhes em vermelho, assim como também eram vermelhas as luvas e botas que usava.
Apesar de achar seu corpo razoavelmente atraente, o maior orgulho dela era seu rosto. Não exatamente por seu formato angular, lábios carnudos ou por seus olhos de um tom castanho tendendo ao avermelhado, mas sim pela marca da Fênix, uma espécie de tatuagem que lhe cobria quase toda a face direita. Tratavam-se de linhas em um leve relevo, em um dourado claro, formando o desenho de um pássaro de fogo. Aquela marca provava que ela havia sido escolhida pela entidade conhecida como a Grande Fênix para governar o Império de Verídia, assim como todos os imperadores que vieram antes dela. Havia recebido a marca dois anos atrás, quando tinha apenas 15 anos de idade, e vinha tentando fazer jus a ela desde então.
Aquela marca não era apenas decorativa, ela também ampliava significativamente as capacidades físicas daquele que a possuía, bem como conferia diversos poderes místicos, como o encanto de arma flamejante que ela estava usando em sua espada.
Olhando para os lados, ela viu seus companheiros, todos envolvidos na batalha: o paladino, o esqueleto, a guria do orbe, a mal-humorada, a bruxa e o comandante.
O paladino se chamava Idan Cariati. Era um rapaz alegre, de estatura mediana, olhos verdes, curtos cabelos negros e que usava roupas velhas e puídas. Se não fosse pelas grossas luvas de couro que ele usava, Valena o teria confundido com um mendigo da primeira vez que o vira. Não que ela tivesse algo contra mendigos, afinal ela própria tinha sido uma um dia. De qualquer forma, aqueles trajes simples, na verdade, eram bastante comuns na chamada Ordem da Terra, a religião dele, que venerava uma outra entidade conhecida como o Espírito da Terra. Essa ordem, diga-se de passagem, estava tão fragmentada quanto o Império no momento, mas o rapaz, que não devia ser mais do que um ou dois anos mais velho que Valena, continuava firme e inabalável em suas convicções.
No momento ele lutava contra três zumbis. Encostando a palma de uma de suas mãos enluvadas no solo, ele conjurou um encantamento que fez brotar trepadeiras do chão, crescendo com grande velocidade e envolvendo seus oponentes, imobilizando seus movimentos. Então ele se endireitou e levantou uma das mãos, dizendo algumas palavras no antigo dialeto lemoriano. Valena se considerava razoavelmente fluente naquela língua, mas não conseguiu entender quase nada, o que indicava que aquelas palavras deviam ser muito antigas. A mão dele emitiu um brilho azulado intenso o suficiente para ser visto mesmo através do couro. Então, os mortos-vivos se imobilizaram completamente, parando com as patéticas tentativas de se livrarem do aperto das trepadeiras. Depois de alguns instantes, eles pareceram perder completamente a capacidade de se moverem ou de se manterem em pé, desabando desajeitadamente no chão quando as trepadeiras místicas se desmaterializaram.
Vendo que era observado, o paladino olhou para ela e sorriu, fazendo um sinal de “positivo” antes de correr na direção de um grupo maior de zumbis que encurralava o esqueleto e a guria do orbe contra um paredão rochoso.
Aquele que Valena considerava como “o esqueleto”, na verdade, não era muito mais do que aquilo mesmo. Atendia pelo nome de Gram e não passava de uma ossada humana capaz de se mover devido a algum tipo misterioso e macabro de feitiço. À primeira vista, podia ser confundido com um morto-vivo, como aqueles zumbis, mas, depois de conviver com ele por algum tempo, ela havia descoberto que ele era muito inteligente, sensível, prestativo e trabalhador, bem diferente dos monstros contra os quais lutava, que não tinham quase nada além do instinto assassino.
Apesar da aparência dele, que dava arrepios a Valena, Gram parecia, em muitos aspectos como uma pessoa normal, inclusive, tinha uma personalidade um tanto irreverente, apesar de não ser capaz de emitir nenhum tipo de som e ter que se comunicar apenas à base de gestos.
