Publicado em 09/12/2018 | ||
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20. Jogando a Toalha
Valena tinha pensado que os rumores eram exagerados, até avistar a colossal cratera no lugar onde antes ficava uma das maiores cidades da província. A realidade era bem pior do que os comentários que ouvira.
O interior do imenso buraco era escuro, mesmo com os raios do sol do meio dia incidindo diretamente sobre ele, e Valena podia jurar que tinha avistado algo se mexendo lá em baixo. Desesperada para conseguir uma pista do que raios tinha acontecido ali, ela ativou a forma da Fênix e sobrevoou a cratera por alguns minutos, antes de descer, com intenção de ir até o fundo daquele abismo.
Então notou algo estranho. Parecia que, quanto mais descia, mais lenta ela ficava, levando cada vez mais tempo para percorrer a mesma distância. O buraco devia ter quilômetros de profundidade, mas aquilo nem era uma distância tão longa para ela, ainda mais quando estava descendo. Depois de algum tempo, ela acionou sua habilidade mística de orientação espacial e descobriu que não havia percorrido mais do que algumas poucas centenas de metros.
Se estava tendo tanta dificuldade para descer, a subida poderia ser bem pior, então ela decidiu deixar aquela investigação de lado e bateu as asas flamejantes com força, projetando-se para cima. Quando finalmente chegou até a borda do buraco e pousou no chão, mais de meia hora havia se passado e ela estava exausta. Não seria capaz de voltar usar a forma da Fênix naquele dia.
Que sinnaanta estava acontecendo?
Ela olhou para a cratera misteriosa por um longo tempo, confusa. Por fim, sacudiu a cabeça, frustrada. Pelo visto não conseguiria descobrir nada ali.
A jornada a pé até a cidade mais próxima levaria várias horas. Além disso, não tinha dinheiro consigo e duvidava muito que as pessoas dali fossem tão generosas quanto os habitantes das florestas do norte, onde estivera nas últimas semanas. Então, teria que arranjar sua própria comida, e duvidava que pudesse vir a dormir numa cama de verdade tão cedo.
Por sorte, não foi difícil conseguir encontrar frutas e castanhas comestíveis numa das florestas de pinheiros quer rodeavam a cratera. Ela sentou-se para descansar enquanto fazia sua refeição improvisada, deixando seus pensamentos vagarem.
O que teria acontecido em Aldera? Que tipo de poder maligno seria capaz de provocar tamanha tragédia? E quanto às pessoas que moravam ali? Teriam sido transportadas para outro local? Outro mundo, talvez? Aquela parecia uma possibilidade plausível, depois de ter visto tantos portais dimensionais nas últimas semanas.
Onde estaria Joara?
Aldera era uma cidade grande para os padrões do império, tendo mais de 10 mil moradores. De acordo com os rumores, apenas algumas dezenas deles tinham conseguido escapar.
Nas cidades vizinhas, haviam cartazes de “procura-se” por toda a parte, com um retrato feito em carvão de uma garota que não devia ter mais do que 15 ou 16 anos, cabelos longos e expressão séria. Os cartazes informavam que se tratava de uma “pessoa de interesse”, mas pelas ruas, todos afirmavam que aquele era o retrato da bruxa que destruíra Aldera.
Valena abriu a pequena mochila que carregava e tirou de lá um desses cartazes, que ela havia retirado de um poste. Havia alguma coisa naquela expressão, naqueles olhos, que a fazia se sentir desconfortável. Aquela não parecia ser a face de uma malfeitora homicida. Mas, pensando bem, com o que uma assassina genocida deveria se parecer?
Fechando os olhos, ela deixou o cartaz de lado e respirou fundo, tentando relaxar. Precisaria reunir suas forças para que pudesse dar seu próximo passo. Não que soubesse exatamente o que faria a seguir. Com esse pensamento desconfortável, ela se deitou no chão, entre as folhas secas e caiu no sono.
