Publicado em 10/12/2017 | ||
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2. Sonhos Infantis
Os pais de Valena não morreram na guerra. Por muitos anos, ela desejou ardentemente que esse tivesse sido o caso. Chegou até mesmo a mentir durante a infância e adolescência, inventando histórias gloriosas sobre o trágico destino que os tinha levado. Mas era difícil fugir da verdade.
Ela não se lembrava de absolutamente nada sobre sua mãe. De seu pai, ela tinha apenas uma vaga lembrança de seu rosto e de sua voz, geralmente irritada com alguma coisa. Então, um dia, ele havia desaparecido e ela tinha vindo parar, não sabia direito como, no orfanato.
O fato é que a guerra tinha oficialmente acabado vários anos antes de ela ser concebida. No entanto, rebeliões continuaram surgindo e lançando partes do país no caos por diversos anos. O governo de Sileno Caraman só foi aceito incondicionalmente por todas as províncias depois que uma das rebeliões fugiu completamente ao controle, resultando na completa aniquilação de uma província inteira e na morte de milhões de pessoas.
A fantasia favorita de Valena era que seus pais, na verdade, eram oficiais especiais, que agiam sob as ordens do próprio imperador e que deram suas vidas para salvar o mundo. Aquela fantasia foi alimentada por muito tempo, até que a verdade veio à tona e seus sonhos infantis foram todos despedaçados.
Ela tinha sete anos quando ouviu uma conversa entre a cozinheira e a lavadeira do orfanato. Achando que as crianças estavam todas brincando no quintal, elas falaram sobre a mulher que havia deixado Valena com eles.
A mãe de Valena havia falecido durante o parto, e desde então, o pai cuidava sozinho da criança. Infelizmente, um dia ele deixou a menina dormindo, sozinha, em casa e saiu para tomar um drinque. Seu último drinque, pois acabou encontrando seu fim em uma briga idiota de bar.
A pequena Valena, com apenas dois anos de idade, foi encontrada pela vizinha, que ouviu seu choro desesperado e foi verificar o que estava acontecendo. Não tendo como cuidar de mais uma criança, uma vez que já tinha outros dois filhos e estava novamente grávida, a mulher acabou levando a menina para o orfanato.
Valena levou anos para aceitar aquela história como verdade. E, se ouvir aquela narrativa já não fosse ruim o suficiente, ela não era a única que tinha ficado escondida atrás da porta escutando. A história se espalhou entre os internos e Valena descobriu que, diferentemente dela, as outras crianças, principalmente as mais velhas, não tinham nenhuma dificuldade em acreditar naquilo tudo. Ela se tornou motivo de chacota e sua vida, que já não era lá essas coisas, virou uma verdadeira tortura.
O orfanato Delafortuna havia sido fundado para auxiliar as vítimas da guerra e das rebeliões separatistas. A maioria dos internos era filho de soldados que haviam lutado pelo império, muitos tendo falecido em combate ou em decorrência de ferimentos. Preocupado com o bem-estar das crianças que haviam perdido ambos os pais e não tinham com quem ficar, o governador havia fundado instalações como aquela em várias cidades da Província Central.
Durante a infância de Valena, a administradora do lugar se chamava Ganaris. Tratava-se de uma mulher na casa dos quarenta e que se destacava por seu tamanho (e peso). Tinha o rosto largo, inchado, queixo duplo e uma barriga volumosa, além de braços e pernas muito grossos. Assustadoramente grossos, na opinião de algumas das crianças. Apesar daquilo, a mulher tinha mais energia do que todos os adultos que trabalhavam ali, juntos. Subia e descia as escadas inúmeras vezes todos os dias, supervisionava todas as atividades e, de vez em quando, ainda levava as crianças para passear pelos diversos parques da cidade. Ela gostava bastante de assistir aos discursos do imperador, e sempre levava algumas das crianças com ela, sendo aquele o tipo de passeio favorito de Valena.
