Valena – Capítulo 10

Publicado em 11/03/2018
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10. Sorte Grande

No início, Valena pensou que seu novo trabalho se resumiria em prestar serviços para o exército, mas não demorou a perceber que aquilo era uma espécie de patrimônio público, assim como as pontes de vento que permitiam viajar de um ponto ao outro do império em segundos. A maior parte das mensagens que ela levava ou trazia era solicitada por civis: cartas para familiares, solicitações de serviços, notícias, pedidos de ajuda, etc.

O exército imperial havia criado um sistema bastante eficiente de troca de mensagens, com pessoal bem treinado para tal, além de animais velozes para transporte terrestre e os melhores equipamentos possíveis para a tarefa. Os mensageiros também eram os únicos cidadãos do império que tinham, enquanto em serviço, a prerrogativa de uso de pontes de vento sem restrições. Dessa forma, o custo para transporte de cartas, panfletos ou pequenos embrulhos de um lado para o outro do continente ficava com um custo bastante acessível, o que incentivava a comunicação. E comunicação era a maior riqueza do país, conforme costumava dizer o imperador Sileno Caraman.

Aquela política havia proporcionado um desenvolvimento sem precedentes desde que fora implementada, há várias décadas, com um incrível fortalecimento do comércio e da oferta de prestação de serviços de todo tipo, incluindo alquimia e treinamento em habilidades místicas. Valena tivera várias aulas sobre história e organização social e política, onde esses assuntos eram tratados, mas para ela tudo isso era um verdadeiro tédio.

O trabalho de mensageiro, no entanto, era extremamente excitante. Também rendia um salário razoável, principalmente para os mais rápidos e eficientes. E Valena se considerava a melhor de todos.

Existia uma lei que impedia que menores de 17 anos tivessem suas próprias posses e seu próprio dinheiro, mas, felizmente, havia uma exceção para casos de órfãos, desde que houvesse um adulto disposto a supervisionar o jovem. O sargento Lacerni ficou feliz em assumir aquele encargo. Ele costumava dizer que sempre tinha visto potencial nela, e que potenciais devem ser aproveitados da melhor forma possível.

Tendo sido privada de tantas coisas durante a infância, Valena não se contentava com menos do que o melhor no que dizia respeito a roupas e acessórios. Por causa disso, acabavam sobrando muito poucas moedas no fim da semana, fato esse que a fez levar vários sermões do sargento. Depois de muita insistência dele, ela começou a poupar algumas moedas toda semana para realizar outra de suas vontades: adquirir um cavalo. Mas não um cavalo qualquer, tinha que ser o cavalo, vindo diretamente dos melhores criadores do país. Levaria quase um ano para conseguir realizar aquela proeza, mas ela estava decidida a conseguir.

Olhando para trás, Valena concluía que sua vida realmente havia começado de verdade apenas depois de ter sido presa. Nos anos anteriores, exceto pelos poucos meses que passara sozinha ao lado de Barlone, tudo parecia estranho, fora do lugar, como se ela fosse uma peça que não se encaixava em parte nenhuma de um enorme quebra-cabeças. Os últimos dois anos, no entanto, foram radiantes, produtivos e a encheram de esperanças em relação ao futuro. Agora tinha certeza que um dia conseguiria tudo o que queria, era apenas questão de tempo.

Ela só não imaginava que isso incluiria uma mudança tão repentina e drástica em sua vida.

Tudo começou com um trabalho que parecia normal e comum. Já fazia algum tempo desde que estivera em Linarea, então ela não se importou muito com o fato de não ter tempo de almoçar ou descansar um pouco após ter percorrido praticamente a cidade toda pelo menos duas vezes naquela manhã.

Os problemas começaram quando ela chegou até a base militar em Linarea e descobriu que o destinatário da mensagem não estava ali. Como se tratava de um envelope pessoal, urgente e que tinha que ser entregue em mãos, ela teve que fazer uma pequena investigação até conseguir descobrir onde aquele soldado havia ido parar, uma vez que era o dia de folga dele. Após conversar com várias pessoas e fazer uma visita à casa dos pais do sujeito, ela ficou sabendo que ele tinha sido avistado tomando a direção do Monte Efígeo.

