Valena – Capítulo 23

Publicado em 30/12/2018
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23. Tudo ou Nada

Alguns dias de convívio com a bruxa naquela cabana fizeram com que Valena chegasse a algumas conclusões surpreendentes.

Primeiramente, Sandora era uma pessoa muito organizada e extremamente inteligente. Usava os recursos que tinha de forma engenhosa e fazia o possível para deixar o ambiente da cabana limpo e agradável. Não se preocupava muito com enfeites ou coisas do tipo, mas cuidava para manter no ar um suave perfume de ervas, o que, além de ser aprazível, ainda servia para afugentar insetos.

Em segundo lugar, ela realmente se esforçava nos estudos. Valena não saberia dizer do que se tratavam todos aqueles livros que ela lia. Aliás, ela parecia nunca ler apenas um de cada vez, sempre estava com dois ou três abertos, consultando um, depois o outro e fazendo anotações. Ao ser questionada sobre a origem de todos aqueles tomos, ela explicou que a maioria deles fora herdada de sua mãe adotiva, que tinha um castelo com uma grande biblioteca.

Em terceiro, ela era sempre direta. Se Valena ou Gram faziam algo que a desagradasse, tratava de deixar aquilo claro, e sem meias palavras. Parecia não se sentir constrangida com, praticamente nada. Por exemplo, não pensou duas vezes antes de interrogar Valena sobre sua vida sexual – ou, no caso, a ausência dela – e à possibilidade de ter adquirido alguma das chamadas “doenças do amor”. Está certo que estava zelando por sua recuperação e tudo mais, mas Valena se sentiria um pouco melhor se a outra ficasse ao menos um pouco envergonhada ao falar sobre aquelas coisas.

Por último, apesar de normalmente ser uma pessoa de poucas palavras, a bruxa não era desagradável ou distante. Se questionada em relação a algum assunto que apreciasse, ela se tornava bastante comunicativa, disposta a compartilhar tudo o que soubesse a respeito, o que, em grande parte das vezes, não era pouco. Valena acabou mudando de opinião sobre alguns assuntos e passou a enxergar certas coisas com outros olhos. Nunca pensara em si mesma como uma pessoa profunda, e aquelas conversas acabaram revelando interesses que ela nunca imaginava que tivesse.

Sandora também tinha algumas peculiaridades, como o enorme apetite, que Valena desconfiava que fosse maior até mesmo que o do grande general Galvan Lemara. Por isso pusera aquele enorme prato de carne em sua frente naquele primeiro dia: estava acostumada a ter fartura em suas refeições. E, não raro, um prato como aquele não lhe era suficiente. Era difícil imaginar para onde tanta comida ia, considerando a figura esbelta que ela tinha. Seu gosto por roupas escuras e pesadas também era peculiar. Quando Valena questionou sobre onde ela guardava tantas roupas, uma vez que ela parecia usar trajes levemente diferentes todos os dias, a bruxa lhe revelara que se tratavam de construtos místicos gerados pelos poderes dela. Aquilo despertou um considerável sentimento de inveja em Valena.

De qualquer forma, decidira que gostava dela. E o sentimento parecia ser recíproco. Sandora não se incomodava com sua companhia e conversava com ela com seriedade e respeito, mesmo quando Valena fazia uma colocação idiota sobre algum assunto que não dominava.

A princípio, Valena pensara que a bruxa não tinha senso de humor, mas com o tempo descobrira que aquilo não era verdade. Apesar de, praticamente, nunca rir ou fazer brincadeiras, ela gostava de incluir pequenas histórias curiosas na conversa, principalmente quando o assunto em questão era mais sério. Aquilo divertia Valena imensamente.

Ela sempre invejara as outras meninas do orfanato que tinham “melhores amigas”. Sempre desejara ter um sentimento de amizade profunda com outra pessoa, e depois de uma semana de convivência com Sandora aquilo de repente lhe parecia totalmente a seu alcance.