A dor no peito a acordou. Abrindo os olhos, notou a leve penumbra e concluiu que estava anoitecendo. Precisava encontrar um local seguro para passar a noite. No entanto, apesar da dor no ferimento, que ficava vindo e voltando nessas últimas semanas, ela não se sentia muito cansada. Não podia ter dormido tanto tempo assim. Mas então, o dia começou a ficar cada vez mais claro e um saio de sol surgiu por entre as árvores, o que a fez concluir que, na verdade, estava amanhecendo. Tinha dormido ali a noite inteira? Devia estar mais cansada do que imaginara. Tivera muita sorte de não ter sido atacada por algum monstro enquanto dormia. Uma nova pontada de dor a fez apertar os lábios. Quanto tempo ainda aquele ferimento levaria para se curar?
Apesar da impaciência, ela se forçou a se mover devagar enquanto removia a cota de malha. Em seguida, desfez os nós da túnica e a removeu. Então, com muito mais dificuldade, ela desenrolou as várias voltas de tecido que lhe cobria os seios, protegendo o ferimento.
As horríveis marcas do ferimento cauterizado estavam ali, uma leve vermelhidão ao redor. Ela evitara a todo custo olhar para o próprio peito nas últimas semanas. Sua vaidade sofrera um golpe profundo quando teve que aceitar que carregaria aquelas marcas para o resto da vida. Não saberia dizer se a aparência das cicatrizes estava melhor ou pior do que da última vez em que olhara. Um dos cortes tinha sido profundo, então não poderia mesmo se curar rápido, não é? Ainda mais sem a ajuda de um curandeiro.
Nesse momento, um vento forte atingiu as árvores, um silvo grave e tenebroso podendo ser ouvido vindo da direção da cratera. Valena sabia que aquele som era causado pelo vento se chocando com as paredes do buraco colossal, mas aquilo não impediu que sentisse calafrios. Ela tratou de enfaixar novamente o peito e se vestir, um impulso a levando a se aproximar da borda da cratera.
O negrume do interior do buraco, há quilômetros de distância, continuava igual. Um espetáculo assustador. Como poderiam consertar aquilo? Teria alguma forma de trazer ao menos as pessoas de volta? Quem teria poder para isso? O Avatar, talvez? Valena duvidava que qualquer um dos sábios do império pudesse fazer algo a respeito, nem que todos eles concordassem em trabalhar juntos, o que era altamente improvável.
Espere! Um dos maiores poderes do império estava ali mesmo, ao alcance dela! Como não pensara nisso antes?
Invocando a forma da Fênix, ela se lançou ao ar, batendo as asas flamejantes com força até conseguir ter uma visão razoavelmente abrangente da cratera. Era impossível ver claramente toda a extensão dela, uma vez que o buraco tinha mais de sete quilômetros de diâmetro. Mas, de qualquer forma, aquela visão lhe conferiu ainda mais determinação. Ela fechou os olhos e expandiu a consciência.
Pessoas precisavam de ajuda, de salvação. E ela queria ajuda-las. Resgatá-las. Salvá-las. Queria ser sua salvação. Aquele intenso desejo a levou a sentir sua essência, conforme o imperador lhe mostrara tanto tempo atrás.
Uma inesperada onda de conforto e serenidade a envolveu. Aquilo era novo, não havia sentido nada parecido quando usara o favor divino antes. Mas era uma sensação bem-vinda. Como se o universo todo lhe sussurrasse que tudo iria ficar bem. Que ela estava fazendo a coisa certa.
Então, mais determinada do que nunca, ela liberou aquela essência, a energia divina fluindo dela em ondas, incidindo sobre o cenário abaixo dela e banhando a tudo com sua abençoada graça.
Ainda em um eufórico estado de torpor, Valena desceu suavemente até o chão, próximo à borda da cratera. As chamas místicas da forma da Fênix se dissiparam e ela abriu os olhos, um leve sorriso curvando seus lábios.
Então ela piscou, surpresa. Apertou os olhos com força e voltou a abri-los, encarando a paisagem à sua frente.
Não tinha acontecido absolutamente nada. A cratera continua exatamente igual, o vento soprando da mesma forma, o silvo grave ressoando da mesma maneira que antes.
Mas o quê…? Teria ela feito algo errado? Mas podia se lembrar com clareza daquela voz divina lhe assegurando que tudo ia ficar bem. A Grande Fênix havia aprovado sua tentativa, isso significava alguma coisa, não é? Que raios estava acontecendo?