Tratava-se de um morro bem alto na periferia da cidade, no topo do qual haviam monumentos representando cavaleiros alados, que os moradores locais gostavam de se referir como “os guardiões de Linarea”.

Mastigando um pedaço de carne seca para acalmar o estômago faminto, ela tratou de se dirigir para lá, torcendo para que conseguisse resolver aquele assunto logo.

Quando conseguiu ter uma visão bastante clara do morro, ela avaliou sua montaria e concluiu que a pobre égua não aguentaria encarar uma escalada íngreme como aquela, e que se precisasse subir até lá em cima, teria que ir a pé. Estava soltando um suspiro desanimado quando notou algo parecido com uma explosão próximo ao cume. Alguns outros brilhos a levaram a concluir que havia uma batalha ocorrendo por lá. O fato de haverem patrulhas militares vigiando a estrada principal que subia o morro também era outro indicativo de problemas.

Valena suspirou. A tarde já estava chegando ao fim, ela tinha perdido muito mais tempo do que pretendia com aquele trabalho. Estava cansada, suja, suada e cheirando a cavalo. Queria acabar logo com aquilo e voltar para casa.

Se um daqueles soldados fosse o que ela procurava, aquilo poderia ser considerado como a sorte grande. Mas, infelizmente, não era nenhum deles. Na verdade, de acordo com os soldados, o lumay havia subido o morro, para ajudar a prender um ladrão ou algo assim. Os guardas tentaram impedi-la de subir, mas ela argumentou que a mensagem era urgente. Além disso, os barulhos de luta lá de cima tinham parado o que provavelmente significa que o tal criminoso já devia ter sido preso.

Deixando a pobre égua pastando ali perto, ela tomou a trilha, junto com um soldado que foi designado para escolta-la.

Após alguns momentos caminhando por aquela trilha íngreme, um calor repentino pareceu brotar dentro de si e sua consciência foi se esvaindo. A próxima coisa de que se lembraria depois era de estar voando pelo céu há centenas de metros de altura, sem ter a menor ideia de como chegara até lá em cima.

Porém, não estava assustada nem nada do tipo, na verdade, sentia-se como se tivesse feito aquilo a vida toda, e observava o chão lá em baixo com interesse, procurando sua presa. Não que fizesse ideia de que tipo de “presa” estava procurando, mas o sentimento de antecipação pela caçada que sentia era tão grande que aquilo simplesmente não importava.

Podia ver claramente os soldados no solo, olhando e apontando para ela.

Sabia que não estava com suas plenas faculdades no momento. Era como se sua consciência estivesse envolvida por algo maior, mais denso, mais poderoso, que ofuscava seus pensamentos e sentimentos, a deixando estranhamente apática. Era quase como se estivesse assistindo enquanto outra pessoa controlava seu corpo.

Então uma movimentação no topo do Monte Efígeo chamou sua atenção e ela bateu suas asas (sim, tinham asas de fogo brotando de suas costas, por mais absurdo que aquilo pudesse parecer), e subiu, a fim de investigar.

O curioso é que o mundo parecia muito mais colorido do que antes. Não, pensando bem, não era isso, era como se tudo tivesse se tornado mais vermelho e alaranjado… espere, não era isso também. As coisas pareciam ficar mudando de cor o tempo todo, então não era o mundo que estava estranho, era ela que estava envolvida em um tipo de névoa transparente… não, aquilo não era uma névoa. Parecia mais… fogo. Fogo? Estava voando há centenas de metros de altura envolvida numa bola de fogo?

– Que shahwada é essa?! – Valena exclamou, olhando para as próprias mãos e notando as pequenas labaredas que as envolviam. Podia sentir o calor das chamas mas, de alguma forma, elas não lhe queimavam a pele. Ao invés disso, o calor era… reconfortante.