Usava uma velha armadura metálica vermelha, com um elmo aberto da mesma cor, que deixava ver a face esquelética e o sinistro brilho que parecia vir do fundo do buraco dos olhos. Usava também um velho par de botas, cuja capacidade de calçar aqueles pés esqueléticos desafiava a compreensão de Valena. As mãos dele estavam cobertas por luvas feitas por uma cota de malha de aço com garras de metal nas costas das mãos, que ele usava como armas, e com bastante competência, diga-se de passagem.
Também tinha força e agilidade impressionantes. No momento, ele se movia com grande velocidade, atacando três monstros simultaneamente e com um nível de precisão e eficiência que daria inveja aos mais bem treinados soldados do exército.
Atrás dele estava Jena Seinate, com o orbe flutuando atrás dela. A guria parecia frágil demais, tímida demais e inocente demais para alguém com patente de sargento, na opinião de Valena, mas de qualquer forma, lá estava ela, usando um uniforme militar nas cores verde e marrom, com a insígnia prateada brilhando do lado esquerdo do peito. Era uma mulher pequena, com feições típicas de habitantes das ilhas orientais, tendo um rosto que parecia levemente achatado e olhos puxados. Os cabelos dela eram escuros e lisos, cortados na altura dos ombros. Assim como o paladino, não devia ter mais do que 19 anos.
Era especializada em artes místicas, provavelmente tinha passado a maior parte da vida com o rosto enfiado em livros. Curiosamente, ela mesma não possuía quase nenhum poder, ou, pelo menos não antes de ter se fundido misticamente com aquele artefato que tinha a forma de uma esfera prateada, coberto por runas, símbolos e desenhos em relevo. Aquele orbe conferia à garota habilidades impressionantes.
Jena tinha os olhos fechados, parecendo estar se concentrando. Depois de um instante, ela levantou a cabeça e pediu para Gram sair da frente. O esqueleto imediatamente se colocou de lado e a garota avançou, com as mãos levantadas na direção dos zumbis. A esfera prateada brilhou levemente atrás dela no momento em que um violento fluxo de chamas brotou de suas mãos, atingindo os monstros em cheio e queimando a carne putrefata, o que levantou uma grande nuvem de fumaça malcheirosa.
Apesar do cheiro, no entanto, o ataque foi extremamente eficiente, dando cabo dos mortos-vivos em tempo recorde, exceto por alguns deles que tinham se afastado para atacar Idan.
Jena ficou olhando para a cena diante dela um tanto embasbacada, como se não estivesse acreditando no que tinha feito. Gram se aproximou e deu dois tapinhas no ombro dela, o que a fez dar um sobressalto. Aparentemente, Valena não era a única que tinha arrepios sempre que aquele esqueleto estava por perto.
Depois daquilo, Gram correu para ajudar Idan. Juntos, os dois derrubaram os zumbis rapidamente. Quando os oponentes caíram, os dois fizeram uma saudação camarada, um dando um soco de leve no ombro do outro, completamente alheios ao absurdo daquela cena. Alguém que servia à divindade que alegava proteger a vida interagindo amigavelmente com algo que parecia ser a encarnação da morte.
A uma boa distância dali estava o maior de todos os mortos vivos. Era o esqueleto de uma criatura monstruosa, provavelmente algum tipo de dragão. E que, no momento, parecia estar passando por maus bocados nas mãos da mal-humorada.
Lucine Durandal era a mais velha daquela equipe, aparentando ter uns 21 ou 22 anos e era uma caçadora de recompensas que, até onde Valena sabia, fazia qualquer coisa por dinheiro. Sua presença ali, segundo ela, devia-se ao fato de ter sido paga para isso pelo falecido capitão Dario Joanson.
Valena conheceu bem esse capitão e tinha aprendido a confiar nas decisões dele. E o fato daquela caçadora de recompensas ser capaz de lutar de igual para igual com uma coisa dez vezes maior do que ela apenas confirmava que Joanson sabia muito bem escolher seus aliados.