Conforme a proximidade entre as duas foi aumentando, foi ficando cada vez mais claro que a bruxa não estava feliz. Ela tinha pesadelos ocasionais com o desastre de Aldera, dos quais acordava muito abalada, mas, de alguma forma, Valena concluiu que aquele não era o único peso que carregava nas costas. Começava a imaginar o que poderia ser, quando a resposta literalmente apareceu em sua frente.

Estava sentada em um tronco, do lado de fora da cabana, de olhos fechados enquanto aproveitava um dos raros raios de sol que conseguiam varar a aparentemente perpétua camada de nuvens que pairava sobre a floresta, no momento em que ouviu uma voz familiar.

– Valena? É você?

Ela abriu os olhos e virou a cabeça para encarar Evander. Era só que lhe faltava. Soltou um suspiro desanimado, considerando que até que tinha demorado para o exército encontrá-la. Principalmente com a existência daquela recompensa por sua cabeça.

– Ora, se não é o tenente Nostarius – disse Valena, sem conseguir esconder, em sua voz, a fraqueza que ainda sentia.

Surpreendendo-a, Evander se aproximou, parecendo preocupado.

– O que aconteceu com você?

Eu aconteci – disse Sandora, saindo pela porta da cabana e encarando o recém-chegado com frieza.

– É… – Valena concordou. – Ela aconteceu. Poderia fazer a gentileza de bater nela para mim?

Ele, no entanto, não estava ouvindo, ocupado demais em devorar a bruxa com o olhar. Valena lançou um olhar para Sandora e notou a expressão cortante em seu rosto.

Ora, quem diria. Mundo pequeno esse, não?

Então, a bruxa saiu caminhando apressada e se afastou pela trilha da floresta. Evander olhou de uma para a outra, parecendo confuso.

– Nem me pergunte – disse Valena, voltando a recostar a cabeça e fechar os olhos. – Já desisti de tentar entender essa dharka.

Aquilo não era exatamente verdade, mas ela não conseguiu se impedir de fazer o comentário mesmo assim. Aquela óbvia rixa de namorados a estava divertindo muito. Então, a bruxa tinha interesses carnais como qualquer garota, hein? E ainda conseguira atrair a atenção de um dos melhores partidos do império. O cara era rico, lindo, gostoso, simpático e ainda por cima bom de briga. Pensando bem, seria o parceiro ideal para Sandora, não seria? Ele era o tipo de homem que nunca se sentiria intimidado pelos modos secos e diretos dela.

Evander foi atrás de Sandora e, pelo visto, os dois conversaram e acertaram os ponteiros no meio da floresta, pois quando voltaram, Sandora se dirigiu ao morto vivo, com uma determinação e segurança que Valena ainda não a tinha visto demonstrar nenhuma vez. Parecia outra pessoa.

– Tenho que partir. – Ela apontou para Valena. – Cuide dela. Se eu não voltar em duas semanas ou se algo acontecer, tire ela daqui e me esqueça.

– Eu não tenho direito a opinar? – Valena reclamou.

– Enquanto não for capaz de se cuidar sozinha e de saber escolher direito quais batalhas deve lutar, não, não tem.

– De qualquer forma – disse Evander a Valena –, é bom ver que você está bem.

Ela o encarou por um momento, sem saber dizer se ele falava sério.

– Vá te catar, seu culvert! – Valena respondeu, num tom cansado, voltando a se recostar e fechar os olhos. Odiava o fato de ele a estar vendo assim, fraca e vulnerável. Tudo o que queria é que ele sumisse dali o mais rápido possível. Podia sentir toda a vergonha e humilhação que sentira depois daquela ridícula luta contra ele voltando à tona com força total.

– Fico feliz que esteja em boas mãos – disse ele.

Era só o que me faltava.

Sem conseguir se conter, ela fez um gesto não muito educado, mostrando-lhe onde poderia enfiar sua “felicidade”.

– É sério – insistiu ele, ignorando provocação. – Ficamos preocupados quando você desapareceu. E Sandora pode parecer casca grossa, mas vai cuidar bem de você.

– Tudo bem, tudo bem, já entendi – ela suspirou, querendo encerrar logo aquela conversa. – Agora caia fora daqui. Pacientes em recuperação precisam de repouso e sossego.