Então, uma sequência de estrondos pôde ser ouvida do topo do monte e ela viu o que pareciam ser inúmeros raios partindo de um certo lugar e espalhando-se em todas as direções, a maior parte deles se curvando no ar e atingindo o chão ao redor. As enormes estátuas também foram atingidas pelos raios, que causaram nelas sérios estragos.

Sua mente estava se tornando cada vez mais lúcida, como se a névoa que cobria seus pensamentos estivesse se dissipando aos poucos. Subitamente sentiu-se plena, transbordando de energia. O que estava acontecendo? Seria aquilo algum tipo de sonho?

Mas não teve muito tempo para analisar aquilo, pois de repente ocorreu uma enorme explosão e ela pode ver claramente o corpo de um jovem ser arremessado pelos ares, numa trajetória que o levaria a se esborrachar no chão, centenas de metros abaixo.

Por puro instinto, ela voou para lá o mais rápido que pôde e, sem saber como, emitiu uma espécie de bola de fogo que envolveu o corpo do rapaz. Ela não tinha ideia do que estava fazendo, era como se seu corpo tivesse se movido sozinho para fazer aquilo. Por um momento ela quase entrou em pânico, imaginando que veria uma pessoa explodir em mil pedaços, mas então percebeu que aquela energia não parecia ser uma ferramenta de destruição. Era como se o fogo o estivesse acariciando, energizando, enquanto parava sua queda e o fazia flutuar no ar. O rapaz agora parecia bem e estava recobrando a consciência, abrindo os olhos.

Era um interessante representante do sexo masculino, diga-se de passagem. Tinha um rosto jovem e atraente, longos cabelos loiros, amarrados num rabo de cavalo frouxo e usava um uniforme militar com detalhes na gola e nos punhos que indicavam uma patente respeitável, apesar de parecer jovem demais para aquilo. A insígnia presa no lado direito do peito do uniforme brilhava, imponente. O fato dele estar inteiro e sem nenhum arranhão aparente depois de ser arremessado com tanta força pela explosão era um mistério, mas ele parecia bem.

Mas havia um problema. A bola de fogo que o envolvia estava se desvanecendo, e ela não fazia a menor ideia de como lançar outra. Ele iria cair se não fizesse algo, então tentou se aproximar mais, estendendo os braços enquanto gritava:

– Segure minhas mãos!

Ele olhou para cima e a encarou com uma expressão meio abobalhada por um momento, antes de estender os braços para cima e agarrar nos antebraços dela, com força. Ela agarrou os dele também e torceu para ser capaz de sustentar o peso de ambos.

De repente ele pareceu cair em si e soltou uma exclamação:

– Que raios?!

Ao ouvir aquilo ela sentiu um enorme alívio. Mal podia acreditar que ele estava bem.

– Você está vivo!

Sim, ela sabia que aquela era uma coisa um tanto óbvia, mas não conseguiu evitar.

Então uma súbito e forte vento vertical os atingiu, fazendo com que o voo se desestabilizasse e ela precisasse bater as asas com força, tentando retomar o controle. O peso extra do rapaz tornava a tarefa de se equilibrar no ar quase impossível.

– Cuidado!

O grito dele a fez olhar para a frente e perceber que estavam indo em grande velocidade em direção a uma enorme pedra na encosta do morro.

Doorka wajiga! – Valena exclamou, tentando bater as asas, mas percebendo que era tarde demais para impedir a colisão.

Então, subitamente um brilho estranho surgiu no ar à frente deles e, ao invés de se chocarem com toda a força na pedra como ela esperava, o mundo subitamente pareceu parar. Envolta numa sensação de irrealidade, ela se viu parada no ar, o que parecia completamente incompatível com o que experimentara nos instantes anteriores.

A desorientação a levou ao pânico e ela bateu as asas com força, fazendo com que eles voltassem a ganhar velocidade, se afastando do morro. Então aquele maldito vento vertical os atingiu de novo, voltando a desequilibrá-la e obrigando-a bater as asas com mais força.