Ninguém nunca soube explicar direito a Valena porque ela havia sido acolhida no orfanato. Afinal, ela não era “filha da guerra”, era apenas mais uma das milhares de vítimas das armadilhas do destino que não tinham família, dinheiro e nem onde morar. Outra coisa interessante é que o orfanato não admitiu mais nenhuma criança depois de Valena, “filha da guerra” ou não. Ela era a mais jovem ali dentro.
Outra coisa que servia como motivo de bullying era o fato de ela não ter sobrenome. Na época em que ela foi trazida seu pai era, praticamente, um desconhecido na cidade. Ele havia se mudado para Aurora pouco tempo antes de morrer, e ninguém sabia de onde ele tinha vindo. Ganaris a tinha registrado nos livros do orfanato como “Valena Delafortuna” e, sem escolha, ela acabou assumindo aquele nome, o que se tornou um prato cheio para a crueldade infantil de seus colegas.
Algumas vezes ela pensou se não teria sido melhor ter sido deixada lá, abandonada, para morrer. Mas a sua teimosia sempre acabava prevalecendo e ela colocava esses pensamentos de lado. Sendo órfã da guerra ou não, aquele lugar era seu lar também, e enfrentaria qualquer um que dissesse o contrário.
Então ela tratava de encarar aqueles que caçoavam dela e chamar todo mundo para briga. Como resultado, geralmente acabava ficando dias de castigo no quarto. De qualquer forma, mas ver os arranhões e hematomas nos rostos daqueles infelizes lhe era mais do que compensador.
Aos nove anos, ela começou a reparar em uma menina que morava numa casa vizinha. A casa era bonita e cheia de coisas que os meninos mais velhos diziam que só os ricos tinham. Valena às vezes ficava horas na janela olhando para o quarto da menina, ou, pelo menos, para o pouco que dava para ver dele entre as belas cortinas, quando as mesmas ficavam abertas.
O que lhe parecia mais incrível lá dentro era uma boneca de pano. Era colorida, costurada a partir de retalhos, mas, para Valena, era a coisa mais fantástica que já tinha visto. Às vezes, a garota deixava a boneca sobre a mesa ou até mesmo na janela, onde corria o risco de cair para fora.
Aquela menina não parecia ser uma pessoa muito interessante. Era birrenta e vivia gritando com a mãe e com os empregados, como uma espécie de princesinha mimada.
Um dia, a mãe a colocou de castigo e a trancou no quarto, o que divertiu Valena, pois era a mesma punição pela qual ela própria passara tantas vezes, e não deixava de ser interessante ver alguém tão desprezível passando pelo mesmo infortúnio.
O espetáculo ficou melhor ainda quando, vendo que ninguém abria a porta, a fulaninha começou a gritar a plenos pulmões, o que poderia ter assustado toda a vizinhança, caso ninguém estivesse acostumado com os “chiliques” dela. Depois de algum tempo a gritaria passou, Valena imaginou se a mãe dela tinha ameaçado dar um castigo ainda pior ou coisa do gênero. De qualquer forma, a guria ainda estava bastante irritada e começou a jogar coisas contra a parede. Não satisfeita em quebrar vasos e brinquedos, ela agarrou a boneca de pano e a atirou pela janela com toda força, fazendo com que ela caísse dentro do quintal do orfanato.
Mais do que depressa, Valena correu escadaria abaixo, da maneira mais silenciosa que conseguiu, para não chamar a atenção de ninguém e deu um jeito de se esgueirar para fora pela porta dos fundos. De alguma forma, ela conseguiu correr para o quintal, agarrar a boneca e voltar para dentro sem ninguém notar.
Quando ela se deitou em sua cama, no alto do beliche, abraçada com a boneca, Valena se sentiu imensamente feliz. Que sorte a dela, que a garota não queria mais aquele brinquedo. Tudo nele lhe parecia maravilhoso: o cheiro, as texturas dos diferentes tipos de pano, as cores e a forma como ela havia sido feita, cheia de detalhes, com duas pequenas contas formando os olhos e tiras de tecido picotado no lugar dos cabelos.