Se não estivesse quase o tempo todo usando armadura, Lucine poderia ser considerada uma beldade, Valena pensava, com certa inveja. Apesar de bastante forte e musculosa, ela tinha todas as curvas certas nos lugares certos. Não que fosse comum vê-la sem aquela cota de malha feita sob medida, que lhe cobria os braços, o tronco e lhe descia até os joelhos. Sobre a armadura ela usava uma espécie de camisa de cor marrom, que não parecia ter nenhuma utilidade além da decorativa.
A infeliz também tinha aqueles maravilhosos cabelos, longos e platinados, que no momento ela mantinha firmemente presos por baixo de um elmo aberto. Seu rosto possuía algumas pequenas cicatrizes que, por incrível que pareça, não prejudicavam em nada sua aparência, apenas lhe dava um ar de força e determinação.
Infelizmente, toda aquela beleza pertencia a alguém que parecia estar o tempo todo de mau humor e não se importava em ser brusca e grosseira com tudo e todos. Somente o paladino e o comandante tinham paciência suficiente para tolerar aquela mal-educada.
Mas, mal-humorada ou não, Valena tinha que admitir que, no quesito força bruta, aquela mulher era imbatível.
No momento, o dragão esquelético tentou atingi-la com uma das garras, mas Lucine, usando um golpe especial com uma espada em cada mão, conseguiu defletir o ataque para cima, imediatamente emendando um contra-ataque, dando um giro no ar e atingindo uma das patas do monstro com um golpe fulminante, que acabou por decepar o membro, fazendo com que a monstruosidade se desequilibrasse.
Aproveitando a oportunidade, a caçadora de recompensas escalou agilmente os ossos da criatura e, com um grito, cravou ambas as espadas no pescoço esquelético. Então usou algum tipo de movimento especial que Valena não conseguiu entender muito bem, mas o fato é que no instante seguinte, a cabeça decapitada do monstro caía no chão. Imediatamente o resto do corpo parou de se mover e as juntas se soltaram, os ossos se separando uns dos outros e desabando como um castelo de cartas.
De alguma forma, Lucine conseguiu saltar para longe e aterrissar em segurança. Então ela examinou brevemente as espadas e soltou um suspiro desanimado ao ver o estrago que aquela batalha tinha feito nas lâminas. Valena, por sua vez, estava surpresa por aquelas armas não terem se partido em vários pedaços, considerando a força dos ataques de Lucine e a natureza do alvo daqueles ataques.
Nesse momento, um outro grupo de zumbis surgiu, vindo na direção de Valena. Concluindo que não tinha tempo a perder com eles, ela levantou uma das mãos enluvadas e acionou os poderes da Fênix, a tatuagem brilhando intensamente em seu rosto, enquanto uma bola de fogo se formou e cresceu na palma de sua mão. Então ela lançou aquilo na direção dos monstros. A bola cruzou o ar e atingiu o chão na frente deles, explodindo violentamente, abrindo um rombo no solo e fazendo os zumbis, bem como a grama, galhos secos e tudo o mais que havia ali irem para o ar em pedaços.
Satisfeita consigo mesma, ela se virou e viu que os outros estavam se dirigindo para a parte interior do vale. O paladino olhou para ela e sorriu, parando no lugar e esperando por ela.
– Parece que terminamos por aqui – disse ele, alegremente. – Tudo bem com você, alteza?
Alteza. Aquele tratamento lhe causava extrema satisfação. Fazia com que sentisse que finalmente havia encontrado seu lugar ao sol.
– Nunca tinha visto mortos-vivos antes – admitiu ela, andando apressadamente ao lado dele. – Sempre achei que fossem todos humanoides, não pensava que pudesse existir tanta variedade.
– A antivida pode ser aplicada sobre qualquer criatura que já viveu. Mas é verdade que os necromantes têm uma predileção particular por humanos. Sabe como é, eles são capazes de usar alguns tipos de ferramentas e até armas, e também mantém um pouco da inteligência que tinham quando vivos. Enfim, são mais úteis e podem lutar melhor.
– Vocês da Ordem da Terra são especializados em caçar necromantes, não?