– Moça, você não vai conseguir se manter no ar desse jeito!

Saqafka jaban! Se conseguir fazer melhor do que eu, fique à vontade, tá bom? Eu nunca fiz isso antes!

– Não consegue voltar para o morro?

– Se… não pode ajudar… não atrapalha! – Valena exclamou, sem fôlego. – Não está vendo que… eu estou tentando?

Mas o esforço foi demais e a exaustão acabou a atingindo, deixando-a completamente sem forças. Sentiu que o rapaz a puxava na direção dele quando as asas de fogo se dissiparam e eles começaram a cair.

Ela voltou a si quando ouviu um enorme estrondo e sentiu que, de repente, estava sendo prensada contra o solo pelo corpo do rapaz. Conseguia até mesmo sentir o calor que ele emanava, mesmo através das camadas de roupas.

De repente ele saiu de cima dela, deixando-a com uma estranha sensação de abandono. Eram coisas demais acontecendo em pouco tempo, ela simplesmente não conseguia entender mais nada. Todo o calor e o poder que a estivera envolvendo lá em cima havia desaparecido e ela se sentia esgotada.

Por um longo tempo ela apenas ficou ali deitada, esperando para ver se acordava daquele sonho maluco. Mas, como aquilo não ocorreu, e tudo o que percebeu foi barulho de pássaros e insetos, ela tratou de abrir os olhos. E notou que estava deitada no meio do que parecia ser uma cratera, aberta pela queda de alguma coisa muito pesada no meio de uma clareira na floresta.

Sentindo o corpo latejar, ela reuniu suas forças e se colocou de pé, mas aquela tarefa exigiu muito mais esforço do que antecipara.

– Ei! Tudo bem aí?

Ela olhou na direção do rapaz, que se aproximava dela.

Qallooac! – Valena praguejou, com uma careta.

Ele riu. Até mesmo a risada do jooji era atraente.

– Moça, acho que você precisa dar um jeito nesse seu vocabulário. Você está bem?

– Tirando as dores pelo corpo todo, acho que sim.

Ele pareceu satisfeito com aquela resposta e sorriu.

– Você me deu um belo susto lá em cima.

– Preferia que eu te deixasse cair de lá?

Ele intensificou o sorriso, apontando para o chão.

­– Como pode ver, eu sei uma ou duas coisas sobre aterrissagens.

Ela arregalou os olhos enquanto fitava a cratera, antes de lançar um olhar para o alto.

– Oh! Aragti! Nós caímos?!

– Sim, mas nada que eu não conseguisse dar um jeito. – Ele estendeu a mão direita para ela. – Prazer em conhece-la, eu sou o subtenente Evander.

Ela não sabia o que lhe parecia mais irreal, aquela aventura maluca pela qual passara ou o intenso calor que a mão dele lhe transmitiu. De qualquer forma, ela se recusava a perder uma discussão, fosse qual fosse.

– Valena. E duvido muito que essas “coisas que você sabe sobre aterrissagens” servissem para alguma coisa com você inconsciente.

Ele voltou a sorrir, divertido, o que de repente tirou dela qualquer vontade de querer se mostrar superior a ele.

– Bem observado. Devo supor que foram esses… poderes seus que restauraram minha energia?

Ela não fazia a menor ideia, então desviou o olhar.

– É o que parece.

Então ele decidiu mudar de assunto.

– Você tem um bonito nome, Valena. Essa tatuagem no seu rosto é recente?

– Tatuagem? Que tatuagem?

Ela levou as mãos ao rosto e sentiu uma rugosidade, uma textura que não deveria estar ali.

Koofiyada qoyan! Que droga é essa?!

Valena esfregou o rosto freneticamente, mas o que quer que estivesse grudado ali não saía de jeito nenhum.

Então, ao ver que Evander olhava espantado para alguma coisa, ela virou o rosto e se viu encarando, embasbacada, uma figura que parecia saída diretamente das histórias infantis contadas no orfanato.