Então, suas pernas subitamente perderam a força e ela caiu de joelhos. Uma sede violenta a atingiu e ela se lembrou daquele frasco de líquido adocicado que o imperador a instruía a sempre carregar com ela, para aliviar os efeitos do favor divino. Um frasco que ela não havia levado consigo no dia em que desceu até o subsolo do palácio. O dia em que ela foi mandada para o exílio.
Valena tentou tomar um gole de água de seu cantil, mas aquilo não lhe trouxe nenhum alívio. A sede apenas aumentou, cada vez mais, uma fraqueza intensa tomando conta de seu corpo.
O último pensamento que teve antes de perder a consciência foi: se essa shahwada não funcionou, por que estaria cobrando dela seu preço?
♦ ♦ ♦
Não sabia quanto tempo tinha se passado quando voltou a abrir os olhos. Seu corpo estava pesado, exausto, coberto de suor e sua pele ardia. Seu rosto e suas mãos tinham ficado tempo demais expostas ao sol e agora estavam avermelhados e sensíveis.
Ela se forçou a se levantar e procurar pela sombra das árvores. Encontrou mais algumas castanhas e tratou de encher o estômago, que roncava, faminto. Meia hora depois, as energias retornavam a seu corpo.
Queria que as queimaduras de sol pudessem ser curadas com tanta facilidade também.
Estava furiosa consigo mesma. De alguma forma, tinha conseguido desperdiçar um favor divido. Não se lembrava de ter recebido um golpe tão forte em seu orgulho antes. Levaria semanas, talvez meses até que pudesse voltar a usar aquela habilidade novamente.
Será que desfazer a tragédia de Aldera era uma tarefa grande demais até para uma das grandes entidades? Mas, se fosse assim, porque ela tinha ouvido aquela voz sussurrando que tudo ficaria bem? Seria aquilo apenas um pedido de desculpas da Grande Fênix por não conseguir realizar seu desejo?
Sentindo-se agitada demais para continuar sentada, ela se dirigiu até o local onde tinha deixado a cota de malha. O elmo e o tecido que ela usara nas últimas semanas para ocultar o rosto também estavam ali onde os deixara. Ela se preparava para apanhá-los quando ouviu som de passos.
Imobilizando-se atrás da árvore, ela aguardou até que quem quer que fosse passasse pela trilha, se dirigindo para a abertura da cratera. Arriscando um olhar, Valena viu que se tratava de uma mulher usando roupas pesadas e escuras, os cabelos negros longos e levemente encaracolados caindo pelas costas. Uma suspeita começou a se formar, levando-a a seguir a outra, sem se preocupar muito em não ser notada.
A fulana continuou caminhando até sair das árvores e parar na borda do barranco, parecendo admirar a paisagem por um momento, antes de se virar.
Valena se aproximou alguns passos e parou, analisando o rosto da outra atentamente.
– Você é a bruxa de Aldera – as palavras saíram de sua boca como uma afirmação, não uma pergunta.
– Sim – a estranha respondeu. Parecia surpresa e levemente intrigada pela presença de Valena. Os olhos negros a percorreram de alto a baixo e depois retornaram a seu rosto, notando a marca da Fênix. – E você é Valena Delafortuna.
Não era uma mulher. Era uma garota. Devia ter, no máximo, uns 16 anos, a mesma idade de Valena. Sua voz era profunda, pronunciando as palavras de maneira determinada.
Uma sensação enorme de alívio atingiu Valena. O favor divino não tinha falhado, afinal. Apenas, ao invés de resolver diretamente o problema, o poder da Fênix tinha colocado a responsável pela tragédia em seu caminho, para que pudesse força-la a corrigir as coisas.
Valena apontou para o buraco.
– Foi você quem causou aquilo?
– Sim.
– E pode desfazer o que quer que tenha feito?
– Não.
Cansada daquelas respostas monossilábicas, Valena sacou a espada.
– Nesse caso, bruxa, você vai ter que responder pelo que fez.
A outra estreitou os olhos.
– Meu nome é Sandora. E não respondo a ninguém.
♦ ♦ ♦
O sol começava a se aproximar do horizonte, conforme a tarde chegava ao fim.