Durante cerca de uma semana, o momento de ir para a cama foi a hora mais excitante de seu dia, quando ela subia no beliche, tirava o brinquedo de seu esconderijo super secreto sob o colchão de palha e se divertia com ele. Ela fingia conversar com a boneca, mas apenas em sua imaginação, pois não queria que ninguém descobrisse seu segredo. As duas tinham longas conversas, discorrendo sobre o que havia acontecido durante o dia e o que pretendiam fazer no dia seguinte. Valena contou à boneca todas as histórias que havia inventado sobre o heroísmo de seus pais. Era a única que não se importava em desmascará-la, jogando em sua cara que tudo aquilo era mentira e que seu pai não passava de um pobretão bêbado. Ela abraçava o corpinho de pano e deixava a imaginação correr solta, inventando incontáveis histórias. Sobre si mesma, sobre as outras crianças, sobre o orfanato, sobre a própria boneca e sua dona…
Logo, no entanto, ela não se sentiu mais satisfeita em ficar com seu tesouro apenas durante a noite, e acabou mostrando o brinquedo para as outras meninas. Quando percebeu seu erro, era tarde demais. Com inveja, as meninas começaram a caçoar dela com ainda mais intensidade do que antes. Como Valena se recusava a deixar qualquer outra menina a pegar seu tesouro, foi chamada de egoísta, caqli e isha maskaxda.
Várias das crianças tinham vindo de Lemoran, e algumas delas tinham uma predileção especial por palavras de baixo calão de sua língua nativa. Como quase nenhum dos adultos entendia, aqueles xingamentos no dialeto lemoriano haviam se tornado moda entre os internos, quase uma obrigação. A própria Valena levou anos para conseguir entender o significado de grande parte das imprecações que usava.
Em certa ocasião, as meninas tentaram tomar a boneca dela. Não conseguindo, uma vez que Valena era mais forte e mais esperta do que a maioria dos internos, elas desistiram de um confronto direto e começaram a traçar planos.
Por duas vezes, conseguiram se apossar do brinquedo, mas Valena sempre acabava descobrindo tudo e reavendo seu tesouro de volta. Até que um dia, uma das garotas pulou o muro do orfanato e foi até a casa vizinha, para informar o paradeiro da boneca à sua dona original.
No dia seguinte, Valena foi obrigada a devolver o brinquedo. Ganaris lhe explicou que a filha do vizinho tinha ficado tão triste com a perda da boneca que chegou a se adoentar. Valena duvidava muito que aquela ku faraxsaneyn se preocupasse um pouco que fosse com aquilo, mas a administradora parecia bastante atribulada com aquela situação. Em consideração àquela que era a única adulta que Valena realmente respeitava, acabou concordando em devolver.
Ela nunca admitiria isso para ninguém, mas passou várias noites chorando baixinho, sentindo falta de seu tesouro.
Semanas depois, quando um dos adultos levava as meninas para um passeio, Valena encontrou o que restou da boneca no chão, na calçada em frente à casa vizinha. Os olhinhos e cabelos tinham sido arrancados e o corpo estava quase completamente queimado, restando pouco mais do que a cabeça.
Sem deixar que ninguém percebesse, ela recolheu o que restou do brinquedo e o levou consigo. Durante a noite, ela deu um jeito de se esgueirar até o quintal. Usando uma pequena pá de madeira, que servia de brinquedo para as crianças, ela abriu um pequeno buraco e sepultou ali seu tesouro, deixando as lágrimas caírem livremente.
Valena não era o tipo de garota que se fechava no quarto quando estava triste, mas aquela ideia passou por sua cabeça. Repetidas vezes. Ela fez o possível para fingir que nada demais havia acontecido, mas ver aquele brinquedo destruído foi algo que calou bem fundo nela.