O Avatar. A misteriosa entidade que patrulhava incansavelmente o império, ajudando pessoas em necessidade. A enorme armadura dourada flutuava no ar, envolvendo o corpo invisível, que dizia-se ser feito de pura energia.

Valena sentiu o olhar daquele ser sobre si durante um longo tempo, então a entidade moveu a cabeça, parecendo assentir, e levantou um dos braços, voando para longe.

Culvert! Por que ele olhou para mim daquele jeito?

Evander suspirou.

– Acho que você não se olhou no espelho recentemente, não é?

– Como é?!

– Me fala uma coisa, como foi que você ganhou esses poderes de fogo e foi parar lá em cima?

Ela coçou a cabeça e olhou para o topo do monte que podia ser avistado por sobre as árvores, à distância.

– Eu não sei direito. Estava subindo o morro para entregar uma mensagem quando comecei a me sentir estranha, queimando por dentro, sei lá. Eu não lembro muito bem o que aconteceu depois. Acho que eu ouvi uma explosão e vi você caindo, então fui atrás para tentar te pegar.

– Acho que eu devo parabenizar você, alteza.

– “Alteza”? Que dagaal é essa?

Ele riu de novo.

– Você é de Lemoran, por acaso? Não acho que o pessoal daqui esteja muito familiarizado com esse seu… linguajar.

Ela franziu o cenho.

– Vá cuidar de sua vida, seu waa mid aan macquul ahayn!

– Ei! Pega leve, pega leve! – Evander levantou as mãos, rindo. – Eu acho que sei o que é essa tatuagem no seu rosto. Você recebeu a marca da Fênix.

Valena o encarou, contrariada, imaginando que ele estava fazendo algum tipo de brincadeira sem graça, mas então pensou em tudo o que havia acontecido e arregalou os olhos.

Teria ela conseguido a “sorte grande”, que tanto desejava?

♦ ♦ ♦

– Aí, Iseo, fiquei sabendo que vai perder a chance de fazer uma visita para a ex-sogra.

– Beni, por que não vai ver se estou lá no palácio?

O sargento Benarde Parentini riu, no que foi acompanhado pelos outros três oficiais atrás dele.

– Se quiser, podemos te trazer uma lembrancinha da Sidéria – disse o aspirante Alvor Sigournei, com um sorriso. – Afinal, você nunca mais voltou lá depois de romper o namoro com a irmã da Loren.

– Graças à Fênix por isso – falou a subtenente Loren Giorane. – Mas podemos trazer uma lembrança, desde que você não se sinta tentado a pôr os pés em minha casa de novo. Que tal uma daquelas máscaras de dormir? Assim você pode esconder essas olheiras e, assim, evitar assustar as criancinhas.

Com muita lentidão, o aspirante Iseo Nistano levou um dos dedos à região abaixo dos olhos e apalpou de leve, fazendo uma careta, antes de virar a cabeça na direção da capitã Laina Imelde.

– Agora que eu sei como é, estou quase arrependido por ter zoado tanto você quando estava nesta situação.

Laina riu.

– Estamos vivos, não? É o que conta. Como está se sentindo?

– Me sinto ótimo, só não tenho vontade nenhuma de me mexer, que dirá sair desta cama.

– Volte a dormir. Estará novo em folha em mais alguns dias.

– E quem vai salvar o traseiro de vocês quando se meterem em encrenca?

– Sandora – disseram os outros quatro, em uníssono, antes de se entreolharem e caírem na risada.

– Falando sério, vocês precisam tomar cuidado com o frio – voltou a falar Iseo. – O campo místico da Sidéria é diferente e a maioria dos soldados de lá pode…

– Relaxe – interrompeu Laina. – Já sabemos de tudo isso e a Loren vai estar com a gente. Além disso, Sandora tem um plano.

Iseo franziu o cenho.

– Sandora isso, Sandora aquilo… quem é que manda neste país afinal?