Ele riu.

– Boa sorte.

– Você é quem vai precisar de sorte, se vai mesmo passar as próximas semanas com aquela bruxa.

Então eles partiram, deixando Valena sozinha com Gram.

Os dias seguintes foram desconcertantes. Depender daquela criatura arrepiante não era, de forma nenhuma, uma situação agradável. Mas tinha que admitir que o morto vivo não fazia nada para deixa-la desconfortável. Nada, além de existir, é claro. Fornecia-lhe comida e água e a deixava descansar em paz enquanto trabalhava na construção do que pareciam ser as fundações para erguer uma casa.

Na semana seguinte, Valena já se sentia bem melhor. Incapaz de suportar o tédio de ficar de repouso, ela decidiu deixar de lado a apreensão que sentia sempre que estava ao lado de Gram e se juntou a ele, ajudando no trabalho de construção.

Concluiu que não faria sentido permanecer muito mais tempo naquele lugar. Deveria ir embora imediatamente, ou seria melhor aguardar até a volta de Sandora? Mas, se resolvesse partir, para onde iria?

Nesse momento, um movimento ao lado da cabana lhe chamou a atenção e ela olhou para lá, vendo a bruxa vindo de trás da construção, com seus costumeiros passos longos, rápidos e decididos.

Valena ficou surpresa pela intensidade da onda de alívio que sentiu.

– Você voltou!

Sem fazer mais do que lançar um breve olhar para Valena e Gram, Sandora continuou caminhando e entrou na cabana, os lábios apertados. Parecia furiosa.

Valena trocou um olhar com Gram.

– Tem algo errado.

O morto vivo assentiu, mas não fez nenhuma menção de se mover. Ao invés disso, ficou parado, encarando-a. O que estava acontecendo? Por que tinha que ser ela a enfrentar a fúria da bruxa? Que direito ela tinha de se intrometer nos problemas da outra, afinal?

Finalmente, com um suspiro desanimado, ela deixou de lado a ferramenta que usava para cavar um buraco e caminhou na direção da cabana.

Os sons de coisas sendo jogadas no chão com força a deixaram ainda mais preocupada. Ela parou na porta do quarto de Sandora e observou por um momento enquanto a outra tirava livros e maços de papéis da bolsa de fundo infinito que carregava no interior de seu manto. Em poucos instantes, grandes pilhas de tomos se formavam no chão.

Parecia que, mesmo quando a impaciência tomava conta dela, a bruxa não conseguia se livrar de seu perfeccionismo. Mesmo colocando as coisas no chão com muito mais força do que o necessário, as pilhas foram crescendo de forma razoavelmente organizada.

Mas, de qualquer forma, aquele arroubo de agressividade em relação a seus pertences não era típico dela.

– O que há com você?

– Vá embora.

O tom de voz de Sandora era controlado, indiferente, contrastando de forma tão grande com sua óbvia frustração que levou Valena a estreitar os olhos, cada vez mais preocupada.

– O que houve? Você não me parece bem.

– Saia daqui – foi a resposta, em tom distraído.

O fato da outra não estar redirecionando sua fúria para Valena devia ser um bom sinal, não é? Sem saber direito o que fazer, ficou observando a outra, ajoelhada no chão, puxando um livro da bolsa, folheando-o por um momento e depois jogando-o com força sobre uma das pilhas antes de pegar outro, e depois mais outro.

Subitamente, se deu conta de que estava sendo ignorada. Aqui estava ela, com a melhor das intenções, apenas tentando ajudar, e era tratada dessa forma? Sentindo a própria fúria crescer, ela se adiantou e agarrou Sandora pelo braço.

– Olha para mim, sua nacas!

Então paralisou-se, surpresa, sua raiva se esvaindo imediatamente. Nos olhos escuros da bruxa não havia fúria ou irritação. Havia algo muito mais perturbador: medo.

Voltando a estreitar os olhos, Valena agarrou o livro que a outra segurava e olhou para a ilustração que havia na página em que estava aberto. Estava retratada ali uma mulher deitada, com uma das mãos sobre o ventre volumoso. Arregalando os olhos, voltou a encarar Sandora.