– Alguns sim. O uso de antivida é uma afronta ao Grande Espírito, então consideramos como nossa responsabilidade livrar o mundo dessa heresia. – Ele sorriu para ela mais uma vez. – Mas a maioria de nós não faz disso seu objetivo de vida.
Estavam quase alcançando os outros quando passaram por algumas formações rochosas e o santuário entrou em seu campo de visão. Ou, pelo menos, o que havia restado dele.
– O lugar foi destruído – disse ela. – Chegamos tarde demais.
Sobre uma plataforma de pedra em meio às ruínas, a bruxa e o comandante estavam no meio de uma acirrada batalha.
– Vamos lá, parece que aqueles dois estão precisando de ajuda – disse o paladino.
Valena o seguiu sem dizer nada, mas tinha suas dúvidas em relação àquilo. A julgar pela quantidade de zumbis destroçados pelo caminho, o casal parecia ter tudo sob controle. Apenas dois monstros continuavam em pé, provavelmente os mais fortes e perigosos de todos, mas o estado deles levava a crer que o embate estava se aproximando de sua conclusão.
O nome da bruxa era Sandora Nostarius. Tinha a mesma idade de Valena, e cabelos parecidos com os dela, mas que eram negros como a noite, olhos de um castanho bem escuro e uma invejável pele morena, nem branca e nem escura demais. Tinha uma altura acima da média, mas mesmo assim ainda era alguns centímetros mais baixa do que Valena, que secretamente se deleitava com aquele fato. Era tão difícil encontrar algum quesito no qual ela pudesse levar vantagem em relação a Sandora que qualquer detalhe como aquele era digno de orgulho.
Na primeira vez que se encontraram, Valena havia tomado uma surra homérica. Nem mesmo os impressionantes poderes concedidos pela Grande Fênix eram suficientes para superar as versáteis habilidades da bruxa, ou a forma extremamente inventiva com que ela as usava.
Sandora tinha uma tendência pelo gótico. Usava trajes escuros e pesados, com discretas decorações no formato de símbolos astrológicos, o que lhe conferia um aspecto misterioso, até um pouco assustador. Só aquelas roupas já seria motivo suficiente para ela receber o apelido de “bruxa”, principalmente devido ao fato de, na verdade, não passarem de construtos criados pelos poderes dela e que podiam ser modificados instantaneamente da forma como quisesse.
Sortuda de uma figa. Como não odiar alguém que nascia com um poder daqueles?
Mas a aparência e os poderes de Sandora não eram a coisa mais impressionante nela, mas sim sua inteligência, capacidade de observação e sagacidade. Parecia estar sempre preparada para tudo e era capaz de enfrentar qualquer situação. Nem mesmo os angustiantes sintomas dos primeiros meses de gravidez a impediam de estar ali, brandindo aquele chicote místico e matando mortos vivos, com uma eficiência maior do que quase todos os outros da equipe, exceto, talvez, pelo comandante.
Valena não conseguia pensar em um termo melhor para descrever Evander Nostarius. Quando ele dava uma ordem durante uma batalha, você obedecia. Simples assim. Ele demonstrava uma maturidade muito maior do que seria de se esperar de um garoto de apenas 17 anos de idade, tendo um tempo de reação extraordinário e parecia sempre saber o que fazer, não importava a situação. As pessoas confiavam nele de forma instintiva, o que era intensificado pelo fato de ele nunca se aproveitar disso em benefício próprio, e por estar sempre disposto a proteger a qualquer um e a qualquer momento. A atitude de abnegação dele fazia com que as pessoas desejassem protege-lo também, o que ajudava a criar um vínculo na equipe que se mostrava crucial durante as batalhas. Perto dele as pessoas se sentiam motivadas, capazes.
Aquele era exatamente o tipo de liderança que Valena gostaria de ter no exército imperial, mas infelizmente, ele não parecia muito interessado em seguir os passos do pai dele, que foi general por mais de uma década.