– Quer mesmo que eu te responda? – Loren perguntou, gerando outra onda de risadas.

♦ ♦ ♦

Se um dia, anos atrás, pensara que havia tirado a sorte grande, no momento Valena imaginava se o seu prêmio estaria chegando ao fim. Valdimor se encontrava sobre ela, em sua forma demoníaca, a prensando contra o chão enquanto descrevia os diversos tipos de tortura a que a submeteria.

Os oficiais que estavam na sala sacaram suas armas, mas permaneceram parados, sem saber direito o que fazer. Sandora e Gram se levantaram, ilesos, apesar do intenso impacto que sofreram contra a parede de pedra. Aquela aura de proteção realmente era algo digno de nota.

Já Valena, mesmo tendo aquele rosto de pele negra e dentes proeminentes a centímetros do seu, por alguma razão, não se sentia assustada. Apesar de tudo, havia alguma coisa naquele monstro, algo hesitante, oculto, que parecia gritar para ser libertado.

Uma ideia maluca lhe ocorreu, de repente. Se estivesse errada, provavelmente morreria ali, mas era algo que tinha que tentar. Então, quando ele aproximou mais o rosto enquanto descrevia mais uma daquelas horríveis e criativas formas de tortura, ela levantou a cabeça e o beijou nos lábios.

Imediatamente, um calor familiar que ela não sentia a muitos anos envolveu seu corpo, comprovando, sem sombra de dúvida, a razão de ela ter confundido aquela criatura com seu primeiro amante. De alguma forma, Valdimor a atraía em um nível físico, de forma ainda mais intensa do que Barlone.

O demônio se imobilizou, surpreso. Então ela aproveitou o momento de distração dele e puxou suas mãos, conseguindo se soltar das garras dele e o empurrou para o lado com força, se levantando e recuperando sua espada, que apontou para ele enquanto invocava o encanto de lâmina flamejante.

– Que shahwada é essa?!

Valdimor riu e se levantou, preparando-se para pular sobre ela novamente, mas então um daqueles chicotes em forma de tentáculo de Sandora o envolveu, dando várias voltas ao redor de seu torso e braços e apertando com muita força. Aquilo, no entanto, não parecia suficiente para segurá-lo. Forçando os braços, ele começou a esticar o chicote negro, levando a tensão a um ponto em que parecia que o construto místico iria se romper.

Gram, no entanto, não deu tempo para que isso ocorresse. Agarrando o chicote das mãos de Sandora, ela puxou com toda a sua inacreditável força, fazendo com que Valdimor voasse pela sala até se chocar com a parede do outro lado, mas não antes de esbarrar na cadeira onde ele estivera preso antes e arremessa-la para o lado, o que fez com que os soldados precisassem usar sua agilidade para evitarem ser atingidos.

Valena também teve que abaixar a espada e correr para um canto, pois, sem dar tempo para que Valdimor se recuperasse, Gram o puxou novamente, com mais força ainda, fazendo-o chocar-se com a parede do outro lado, e causando ainda mais destruição na sala. Não satisfeita, a morta-viva repetiu a manobra mais duas vezes, até que Sandora não conseguiu mais manter a coesão do chicote e o mesmo se desmaterializou.

As paredes de pedra estavam agora seriamente danificadas. Com certeza o lugar precisaria de uma boa reforma.

Sandora aproximou-se de Valdimor e materializou outro chicote, dessa vez envolvendo-o pelo pescoço.

– Espere! – Valena gritou, aproximando-se. – Ele não está totalmente fora de controle!

– Eu sei – Sandora respondeu. – E esta é a única razão de ele ainda estar vivo. – Ela desviou o olhar para uma mulher no canto. – Oficial, o encanto foi completado?

A outra levantou o punho e o anel que tinha no dedo médio brilhou por um momento, fazendo com que surgissem várias pequenas formas fantasmagóricas no ar.

– Sim, senhora! Pelas leituras, ele está sob o efeito completo da sugestão.