– Por que está olhando para essas coisas? O que está procurando, afinal? Não me diga que você…?

– Estou grávida.

Aquilo foi dito num tom tão calmo e comedido que fez com que Valena ficasse de boca aberta, sem saber se tinha compreendido direito. Não fazia o menor sentido. Sandora ainda era muito jovem, não deveria nem ter atingido a maioridade ainda. No império, ninguém tinha filhos antes dos 23 anos de idade. Todo mundo sabia que era fisiologicamente impossível engravidar antes disso.

De repente, algo pareceu se quebrar dentro de Sandora e seus olhos se encheram de lágrimas. Sem pensar duas vezes, Valena se ajoelhou ao lado dela e a puxou para si, abraçando-a. No instante seguinte, a bruxa caía num pranto convulsivo.

Ficaram ali por um longo tempo, até os joelhos de Valena começarem a doer. Então ela se levantou, levando Sandora consigo até o aposento da cabana que servia como cozinha e a fez sentar-se ao redor da mesa de madeira, acomodando-se do lado dela.

– Como isso é possível?

Sandora respirou fundo, limpando as lágrimas com as mãos e tentando se concentrar. Valena sabia que ela precisava disso. Precisava falar, colocar para fora o que estava sentindo.

– Eu e Evander, nós não somos humanos. Pelo menos não da mesma forma que você.

– Como é que é?!

Espíritos itinerantes. É esse o nome que deram para pessoas como nós. Eu… eu não deveria ter nascido. Minha mãe sofreu um aborto, meu corpo já tinha morrido. Então aquele velho maldito apareceu e fez uma proposta. Convenceu minha mãe de que poderia me salvar. Ele… encontrou uma forma de invocar um espírito itinerante e ligá-lo ao feto. Foi assim que eu nasci.

– Você tinha comentado sobre isso antes. Algo sobre ter sido criada para abrir um portal para o inferno.

– Sim, esse era o objetivo de Donovan. Mas ele disse que algo não deu certo e nos chamou de “fracassos” enquanto tentava nos matar. – Sandora engoliu em seco e fechou os olhos por um momento, antes de continuar. – Eu e Evander viajamos para o norte. Ele encontrou uma pista do paradeiro do general Nostarius e fomos para lá tentar encontrá-lo.

Valena arregalou os olhos.

– É mesmo? E conseguiram?

– Sim, ele está bem. Foi ele que nos contou sobre… os detalhes da experiência de Donovan.

– Tudo bem, mas você falou que estava grávida, não foi?

– Sim. Eu e Evander acabamos nos… aproximando de novo durante a viagem. Como nossos espíritos não são normais, isso acabou gerando a consequência natural.

– Não tem nada de “natural” em ter um bebê nessa idade!

– Não tenho todas as respostas, está bem? Pelo menos, ainda não.

– E como você pode saber que está grávida? Não deveria levar semanas ou meses até surgirem, sei lá, sintomas?

Sandora colocou a mão sobre o ventre.

– Eu posso sentir a presença aqui dentro. Dá para perceber uma emanação mística suave, uma onda muito parecida com a minha, mas ao mesmo tempo diferente.

– Oh. – Valena observou a outra atentamente por um longo tempo. Aquilo não parecia ser tudo. – E por que estava tão… sei lá, desesperada? Ter um filho não é, exatamente, uma coisa ruim.

Sandora abaixou o olhar.

– Minha mãe não sobreviveu ao parto. E a mãe de Evander ficou com sequelas terríveis, que acabaram por abreviar-lhe a vida. Não entende? O bebê que está aqui dentro foi gerado por dois espíritos itinerantes. Ele é como nós, posso sentir sua aura, tão parecida com a nossa… – Ela fez uma pausa e suspirou, antes de balançar a cabeça. – Donovan fez a mesma experiência com muitas dezenas de mulheres e só nós dois nascemos, as outras mães não conseguiram chegar ao fim da gestação. Os corpos delas sentiam que tinha algo errado e tentavam expulsar o feto, mas não conseguiam e isso causava crises que se tornavam fatais. Eu vou passar pela mesma coisa, ou talvez por algo pior, porque meu corpo não está maduro ainda. Eu… eu estou condenada.