Além de possuir todas aquelas qualidades, ele ainda era um dos rapazes mais atraentes que Valena já conhecera. Tinha cabelos loiros longos, que usava presos em um rabo de cavalo. Seus olhos eram de um castanho claro, quase dourado. O rosto dele tinha um formato suave, como se tivesse sido feito para sorrir, o que, de fato, ele fazia na maior parte do tempo. Até mesmo em momentos sérios, quando passava instruções de forma apressada, durante uma luta, ele apresentava uma expressão amigável, confiante e até um pouco brincalhona.
Valena desconfiava que os trajes que ele usava deviam ter sido criados por Sandora, ou, no mínimo, a bruxa deveria ter ensinado a ele como conjura-los. Aquelas roupas pareciam limpas e arrumadas demais, principalmente depois de uma batalha tão intensa, para serem reais. Ele usava um traje militar reforçado, similar ao de Valena, mas bem mais elegante. Por cima, usava um sobretudo imaculadamente branco que, miraculosamente, não o atrapalhava em nada enquanto fazia complicados movimentos com seu bastão místico.
Nunca admitiria isso para ninguém, mas Valena considerava realmente uma pena que ele fosse comprometido. E seriamente comprometido, considerando que Sandora tinha adotado o sobrenome dele e que ele era o pai do bebê que ela estava esperando.
Tanto Evander quanto Sandora também possuíam uma aura mística de proteção, capaz de proteger a todos na área de efeito contra ataques físicos. Aquilo funcionava, inclusive, nos inimigos. Mas, aparentemente, aquela aura funcionava apenas em criaturas vivas, o que não era o caso, no momento.
Os oponentes que o casal enfrentava não eram meros zumbis, eram alguma coisa a mais. Tinham inteligência e eram capazes de lançar feitiços, apesar de não serem capazes de emitir sons, provavelmente devido ao fato de não possuírem boca. O corpo era basicamente humano, mas com pele arroxeada, com o rosto tendo apenas um par de olhos que apresentavam um sinistro brilho alaranjado. Usavam mantos escuros e bastante danificados, de cujos bolsos eles volta e meia tiravam algum tipo de artefato ou item especial que utilizavam contra seus oponentes.
Felizmente, Evander e Sandora conseguiam facilmente antecipar aquele tipo de manobra e se esquivavam ou defletiam os ataques sem grandes problemas.
Valena, Idan, Lucine e Jena terminavam de escalar uma pilha de pedras, chegando assim até a plataforma, quando Sandora envolveu um dos monstros com uma rede de energia escura, fazendo com que ele caísse no chão. Enquanto ele se debatia, tentando se soltar, o casal concentrou toda sua atenção no outro, com Evander aplicando uma sequência de golpes de bastão em seu peito e abdômen enquanto Sandora lançava uma mortal saraivada de ataques com o chicote em suas costas.
Valena já havia lutado contra ambos, então conhecia muito bem aqueles golpes e sabia do que eram capazes. O bastão de Evander era uma arma quase indestrutível, capaz de aguentar os golpes mais intensos sem sofrer danos. Era raro vê-lo partir para o ataque daquela forma, sendo que ele preferia manter uma postura defensiva, mas quando necessário ele sabia muito bem como usar as propriedades do bastão para ampliar imensamente seus ataques. Quanto a Sandora, Valena já sentira os golpes daquele chicote contra seu corpo, e sabia que podiam ser devastadores. Ela conseguia tornar a ponta da arma sólida e cortante, podendo simular golpes de corte ou perfurante. Além disso a arma era uma espécie de tentáculo místico que podia se mover, se curvar, distender, contrair e expandir com uma flexibilidade incrível, e a bruxa sabia muito bem como se aproveitar disso, tornando aqueles golpes absurdamente poderosos.
Os ataques não feriram fisicamente a criatura, o que era um indicativo de que ela tinha acionado algum tipo de escudo corporal. Não demorou muito, no entanto, para a energia dele finalmente se esgotar e o monstro começar a se desmaterializar, transformando-se em uma pequena pilha de cinzas.
O casal então se voltou para o outro monstro, apenas para perceber que Gram tinha chegado até ele primeiro e o agarrava fortemente pelos ombros enquanto um campo de energia envolvia a ambos. Era uma aura escura, sinistra, que se intensificou a ponto de impedir que pudessem ver através dela.