Ganaris foi o único adulto a perceber, ou, pelo menos, a dar a entender que havia percebido o sofrimento da menina. Um dia, a administradora a levou até um arbusto que ficava no jardim e mostrou a ela um casulo pendurado em um dos ramos.
– Isso aqui é o maior exemplo de que a vida é um ciclo – disse ela. – O inseto precisa deixar para trás a sua antiga vida como lagarta para se tornar uma linda borboleta. Nunca é fácil se desapegar do que nos é tão querido, mas às vezes, isso é necessário para podermos evoluir, crescer, nos tornarmos pessoas melhores. E você… – ela apontou novamente para o casulo – você é como esse bichinho. Um dia irá se tornar uma moça maravilhosa, como uma bela borboleta, que encanta a todos que a veem. Você será uma pessoa muito importante e muito querida. Basta levantar a cabeça e seguir em frente, que todos os seus sonhos poderão um dia se tornar realidade.
Na opinião de Valena, não existia nenhum outro adulto como Ganaris. Forte, inteligente, carinhosa. Era uma figura inspiradora, respeitada por todos, até mesmo, em certo grau, pelas crianças mais maldosas, que viviam a caçoar da aparência da administradora.
Ganaris pensava que ela estava triste por ter devolvido a boneca, não fazia ideia de quão cruel aquela vizinha realmente era. De qualquer forma, suas palavras serviram como um alento. Valena prometeu a si mesma que, quando crescesse, acabaria com a crueldade no mundo.
Saber que existiam pessoas como Ganaris lhe dava esperanças de que as coisas poderiam um dia ser melhores.
Em um determinado dia, no entanto, a administradora desapareceu. Ninguém nunca soube exatamente o que tinha acontecido com a boa senhora, era como se tivesse evaporado no ar. Um novo administrador foi nomeado para o orfanato e a vida prosseguiu, apesar da tristeza e da preocupação de todos, principalmente dos internos mais jovens.
Valena passou meses perguntando por notícias, que ninguém podia lhe dar. Levou muito tempo até ela aceitar o fato de que Ganaris não iria mais voltar. Aquele golpe, para ela, foi o mais terrível de todos.
Com o tempo, a tristeza se transformou numa raiva fria. Ela então fez uma nova promessa para si mesma: um dia seria uma pessoa importante e seus sonhos iriam todos se realizar. Um dia. Um dia teria tudo o que quisesse e não deixaria que tomassem mais nada e nem ninguém dela. Nunca mais.
♦ ♦ ♦
O aspirante Alvor Sigournei passou a mão pelos cabelos castanhos, apreensivo, enquanto seguia a capitã Imelde pelos corredores do palácio. Nem mesmo o sensual ondular dos quadris de sua superior foram capazes de distraí-lo.
A perspectiva de encarar Valena Delafortuna não lhe era nem um pouco atraente. Ele já trabalhara com pessoas jovens e poderosas por tempo suficiente para saber o quão imprevisíveis elas poderiam ser.
Os soldados que montavam guarda abriram as grandes portas do salão principal para eles, antes de prestarem continência.
– Perdeu a hora de novo, Gricoles? – Laina Imelde lançou um olhar divertido para um dos soldados, enquanto inclinava levemente a cabeça para o lado, com seus cabelos loiros caindo pelos ombros de maneira adorável.
Alvor tinha certeza que muitos dos soldados estavam apaixonados pela capitã. Afinal, ela era bastante atraente e, não só sabia daquilo como gostava muito daquele fato. Tanto que fazia o possível para realçar seus atributos naturais, dentro do que a etiqueta militar permitia.
O soldado chamado Gricoles olhou para o próprio uniforme, que estava um pouco amassado, e deu um sorriso sem graça.
– Desculpe, capitã, aconteceram… imprevistos.
– Deixe seu parceiro segurando as pontas e vá se trocar, antes que o coronel apareça por aqui.
– Mas…
– É uma ordem, soldado.