Valena olhou para Valdimor e apontou para a parede rachada.

– Nesse caso, responda: vai querer fazer mais uma gracinha como esta?

– Só quando… recuperar forças…

– Você recuperou a memória – afirmou Sandora.

– Sim…

Os oficiais se aproximaram trazendo os bastões flexíveis conhecidos como algemas, mas Sandora sacudiu a cabeça.

– Não, vamos fazer com que ele fale primeiro. As algemas impediriam que ele atacasse alguém de novo, mas também iriam dissipar o encanto da verdade.

Ainda lutando para respirar devido ao aperto na garganta, Valdimor apertou os olhos com força e desfez a transformação. Por um momento, Valena apenas olhou, embevecida, para aqueles músculos. Tinha que admitir que ele a atraía de qualquer jeito, mas a forma humana dele era especialmente atraente.

– Comece pelo começo – ordenou Sandora. – De onde você veio?

♦ ♦ ♦

A imagem de Evander projetada pelo pequeno cristal demonstrava perplexidade.

– Quer dizer que o homem veio mesmo direto do Inferno?!

“Céu e Inferno” eram lugares profetizados por algumas religiões independentes do império, e se tornaram relativamente populares, apesar de as Grandes Entidades negarem sua existência. O Céu, segundo essas histórias, era para onde as entidades enviavam as pessoas que haviam sido boas e generosas durante toda a sua vida, e lá gozariam de felicidade eterna. Já o Inferno, era para onde eram enviados aqueles que eram perversos e cometiam crimes, e lá sofreriam o merecido castigo pela eternidade.

– É o que ele acredita, pelo menos – respondeu Sandora, recostando-se nos travesseiros enquanto procurava uma posição mais confortável.

Ela normalmente não gostava do luxo daquelas camas do palácio, mas tinha que admitir que elas a ajudavam a descansar melhor, principalmente neste período onde seu corpo parecia completamente estranho, até mesmo um pouco descontrolado, graças à gravidez.

– E ele não é um discípulo de Donovan?

Um vilão chamado Donovan havia alegado tempos atrás que tinha conseguido invadir com sucesso tanto o Céu quanto o Inferno e havia descoberto que esses lugares eram uma aberração da natureza e não deveriam existir. Ele tinha conseguido libertar alguns dos “prisioneiros”, como ele chamava os habitantes desses locais, que tinham ficado tão gratos pela “libertação” que faziam tudo o que ele mandava.

– Não. Valdimor diz que ele e diversos outros foram enviados para cá para causar caos e destruição em retaliação por uma invasão não autorizada.

Evander estreitou os olhos.

– E há quanto tempo foi isso?

– Quase vinte anos.

– Então os atos de Donovan são a causa de ele estar aqui?

– É o que parece, mas ele não conhece a identidade do invasor. De qualquer forma, a retaliação a que ele se refere é contra toda a humanidade e não contra alguém em específico.

– Isso não parece nada bom.

– Ele também fez uma descrição bastante similar àquela que seu pai nos deu do lugar. Os habitantes do Inferno sofrem repetidas e cruéis torturas e a única forma de terem algum alívio é causar sofrimento a alguém mais fraco. E, paradoxalmente, parece que, lá dentro, independentemente de quem você seja, sempre existirá alguém mais forte e alguém mais fraco que você.

– Lugarzinho aconchegante. E ele sabe onde estão os outros que foram enviados para cá junto com ele?

– Não, parece que eles se dispersaram quando os protetores começaram a caçá-los.

– Se eu não soubesse que eles existiam há muito mais do que 20 anos, eu me perguntaria se os protetores não teriam uma origem similar.

– Os protetores têm a mesma aparência que os habitantes do Céu, incluindo a cor da pele e as asas emplumadas, mas sabemos que não são imigrantes, eles nasceram por aqui mesmo.

– Você diz isso porque sua habilidade de detectar pessoas de outros mundos não dá nenhum aviso quando um protetor está por perto, mas você conseguiu identificar Valdimor logo que o viu, assim como os discípulos de Donovan, não é?