– Esperem – disse Evander, levantando uma mão e fazendo com que Valena, Lucine, Idan e Jena parassem onde estavam. – Melhor não chegar muito perto. – Ele se virou para Sandora. – Tem ideia do que está acontecendo?
– Não – respondeu a bruxa. – Mas Gram parece ter iniciado essa reação de propósito.
– Devemos separar os dois?
– Espere, acho que estou percebendo um padrão. Talvez seja melhor aguardar.
Depois de alguns instantes a aura energética se dissipou, e foi possível perceber que, o que quer que tivesse acontecido ali, apenas um dos envolvidos conseguiu sobreviver.
Gram se esforçava para se levantar, nitidamente enfraquecido, enquanto apenas uma pequena pilha de cinzas atestava que houvera outra criatura ali momentos antes. Quando Gram virou a cabeça para Sandora, a bruxa soltou uma exclamação de espanto.
– Mas o quê?!
Evander apontou o bastão para Gram, de forma ameaçadora.
– Gram? É você mesmo?
Curiosa, Valena se aproximou mais e percebeu que Gram estava diferente. Partes de seus ossos antes podiam ser avistados em regiões do corpo dele que não eram cobertas pela armadura. Mas agora, nenhum osso estava visível. Ele parecia ter adquirido uma pele, como uma espécie de múmia. Ele virou o rosto em sua direção e ela se assustou ao ver que ele agora apresentava uma semelhança muito grande com a criatura que havia se transformado em cinzas a seus pés. Os ossos do rosto agora estavam recobertos por uma pele arroxeada e ele a encarava com olhos que emitiam um brilho alaranjado.
Sandora perguntou a ele:
– Gram, o que houve com você?
Ele se virou novamente para ela, parecendo confuso e olhou para as próprias mãos enluvadas por um momento, antes de voltar a levantar a cabeça e sacudi-la de um lado para outro, num gesto negativo.
Não percebendo nenhum perigo, Evander desmaterializou seu bastão.
– Ele parece ter absorvido a forma corpórea daquela coisa.
– Você está bem? – Sandora perguntou, se aproximando dele.
Gram assentiu e ficou parado enquanto a bruxa o estudava.
Valena olhou para as ruínas ao redor deles.
– E pensar que a melhor fonte de informações que tínhamos era este lugar.
Jena perguntou:
– Mas quem faria uma coisa dessas? Para que destruir um santuário de conhecimento?
– Saber é poder – respondeu o paladino. – Talvez o culpado tivesse algum segredo que não queria que ninguém mais soubesse.
Evander avaliou os arredores.
– Então foi aqui que vocês conseguiram aquelas informações sobre os espíritos itinerantes?
– Sim – respondeu Sandora, distraída, enquanto tocava o novo rosto de Gram e o analisava com atenção.
Valena não tinha entendido muito bem ainda aquela história de espíritos itinerantes. Parece que a bruxa e o comandante tinham aqueles poderes devido ao fato de suas almas terem vindo de um outro mundo ou algo assim.
– Esses mortos-vivos parecem ter sido mandados para cá com o propósito específico de destruir o lugar – comentou Lucine.
– Sim – concordou Sandora. – Usaram conjurações para explodir a construção e ficaram vagando por aí espalhando energia negativa para neutralizar qualquer emanação que pudesse manter o espírito do santuário neste mundo.
– Mas ninguém teria tanto poder – replicou Jena.
– Como assim? – Valena perguntou.
– Eram muitos deles. Quase um exército. Já é complicado para um ser humano conseguir manter alguns poucos desmortos sob controle, o que dirá tantos. Ainda mais tão poderosos como esses.
Evander olhou para Valena.
– De qualquer forma, alteza, acho que não conseguiremos informações úteis para reunificar o império. Pelo menos não aqui.
Valena suspirou.
– Certo. Se não dá para fazer da forma fácil, vou ter que usar o método difícil mesmo. Como está o nosso amigo?