– Sim, senhora!
Alvor esperou até que o outro rapaz fechasse a porta atrás deles, antes de comentar, sorrindo:
– Parece que você acabou de conseguir mais um admirador, o coitado só faltou colocar a língua para fora.
– Certas coisas na vida nunca são demais – respondeu ela, no mesmo tom conspiratório.
A imperatriz os aguardava, ao lado do grande trono, enquanto conversava com seus conselheiros. Entre eles estava a infame “bruxa de Aldera”, que preferia ser chamada de Sandora Nostarius, e os ex-generais Leonel Nostarius e Luma Toniato.
Leonel aparentava ter passado um pouco da casa dos sessenta anos, com cabelos grisalhos e intensos olhos escuros, quase negros. Luma aparentava ser uns poucos anos mais jovem, tinha pele escura e cobria a cabeça com um turbante branco. Ambos fizeram parte da guarda de elite do falecido imperador Sileno Caraman e eram conhecidos e respeitados em todos os cantos do país por seus atos de heroísmo.
Alvor e Laina prestaram continência e aguardaram até que Valena fizesse um gesto para que se aproximassem.
– Aspirante Sigournei – disse a imperatriz. – Soube que você passou um tempo em Mesembria meses atrás.
– Sim, senhora.
– É verdade que conheceu pessoalmente o tal “Dragão de Mesembria”? Aquele que hoje ocupa o posto de governador daquela província?
Alvor engoliu em seco. A expressão da imperatriz era neutra, de forma que não dava para saber o que ela estava pensando. Ele fez uma prece silenciosa para que sua lealdade não fosse colocada à prova.
– Sim, senhora – respondeu, com cuidado. – Apesar de que, na época, ele ficou conhecido apenas como o “Dragão de Lassam”.
– Ótimo. Preciso saber mais sobre ele. Conte para nós tudo o que sabe sobre Daimar Gretel.
Alvor trocou um breve olhar com Laina. Ele confiava na capitã e sabia que ela o apoiaria, eles lutaram lado a lado contra as situações mais adversas e tinham desenvolvido um alto nível respeito um pelo outro. Infelizmente, ela não poderia ajudá-lo naquela situação.
Voltando a encarar Valena, ele decidiu ser sincero e aguentar as consequências.
– Eu respeito muito o senhor Gretel e acredito que ele está fazendo um bom trabalho no comando de Mesembria. Com todo o respeito, alteza, não estou certo do quanto posso revelar sem… como poderia dizer… trair a confiança dele.
Valena franziu o cenho e estava prestes a passar uma descompostura no homem quando Leonel Nostarius levantou uma das mãos, num pedido silencioso pela palavra. Não muito satisfeita, ela acabou assentindo.
Leonel se voltou para Alvor.
– Você, por acaso, sofreu algum tipo de coação para que não nos passasse informações, oficial?
– Não, senhor – ele respondeu prontamente, de forma enfática, enquanto sentia o olhar atento de todos sobre si.
– Uma das características que eu mais valorizo em uma pessoa é sua habilidade de inspirar lealdade – concluiu Leonel.
Valena suspirou e olhou para Sandora, que lhe lançou um olhar de advertência, enquanto Leonel prosseguia:
– Digamos que estejamos pensando em ter uma conversa com o senhor Gretel em um lugar neutro. Estaria disposto a interceder a nosso favor para marcar esse encontro?
Alvor engoliu em seco novamente.
– Não, senhor – disse, mas ao ver a imperatriz franzir o cenho, tratou de emendar rapidamente: – Mas eu posso levar a mensagem até Mesembria. Tenho certeza de que o senhor Gretel irá, ao menos, me ouvir.
♦ ♦ ♦
Mais tarde, em seus aposentos, Valena andava de um lado para o outro, visivelmente alterada.
– Viu a audácia daquele oficial?!
– O que eu vi foi você quase perdendo a paciência sem nenhum motivo – replicou Sandora, calmamente, enquanto estudava um mapa sobre a mesa.