Ela torceu os lábios.

– Sim. Mas não sei se posso chamar isso de “habilidade”.

Na verdade, a proximidade com pessoas vindas daqueles lugares a fazia passar mal.

Ele riu.

– É uma habilidade que se manifesta de forma peculiar.

– E quanto a essa protetora que está com você? Valdimor diz que ela foi responsável pela morte de pelo menos três companheiros dele.

– Elinora? Agora que ela viu contra o que estamos lutando aqui, decidiu se unir a nós até que a ameaça seja erradicada. O comportamento dela está mudando, aos poucos está se tornando mais… razoável. Provavelmente devido à exposição prolongada à minha aura.

A julgar por experiências anteriores, Evander e Sandora acreditavam que alguém exercia algum tipo de controle sobre os protetores, e a aura de ambos era capaz de enfraquecer o efeito.

Ele continuou:

– Era o que pensamos que estivesse acontecendo com Valdimor também, não era?

– Sim, mas essa perda de memória dele ainda desafia qualquer explicação. Ele afirma não se lembrar da causa de ter esquecido de tudo.

– E quanto a essa história de no Inferno ele ser compelido a torturar os mais fracos que ele? Se isso for verdade, porque ele escolheu Valena para ser sua vítima? Os dois têm nível de poder muito parecido, não?

– Não sei o que pensar sobre isso. Ambos se comportam de forma estranha em relação ao outro. Valena ficou tão abalada com essa confusão toda que o mandou de volta para a masmorra e se trancou no quarto, onde está desde ontem à noite.

– Isso parece atípico dela. Talvez a revelação da verdadeira natureza dele tenha sido um choque muito grande.

– Não acho que essa seja a razão – respondeu ela, pensativa.

– Se você diz. Mas, voltando a Valdimor, ele revelou quem o enviou para atacar Valena?

– Sim, e foi a mesma pessoa que o mandou atacar o capitão Joanson.

Dario Joanson havia sido o mentor de Evander, e um respeitado alto oficial, tendo lutado ao lado de Leonel Nostarius e Luma Toniato na equipe de elite conhecida como Guarda Imperial.

Ele estreitou os olhos.

– E essa pessoa seria…?

– Odenari Rianam.

– A pretensa rainha da Sidéria?

– E esposa do falecido conselheiro Rianam.

– O que confirma que o assassinato do capitão fazia parte da conspiração dos conselheiros para derrubar o império.

– Sim.

– E por que Valdimor obedece essa mulher?

– Parece que ela conseguiu se apossar de um artefato místico que é dele, um tipo de tornozeleira. Isso o compele a obedecer. Aparentemente a exposição à minha aura neutralizou o efeito, pelo menos temporariamente.

– Então, se a rainha for derrotada, além do império ficar livre de uma vilã, Valdimor também consegue a liberdade?

– Precisamente. Pretendemos partir para lá assim que possível.

Ele suspirou.

– Gostaria de poder ir com vocês, mas não podemos sair daqui agora, tem vidas em jogo. – Ele fez uma pausa, hesitante. – Você não gosta quando digo isso, mas não consigo evitar: por favor, tome cuidado.

Sandora olhou nos olhos dele por um longo momento. O cristal conseguia reproduzir quase que perfeitamente a cor castanha clara daquelas íris.

Então ela passou a mão diante do próprio corpo, dissipando os construtos místicos que formavam as roupas que vestia. Com fascinação, ela observou atentamente as reações dele. A surpresa, o arregalar de olhos, então aquela expressão saudosa, desejosa, além da óbvia mudança no ritmo da respiração.

– Hã… se queria me surpreender, eu diria que conseguiu – ele sorriu, não deixando de fitar seu corpo.

– Na verdade, eu queria confirmar uma coisa – respondeu ela, surpresa pela reação intensa do próprio corpo ao olhar dele. – Mas agora isso não parece mais ter importância.

— Fim do capítulo 10 —
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