♦ ♦ ♦

Sandora não conseguia controlar o próprio corpo, que tremia incontrolavelmente. Não podia fazer nada além de soltar um gemido agoniado enquanto aqueles movimentos involuntários agravavam cada vez mais a dor que sentia no ventre.

A criatura dourada flutuava ao redor do campo de batalha, apropriando-se de todos os artefatos místicos que encontrava. Por puro instinto, Sandora havia comandado o machado a se teleportar para longe dali, numa tentativa de mantê-lo à salvo. Mas duvidava que alguém tão poderoso quanto aquela coisa levaria muito tempo para encontrá-lo.

Havia pessoas caídas por toda parte, afetadas pelo horrível campo de pavor que aquela criatura emanava. Evander estava a seu lado, tão impotente e vulnerável quanto ela. Seus aliados estavam caídos ao redor, assim como inúmeros soldados, tanto aliados quanto inimigos. Aquela criatura parecia não escolher lados naquela guerra.

Sandora tentava não pensar no terrível destino de Gram, que tivera seu corpo destruído e no de Idan, que havia perdido ambos os braços. Ao menos o paladino não sangrara quando aquela coisa havia arrancado os membros cristalinos dele, mas não havia como saber como seu corpo reagiria ao trauma.

Parecendo concluir que não havia mais nada para pilhar por ali, a criatura se virou na direção de Sandora e começou a se aproximar. O que aconteceria agora? Iria arrancar dela seus bolsos de fundo infinito e se apropriar dos poucos itens místicos que estavam guardados ali? Duvidava muito que um ser como aquele precisaria se dar ao trabalho de interroga-la para descobrir para onde havia enviado o machado.

A dor se tornava cada vez mais intensa, tornando cada vez mais difícil se concentrar no que estava acontecendo ao redor.

Mas então, algo que parecia uma flecha voou até a criatura, quebrando-se no ar a uma curta distância dela e liberando uma onda de choque forte o suficiente para empurrá-la dezenas de metros para trás.

Sandora soltou um suspiro de alívio quando a intensidade do pavor diminuiu, tornando a dor bem mais suportável. Ela então encontrou forças para virar a cabeça e ver o capitão Erineu Nevana se aproximando, arco em punho, se preparando para disparar uma nova flecha.

Ela havia se surpreendido quando descobrira que havia dois membros da Guarda Imperial entre os reféns que resgataram. Ela conhecera pessoalmente o belator Ludiana, mas não o capitão Nevana. Apenas o vira em gravuras onde ele parecia muito mais jovem, com uma aparência bastante diferente da atual.

– Já chega, Luma! – Ele encarava a criatura com determinação, como se fosse totalmente imune à aura de pavor. – Isso já foi longe demais, está na hora de acordar.

A criatura fez um gesto com uma das mãos e uma nuvem escura surgiu, cobrindo todo o campo de batalha. Erineu imediatamente disparou para cima. A flecha subiu alguns metros antes de explodir, dissipando completamente a nuvem como se nunca tivesse existido.

– Essa é a sua forma de dizer que tem o controle total, monstro? – Erineu perguntou, com um sorriso zombeteiro.

Para um velho de quase 70 anos que tinha acabado de acordar de um coma após ter sido torturado por sabe-se lá quanto tempo, o homem parecia ter energia de sobra.

– Você está muito longe de conseguir o poder que quer, não é? Como vai conseguir destruir o mundo se até eu consigo neutralizar seus ataques?

A criatura ficou parada, olhando para ele. Era impossível discernir suas feições devido ao intenso brilho dourado de sua pele.

– Não é isso o que você quer? – Erineu insistiu. – Fazer com que eu engula as minhas palavras? Mostrar para mim e para todo mundo com quem estamos nos metendo? Provar que aquela menina fraca e impotente que deu origem a você não existe mais? Pois eu digo que você não está pronta para isso. E nunca estará.