– Então você também vai ficar do lado dele?!
A bruxa levantou os olhos e encarou a imperatriz.
– Valena, em minha opinião, você está fazendo um ótimo trabalho. As pessoas estão se sentido confiantes. O exército retomou as atividades que fazia antes, garantindo segurança para os trabalhadores. Os agricultores estão arando as terras, os ferreiros e carpinteiros estão produzindo, os instrutores estão ensinando.
– E as pontes de vento estão quase todas consertadas.
– “Quase todas” não, mas estamos fazendo o possível. – Sandora apontou para o mapa. – Já podemos chegar a qualquer lugar da Província Central em menos de um dia, e isso, além de melhorar nossa segurança também facilita a vida dos comerciantes e caixeiros-viajantes.
– Estão elogiando bastante essas novas pontes que você projetou.
– Elas vão dar para o gasto, pelo menos até que possamos substituir todas por algo mais durável.
– Está vendo? Está tudo sob controle. Por que pessoas como aquele aspirante parecem não confiar em mim?
– Primeiro, por causa da sua atitude.
Valena encarou Sandora, franzindo o cenho.
– Como é que é?
– Você parece esperar que todos se ajoelhem perante você e agradeçam à Fênix por poderem te servir.
Um sorriso travesso surgiu no rosto da imperatriz.
– Isso não seria nada mau se fosse verdade. De qualquer forma, o aspirante concordou em levar uma mensagem minha para Mesembria, então tudo acabou dando certo.
– Mas não é assim que as coisas funcionam, e você sabe disso. Não precisamos de um mensageiro, precisamos de um aliado, e não conseguiremos nenhum se você continuar se comportando dessa forma. O general Nostarius está certo em chamar sua atenção, às vezes você trata as pessoas como se fossem ameaças.
– Depois de tudo o que eu passei você quer que eu aja como?!
– Como uma imperatriz. Como alguém que deseja o melhor para o seu povo. Não é isso o que você me disse outro dia? Que queria transformar o império no melhor país para se viver que esse mundo já viu?
Valena andou de um lado para o outro, indócil.
– O império foi traído antes. Você quer que eu confie cegamente em qualquer um?
– O golpe de estado do Conselho Imperial nunca seria concretizado se o imperador estivesse vivo. Ele tinha a total lealdade da maioria absoluta das pessoas. Para fragmentar o império, precisaram antes matar o imperador. Isso não lhe diz nada?
Valena abriu a boca para dizer algo, mas voltou a fechá-la. Então dirigiu-se à janela e olhou para fora.
– Eu sou mesmo assim, tão arrogante quanto você faz parecer?
– Penso que você precisa esfriar um pouco a cabeça.
– Mas eu não sou assim com todo mundo! Nunca tratei você dessa forma, nem seu marido ou o general. Jahwareer, você acabou de me chamar de arrogante e cabeça quente na minha cara, e não me sinto ofendida por causa disso.
– Eu e Evander derrotamos você em combate e o general Nostarius foi o seu instrutor. Isso criou laços entre nós. Somos seus aliados e estamos dispostos a lutar por você devido a esses laços. Quanto às outras pessoas, você as trata como súditos. Muitas vezes isso não irá funcionar, pois todos preferem ser tratados como…
– Amigos? – Valena sugeriu.
– Algo assim.
– Você não é uma pessoa nada sociável. Acho estranho ouvir você falando coisas como essas.
– Não há relação entre uma coisa e outra. Deixa eu dar um exemplo: quando o capitão Joanson me encontrou, eu era procurada por prática de bruxaria. As pessoas queriam me ver queimada em praça pública. No entanto, ao invés de me prender, ele preferiu conversar comigo e me ajudar a resolver os meus problemas. A capitã Imelde e o aspirante Sigournei eram subordinados dele na época, e me ajudaram também. Eles tinham todo o direito de me prender primeiro e me fazer perguntas depois. Mas, se tivessem feito isso, eu não estaria aqui com você agora, pois provavelmente não confiaria em ninguém do exército ou do governo.