Valena soltou uma exclamação surpresa quando Valdimor a puxou contra si. No instante seguinte, ele colava seus lábios ao dela. Seu corpo, ainda enrijecido pelo ataque paralisante que sofrera, pareceu se incendiar em resposta àquele toque.
Definitivamente, nada mal para um primeiro beijo.
O mundo pareceu parar. Toda a tensão, preocupação e cansaço deram lugar a uma abençoada sensação de completitude e letargia, enquanto ela apreciava aquele contato.
Valdimor era reservado, não tinha o hábito de tocá-la, nem mesmo de se aproximar dela. Mas Valena havia percebido os olhares que ele lançava em sua direção. Da mesma forma como ele provavelmente notava os olhares dela. Aquilo parecia tão certo, tão perfeito, que toda a realidade desapareceu. Naquele breve momento, não existia nada além deles dois.
Há quanto tempo ela não sentia aquelas sensações? Pensando bem, ela provavelmente nunca havia sentido nada tão intenso. Os sentimentos que nutrira por Barlone tantos anos atrás eram pálidos, em comparação.
Ela soltou um riso involuntário, interrompendo o beijo. Se ainda tivesse alguma dúvida de que Valdimor não era Barlone, ela estaria definitivamente sanada. Na verdade, ainda não entendia direito como pudera ser capaz de fazer aquela confusão um dia.
Valdimor a olhou com cenho franzido. Valena lançou-lhe um sorriso e sacudiu a cabeça, tentando passar a mensagem de que estava tudo bem. Então o puxou para um abraço apertado, pousando o queixo no ombro dele.
A capitã Laina Imelde se aproximou de ambos, carregando duas canecas fumegantes.
Valena suspirou, enquanto se separava de Valdimor. Ela queria dizer para ele que aquele tinha sido um interlúdio agradável, que ela estava mesmo precisando daquilo, mas suas palavras lhe morreram na garganta.
Então ela estendeu a mão e pegou a bebida que a capitã lhe oferecia, esperando que aquele preparado ajudasse a se livrar da letargia causada pelo ataque paralisante que ela e Valdimor sofreram. O líquido era quente e amargo, e desceu queimando por sua garganta. Ela parou depois do segundo gole, fazendo uma careta e olhando para Valdimor, que engolia o conteúdo da caneca dele como se fosse água, antes de lançar a ela um olhar provocativo.
Um calor agradável envolveu o corpo de Valena ante aquele olhar. Ela pensou em devolver a provocação, mas não faria isso com a capitã Imelde ali do lado, pronta para fazer seu relatório.
– Certo, capitã. Deixe-me tentar entender: vocês encontraram Dantena?
– Sim, senhora. Na verdade, eu diria que ele é quem nos encontrou. Fomos atacados por ele enquanto levávamos os feridos para a ponte de vento.
– E ele estava dentro da armadura do Avatar?
– Sim, senhora.
– Como foi que Odenari Rianam escapou?
– Ela foi atingida, junto com diversos soldados, por um ataque elétrico do Avatar, quero dizer, de Dantena. A eletricidade, enfraqueceu o encantamento da algema e ela conseguiu se libertar.
– E ela não tentou fugir?
– Pelo contrário, senhora, ela se juntou aos demais, lançando ataques místicos contra o conselheiro. E quando o governador Nostarius se preparou para lançar um ataque, ela se colocou diante dele, protegendo-o com o próprio corpo. Uma bola de fogo a atingiu em cheio. Ela… ela lançou um escudo de proteção, mas no governador, ao invés de em si mesma. Não… não restou muita coisa do corpo dela.
Valena engoliu em seco.
– E como está o governador?
A capitã lançou um olhar inquisitivo para o aspirante Iseo Nistano, que se adiantou.
– Ele está esgotado, senhora – disse ele. – Nós o mandamos de volta para o palácio, para ser tratado, mas o curandeiro disse que não é nada muito grave. O esforço para selar a Godika Goenika exigiu demais do corpo dele. E, quando ele viu o conselheiro Dantena bancando o Avatar, ele não pensou duas vezes antes de tentar selar a armadura também. E isso deve ter consumido o restante de suas forças.
Então, o soldado que Valena vira dando aquele salto miraculoso era Leonel Nostarius. O homem provavelmente nunca deixaria de surpreendê-la.