– Parece bem – respondeu Sandora. – A emanação mística dele é a mesma de antes, só um pouco mais intensa. Ao que tudo indica, ele está apenas um pouco cansado.
– Fique com ele – disse Evander, antes de se virar para os outros. – Vamos dar uma olhada por aí e ver se alguma coisa se salvou dessa demolição.
♦ ♦ ♦
Duas figuras aladas observavam ao longe enquanto o grupo de Valena finalmente desistia da busca e deixava o local.
– Ao menos eles destruíram as aberrações por nós – disse o homem.
– Isso não quer dizer nada – respondeu a ruiva que usava armadura prateada. – Eles são os responsáveis por tudo isso e devíamos prendê-los.
– Não foram eles que destruíram o santuário.
– O santuário estaria perfeitamente bem se os itinerantes não tivessem vindo até ele. E eles não teriam vindo se você não tivesse indicado a eles o caminho.
– Eles mereciam algumas respostas. Não podemos puni-los por simplesmente terem nascido.
– Eles não pertencem a este mundo. E todos os que não pertencem a este mundo devem ser banidos de volta para o lugar de onde vieram. Sem exceção.
♦ ♦ ♦
De volta à capital, Valena encontrou Sandora na biblioteca do palácio, sentada a uma mesa e com três grandes tomos abertos à sua frente.
– Você nunca se cansa de ler esses livros velhos?
– E você nunca se cansa de treinar seus poderes?
– É diferente. Tem gente querendo me matar, preciso me tornar mais forte, é questão de sobrevivência.
Sandora olhou para ela e levantou uma sobrancelha. Valena suspirou.
– Bisadaha i yareeyeen! Está bem, entendi, “conhecimento é poder”, eu sei. Qeylinta, sendo questão de sobrevivência ou não, duvido que eu teria bac para passar tanto tempo assim aqui dentro.
A bruxa fechou os livros e os colocou de lado.
– Você não costuma praguejar tanto a não ser que esteja muito frustrada. O que houve?
– Wasaarada que estou frustrada! Acabei de ter uma reunião com Luma Toniato e o general Camiro. Descobri que os ku faraxsaneyn que assumiram o poder nas províncias estão “muito preocupados” com o fato de eu ter voltado. Pelo visto, estavam muito mais felizes quando achavam que eu estava morta. Aqueles jinniyo!
– Já prevíamos isso.
– O governador mesembrino reforçou a vigilância nas fronteiras. Ninguém entra, ninguém sai. O ditador sideriano está preparando um ataque contra nós, que pode ocorrer a qualquer momento. O grupo que está tocando o terror em Lemoran e diz ter selado o Espírito da Terra está planejando fazer a mesma coisa com a Grande Fênix. A autoproclamada monarca de Halias suspendeu todas as rotas de comércio com o continente e está fortalecendo seus navios de guerra. Os dois dameer que estão brigando pelo controle de Ebora parecem mais interessados no que acontece aqui do que na briga que travam um contra o outro. E a nova “suprema chefe” das Rochosas continua despachando espiões para cá, seu marido acabou de prender mais um deles.
– Evander não é meu marido.
– É mesmo? E por que não? Vai fazer ele esperar até quando?
Sandora cruzou os braços.
– Não é de sua conta. E por que tanta ansiedade? O povo da Província Central está contente com sua liderança, o exército está mais forte do que nunca, os soldados motivados. As outras províncias estão todas fracas, divididas, nenhuma delas vai querer nos atacar, pois sabem que não têm a menor chance. Principalmente a Sidéria.
– Eu tenho que vencer todos eles. Não quero governar só a Província Central, quero meu país todo de volta!
– Por quê?
– “Por quê”? Porque quando recebi esta marca – ela apontou para a face direita – eu finalmente consegui algo que é só meu, uma coisa que é minha por direito. E aquele bass daquele conselho imperial resolveu me tomar tudo! Eu não vou aceitar isso! Não vou!
— Fim do capítulo 1 — | ||
< Dedicatória | Sumário | 2. Sonhos Infantis > |