Valena andou novamente pelo quarto e se jogou numa cadeira, de forma desleixada.
– Acho que entendi o que você quer dizer. – Ela ficou pensativa por um tempo, antes de franzir o cenho e voltar a encarar Sandora. – Mas você tem a mesma idade que eu, não é? Como pode? Quero dizer, olha essas coisas que você fala, parece até que é um…
– Adulto? – Sandora sugeriu, levantando a sobrancelha.
– Algo assim – respondeu a imperatriz, rindo.
– As pessoas são o que são, Valena. E, pela lei do Império, nós duas já somos adultas, então, precisamos agir como tal.
– Certo. O que sugere que eu faça em relação ao aspirante?
♦ ♦ ♦
Ser membro da Tropa de Operações Especiais significava ter algumas regalias na capital do império. Existia todo um bloco de alojamentos que, na verdade, eram apartamentos confortáveis e até um pouco luxuosos.
Alvor Sigournei havia se mudado para lá logo depois que Valena assumiu o trono. O período após a fragmentação do império e da morte do general Narode havia gerado bastante insegurança, mas felizmente a nova imperatriz não estava tentando mudar muito as coisas, ao invés disso, ela tinha dado prioridade em fazer com que tudo voltasse a funcionar como antes, o que fazia com que ela subisse consideravelmente no conceito dele.
Desde que entrara para as Tropas Especiais, Alvor nunca havia morado por muito tempo no mesmo lugar, tendo, inclusive, dormido em tendas ou ao ar livre na maioria das noites. Por isso, ter um quarto espaçoso como aquele só para ele lhe parecia até um pouco estranho.
Não que vá ser difícil de me acostumar, ele pensava, enquanto se jogava sobre o colchão macio.
Normalmente ele costumava sair com os amigos nos dias de folga, mas hoje havia aberto uma exceção, pois fizera viagens para os quatro cantos da província esta semana, e estava precisando de um pouco de paz, tranquilidade e silêncio para repor as energias.
Quando começava a cochilar, foi surpreendido por uma batida à porta. Imaginando quem poderia ser, ele se levantou, apressado e vestiu uma camisa. Aquele lugar podia se parecer com uma casa, mas ainda era um alojamento militar, e ser visto só de calças por um oficial superior não estava na sua lista de situações que gostaria de enfrentar.
Ainda bem que tomou aquela precaução, pois ao abrir a porta se deparou com, nada mais, nada menos do que a imperatriz de Verídia.
– Boa tarde, oficial – disse ela, num tom de voz bem mais amigável do que o que ele considerava o normal para ela. – Me desculpe por interromper a sua folga, mas eu preciso de alguns minutos do seu tempo, se não se importa.
Ele não deixou de notar que aquelas palavras pareciam um tanto forçadas, como se ela tivesse ensaiado aquele discurso cortês por muito tempo antes de bater à porta dele. Mas, de qualquer forma, ela parecia sincera.
– Seria uma honra, alteza.
– Posso entrar?
Ele olhou para os dois lados, avistando algumas pessoas andando pelo longo corredor, mas, aparentemente ninguém havia reconhecido Valena, que usava um manto escuro e discreto, muito diferente das roupas vermelhas e chamativas que ela gostava de vestir.
– Claro – ele se afastou para o lado, fazendo um gesto para que ela entrasse, imaginando se aquilo seria apropriado.
Depois de fechar a porta com cuidado, ele olhou para ela.
– Gostaria de se sentar?
Subitamente ele se deu conta de que não havia absolutamente nada para oferecer a ela. Afinal, soldados normalmente não recebiam visitas. Pelo menos não em alojamentos oficiais.