– Mas a armadura, aparentemente, era forte demais para ele – acrescentou a capitã. – Dantena conseguiu escapar antes da armadura ser absorvida pela espada. Acreditamos que o ataque do governador tenha drenado boa parte da energia da armadura, pois Dantena não conseguiu fazer nada além de fugir, com o rabo entre as pernas.
Valena engoliu o restante de sua caneca, com uma careta, antes de perguntar:
– E quanto aos prisioneiros? Joara?
– Estão todos sob observação no palácio, senhora – respondeu Iseo. – Os curandeiros estão tentando descobrir uma forma de fazê-los recuperar a consciência, mas isso pode levar algum tempo.
Valena assentiu.
– Como Dantena conseguiu o controle da armadura? Onde está Radal? Quero falar com ele.
O aspirante Alvor Sigournei se aproximou, trazendo o ex conselheiro, ainda algemado.
– Poderia fazer o favor de repetir para a imperatriz o que nos contou? – Alvor perguntou ao prisioneiro.
Radal assentiu e encarou Valena.
– O general Narode encontrou pergaminhos antigos em alguma pirâmide damariana, com descrições detalhadas da armadura dourada do Avatar. Dantena se apoderou deles quando o general foi derrotado. Desde então, ele vem tentando decifrá-los.
Valena olhou para ele com descrença.
– A armadura do Avatar está inerte desde a batalha contra Donovan em Ebora. Os maiores sábios do império a estudaram. Ela não reagia a nenhum tipo de encantamento, estava vazia, não restava nenhuma energia nela.
Radal sacudiu a cabeça.
– Isso não é verdade. Nós descobrimos que a armadura tem um suprimento ilimitado de energia. Só precisa de um espírito para guia-la.
– Está me dizendo que Dantena tomou o lugar do espírito do Avatar?
– Bom, o cara dentro da armadura, definitivamente era ele – disse a capitã. – E o poder que ele usou era muito grande. Nenhum de nós teria sobrevivido, se não fosse pelo governador Nostarius.
Nesse momento, a plataforma de vento brilhou, atraindo a atenção de todos. Valena prendeu a respiração, esperando ver os trajes negros de Sandora. E ficou profundamente desapontada ao perceber que quem chegava eram Evander e seus amigos.
Ela sentiu o corpo de Valdimor se retesar a seu lado, quando Elinora apareceu junto com eles. Valena ainda se lembrava de como a protetora havia lançado um ataque na direção dela, na primeira vez que a vira, bom como da forma que Valdimor a protegera.
Evander marchou diretamente na direção de Valena.
– Sandora?
A preocupação na voz dele era evidente. Ela sacudiu a cabeça.
– Nada ainda.
– Me deem um pergaminho, eu vou até lá.
– Você não pode. Aquele metamorfo copiou os poderes dela e ativou a esfera negra, a mesma que destruiu Aldera. Se for lá, você será engolido também.
– Não podemos deixar a tragédia se repetir!
– Não há o que possamos fazer – retrucou ela. – Ao menos, dessa vez, não ocorreu em um centro urbano.
– Mas, alteza – disse a capitã Imelde –, se a esfera crescer tanto quanto o fez em Aldera, vai atingir diversas vilas que existem ao redor do castelo.
Valena levou uma das mãos aos cabelos, praguejando baixinho.
– Sandora vem lendo e estudando para compreender seus poderes há mais de um ano – disse Evander. – Ela disse mesmo que poderia controlar o fenômeno?
– Sim – disse Valena, com um suspiro. – E que, se não pudesse, ganharia tempo para que pudéssemos escapar.
– A esfera negra tem sido o pesadelo que rouba o sono dela desde a tragédia de Aldera – disse ele. – Estava mais do que determinada a entender e controlar esse poder, já que o que mais queria era evitar que a tragédia pudesse voltar a ocorrer. Se ela disse que conseguiria, eu acredito nela.
Ele estendeu a mão.
Valena olhou para a capitã e assentiu. Laina tirou um pequeno pergaminho de sua mochila nas costas e entregou a ele.
Quando Evander se dirigiu à plataforma, Gram se colocou do lado dele, bem como Lucine, Idan, Jena e Elinora, que lançava olhares ameaçadores na direção de Valdimor.
Antes de chegar à plataforma, Evander levantou a mão, fazendo que todos parassem.
– Eu vou sozinho.
Gram fez menção de se aproximar, mas ele colocou uma mão no ombro dela.
– Preciso que vocês fiquem aqui e protejam Valena. Sandora nunca iria se perdoar se alguma coisa acontecesse e vocês não estivessem aqui por causa dela.
– Obrigada pelo voto de confiança – reclamou a capitã Imelde, estreitando os olhos.
Evander olhou para ela.
– Se julga capaz de enfrentar alguém com o poder do Avatar, capitã? Meu pai tentou fazer isso, e olha onde ele foi parar.
– Não fale com meus oficiais desse jeito – disse Valena, por entre os dentes. – Eles estavam lá, lutando ao meu lado, enquanto você, não!
Ele apertou os punhos e estreitou os olhos.
– E você não se importa em ficar aqui de braços cruzados enquanto sua melhor amiga pode estar correndo risco de vida?
– Pelo visto, eu acredito em sua esposa mais do que você – retrucou Valena, apontando para a plataforma. – Eu sei que ela vai aparecer ali a qualquer momento.
Evander se preparava para dizer alguma coisa quando Lucine Durandal pôs uma mão no ombro dele, chamando-lhe a atenção.
– Cale a boca – ordenou ela. – Você está fazendo papel de idiota. De novo.
Ele fechou os olhos e respirou fundo, forçando-se a relaxar. Então olhou na direção da imperatriz e depois da capitã.
– Me desculpem.
Nesse momento, a plataforma de vento se ativou. Sandora, Falco e Gerbera surgiram, com cortes, arranhões e hematomas pontuando a pele exposta pelas roupas sujas e rasgadas. Aos pés deles, estava o metamorfo, deitado de bruços, com as mãos e os pés amarrados e grunhindo alguma coisa ininteligível através de uma mordaça.
Sandora deu um passo trôpego na direção de Evander, que se adiantou e a envolveu em um abraço carinhoso.
Os soldados ao redor soltaram gritos eufóricos e comemoraram.
Gerbera tinha uma espécie de coleira ao redor do pescoço, na qual estava amarrado um cordão, cuja outra ponta estava nas mãos de Falco. Ele desceu da plataforma e ela o seguiu, como se fosse um cavalo treinado, olhando para baixo.
A uma ordem da capitã, três dos soldados subiram na ponte de vento, ao lado do homem amarrado. Um deles deixou cair um pergaminho, ativando a ponte e levando-os de volta ao palácio.
– Eu consegui! – Sandora disse, a voz abafada, o rosto mergulhado no peito de seu companheiro. – Reverti a esfera negra! Eu descobri o que ela é. Não é um portal como imaginávamos, e também não é uma fissura no espaço. É uma disfunção temporal.
– Psiu! – Evander disse, acariciando-lhe os cabelos. – Está tudo bem. Estou orgulhoso de você. Mas podemos conversar sobre isso mais tarde, você precisa descansar.
– Ainda não – respondeu ela se afastando e olhando na direção de Valena.
A imperatriz não se conteve e correu até ela, envolvendo-a em um abraço apertado.
– Não sabe o quão felizes nós estamos por você ter conseguido.
– Você está bem?
Valena sorriu, lágrimas escorrendo de seus olhos.
– E, depois disso, ainda é comigo que se preocupa?
Sandora se afastou e olhou na direção de Falco. O homem estava parado, lançando olhares incertos às pessoas a seu redor. Vários soldados olhavam, desconfiados, para Gerbera.
– Pode liberar Falco do encantamento? – Sandora perguntou a Valena.
– Por quê?
– Parece que chegamos tarde – Falco disse, antes que Sandora pudesse responder. – Dantena conseguiu o que queria. Mas não tem problema, com essa belezinha aqui eu posso ajudar vocês a darem cabo daquele traste. – Ele deu batidinhas de leve na espada que levava presa à cintura.
– Ele concordou em lutar conosco se o libertarmos – explicou Sandora.
♦ ♦ ♦
Lucine Durandal entrou no aposento, fechando a porta atrás de si com cuidado. Então ficou parada, sem saber direito o que fazer.