– Não, obrigada. Não pretendo me demorar – ela soltou um suspiro, com uma expressão tão expressiva no rosto que ele quase podia enxergar as “engrenagens” da mente dela trabalhando, procurando as palavras adequadas para o que quer que quisesse dizer a seguir. – Em relação àquela audiência que tivemos ontem, acredito que não expressei direito as minhas intenções.
♦ ♦ ♦
Dois dias depois, Luma Toniato e Leonel Nostarius ouviam, surpresos, o relato completo do aspirante Sigournei sobre o período que passou em Lassam e da luta que travou ao lado de Daimar Gretel e sua família.
– É uma história fascinante, aspirante – comentou Luma. – Mas não encontramos nos arquivos nenhum relatório detalhado sobre esse período. Lá consta apenas uma averiguação sobre uma possível pessoa de interesse.
– Sim, senhora – ele baixou o olhar. – Como o assunto foi resolvido eu… não vi razão para tornar públicos esses fatos.
– Em outras palavras, você decidiu proteger a privacidade do senhor Gretel – concluiu Leonel.
– Sim, senhor.
– Mesmo arriscando manchar sua ficha por causa disso.
Alvor deu de ombros.
– Eles confiaram em mim, senhor. Relatar tudo isso para o comando da província central me pareceu inadequado. De qualquer forma, assumi que os oficiais de Lassam iriam fazer relatórios sobre o assunto.
Luma o estudou com atenção.
– O que o fez mudar de ideia e vir até nós para revelar tudo isso?
– Acredito que eu tenha interpretado incorretamente as intenções da imperatriz, senhora. Quando ela me explicou o que realmente tem em mente, eu concluí que seria melhor vocês conhecerem essa história antes de planejar qualquer tipo de negociação com Mesembria.
Leonel levantou uma sobrancelha.
– A imperatriz procurou você?
Alvor engoliu em seco. Será que deveria ter ficado de bico calado sobre aquilo?
– Sim, senhor.
– Isso é ótimo, não imaginava que Valena faria uma coisa dessas, creio que a subestimei – concluiu Luma Toniato, fazendo o aspirante suspirar aliviado.
– Ela deu a entender que considera essa negociação muito importante – disse Alvor.
– E você contou essa história toda a ela? – Leonel quis saber.
– Não, senhor. Ela me disse que não havia necessidade de confiar apenas nela. Disse que o senhor é um dos maiores heróis do império e que sabe julgar muito bem qualquer situação, bem como é capaz de guardar qualquer segredo que for necessário, inclusive dela própria.
Leonel e Luma trocaram um olhar, bastante surpresos.
– Muito bem, aspirante – disse Leonel. – Ficamos muito gratos pelas informações. Lhe dou minha palavra que apenas as pessoas que realmente importam terão acesso a elas.
– Muito obrigado, senhor – respondeu Alvor, prestando continência. – Se isso for tudo, eu preciso retornar ao quartel.
– Apesar de já termos liderado tropas por muitos anos, aspirante, hoje não somos mais oficiais, não há motivos para formalidades – respondeu Luma. – Somos apenas um casal de velhos tentando dar conselhos para uma menina.
Alvor riu.
– Eu diria que estão fazendo um ótimo trabalho. Se me derem licença…
Leonel e Luma observaram o aspirante sair do aposento antes de olharem um para o outro.
– Você uma vez me questionou sobre a sensatez da decisão de manter Sandora ao lado de Valena – disse Leonel. – Está aí a sua resposta.
– Está me dizendo que ela conseguiu convencer a imperatriz a procurar pessoalmente o oficial e explicar seus planos para ele? Não que eu duvide de você, mas não entendo como ela conseguiria fazer aquela teimosa mudar de atitude.
– Valena não recebeu aquela marca por acaso, Luma. Além disso, Sandora também não chegou onde está hoje por acidente. Elas podem ser jovens, mas têm muito potencial.
– Você realmente acredita que esses jovens sejam o que nosso país precisa neste momento?
– Acredito que este é o país deles agora.
— Fim do capítulo 2 — | ||
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