– Queria me ver, senhor?
– Sim, senhora Durandal – respondeu Leonel Nostarius, que estava sentado atrás de uma mesa, com Luma Toniato a seu lado. – Sente-se, por favor.
Com movimentos rápidos e decididos, Lucine puxou uma cadeira e acomodou-se diante do governador. A cota de malha especial que usava era surpreendentemente flexível e quase não tolhia seus movimentos. Também quase não fazia nenhum barulho. Seus cabelos estavam presos por baixo do elmo aberto. Parecia pronta para uma batalha, como sempre.
Ela olhou para Leonel, o peito se agitando em expectativa, apesar de a expressão séria de seu rosto fazer um bom trabalho para ocultar seus sentimentos.
Esse homem era um dos maiores heróis do império. Mesmo com sua idade avançada, há poucos dias havia deixado de joelhos o cretino que tinha se apoderado de um dos maiores poderes de que se tinha notícia, e fazendo com que fugisse como uma barata mal morta.
– Tenho uma pergunta para a senhora – disse o governador, depois de um instante. – Mas antes preciso que tenha completa ciência dos relatórios que recebemos nessa última semana. – Ele parou de falar e olhou para sua companheira.
– Os exércitos de Halias, Lemoran e das Rochosas estão se unindo, se organizando para um grande ataque – disse Luma, devagar. – Deve ter ouvido falar nisso, não?
– Sim, senhora. Ouvi dizer que o ex conselheiro Dantena está se passando pelo Avatar, viajando pelas cidades do norte e inspirando as pessoas a se revoltarem contra o império.
– Na verdade, ele não está dizendo nada às pessoas diretamente, apenas aparecendo em lugares estratégicos, dando a entender que o Avatar apoia o que os governadores estão dizendo.
Governadores que eram controlados por Dantena.
– O que indica que haverá uma guerra – concluiu Lucine.
– Precisamente – respondeu Leonel. – Diga-me, senhora Durandal…
– Lucine – interrompeu ela.
– Lucine – concedeu ele. – Está disposta a lutar nessa guerra?
– Sim, senhor – respondeu ela, sem nenhuma hesitação.
– Por quê?
Lucine estreitou os olhos e inclinou a cabeça de leve para o lado, surpresa com a pergunta.
– Devo muito ao império, senhor. Acredito que deva ter recebido relatórios sobre o meu… problema, e de toda a ajuda que o capitão Joanson me deu durante anos.
– Sim, estou ciente. Joanson esgotou todos os recursos que tinha para tentar solucionar seu caso, incluindo pedir meu auxílio. Eu também fiz o que estava ao meu alcance, mas nada disso muda o fato de não termos sido capazes de resolver o seu dilema.
– Não é só isso, senhor. O capitão me arranjou trabalho. Me deu um objetivo. Coisa que ninguém mas quis fazer por mim.
– Posso garantir que o exército e o império se beneficiaram muito mais dos seus serviços do que você das oportunidades que lhe concedemos.
– Com todo respeito, senhor, por que está me dizendo tudo isso?
– Quero entender por que está disposta a arriscar sua vida para defender este país. Você tem outros assuntos para tratar. Sinceramente, quando partiu com Evander para Halias, eu não esperava que retornasse.
– Minha vida não mais me pertence, senhor. Evander estará na frente de batalha. E eu estarei ao lado dele.
– Por mais que isso seja admirável, está mesmo determinada a arriscar a sua própria vida apenas por lealdade a ele?
– A meu ver, não existe um motivo melhor do que esse. – Lucine voltou a franzir o cenho. – Acreditava que um homem como o senhor entendesse isso.
– Sim, eu entendo. – Leonel trocou um olhar com Luma, que suspirou e fechou os olhos, abaixando a cabeça, claramente contrariada. – Sabe, Lucine, um bom soldado precisa conhecer seus limites, saber até onde é capaz de chegar e quando é a hora de jogar a toalha.
– Sim, senhor – concordou ela, sem entender direito.
– E isso nos leva ao ponto principal desta conversa. Estaria disposta a arriscar, em nome dessa sua lealdade, algo muito mais precioso do que sua própria vida?
— Fim do capítulo 20 — | ||
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