A coisa então se virou e afastou-se, numa velocidade tão grande que provocou uma forte corrente de vento atrás de si. O capitão ficou olhando naquela direção por um longo tempo, antes de se virar para Sandora.

Os efeitos do pânico estavam se amenizando e as pessoas ao redor começavam a se mexer, soltando gemidos de desconforto.

Ele se aproximou e a ajudou a se sentar.

– Imagino que ela não conseguiu se apoderar do machado?

Sandora balançou a cabeça.

– Mandei-o para longe, quando vi que estava roubando os artefatos das pessoas.

– Por que não o usou contra ela?

– Mesmo que soubesse como, estou sentindo dores – ela respirou fundo, fazendo uma careta e segurando o ventre. – Não conseguiria me concentrar direito e nem reagir a tempo de evitar uma retaliação.

– Estamos em dívida para com o senhor, capitão – disse Evander, se sentando também.

– Isso ainda está muito longe de acabar.

– Que wanaagsan aconteceu aqui? – Valena exclamou, enquanto se aproximava deles.

♦ ♦ ♦

Idan estava inconsciente. Seus braços haviam sido quebrados na parte cristalina, e por causa disso não houvera sangramento, o que salvara sua vida, mas a ausência dos membros causara um desequilíbrio no fluxo vital de seu corpo e poderia levar algum tempo até se recuperar.

Já Gram não tinha tido a mesma sorte. Seu corpo fora totalmente retalhado, e apesar de os soldados terem conseguido reunir a maior parte dele – um trabalho bastante desagradável que a capitã Imelde e seus amigos fizeram sem reclamar –, nada indicava que seria possível fazer com que voltasse a se mover. Os poderes curativos de Sandora, pela primeira vez, não tiveram efeito.

Desistindo de tentar reviver sua fiel companheira, Sandora se levantou e se aproximou de Evander, encostando a cabeça em seu peito. Ele a abraçou e os dois ficaram em silencio por algum tempo.

– Sinto muito – disse Valena, se aproximando, sem saber o que mais poderia dizer num momento como aquele.

Sandora soltou um suspiro e fechou os olhos com força, antes de se afastar do companheiro e olhar na direção dela.

– Como está o capitão?

Erineu Nevana havia usado uma habilidade mística capaz de retardar os efeitos da aura de pavor, por isso tinha conseguido se manter em pé na presença da criatura e até conversar com ela. Depois de algum tempo, no entanto, os efeitos do pânico se abateram sobre ele com intensidade redobrada.

– Vai sobreviver – respondeu a imperatriz. – Apesar da idade, ele é muito resistente. O coração de uma pessoa normal não resistiria a um trauma como aquele, mas o dele continua batendo.

– O que vamos fazer? – Evander perguntou. – Se aquela coisa já tem todo aquele poder, nem quero imaginar do que ela será capaz quando se apoderar do machado.

– Eu vou reviver a Grande Fênix – disse Valena, determinada.

– Você não pode fazer isso – contrapôs Evander.

– Tem que haver outro jeito – disse Sandora, quase ao mesmo tempo.

Valena suspirou. Desde a conversa que tivera com o capitão Nevana, sentia-se como se estivesse em um sonho, tudo lhe parecendo irreal. Temia perder o controle e cair em um pranto convulsivo a qualquer momento.

As palavras dele ficavam dando voltas em sua mente.

Luma Toniato passou por um sério trauma durante sua infância, um incidente terrível, que teria enlouquecido completamente uma pessoa mais fraca. Ela sobreviveu, mas com uma grave sequela. Uma outra personalidade passou a viver dentro dela e, quando assume o controle, tem um único objetivo: se vingar do mundo todo. Do mundo que permitiu que ela passasse por tudo aquilo.

Mais de 20 anos se passaram antes que ela se desse conta dessa outra presença dentro de si. E nessa ocasião o monstro já tinha se tornado muito poderoso e milhares de pessoas já haviam perecido por causa dele. Quando tentamos exorcizar essa presença, o monstro se rebelou e assumiu o controle. Centenas de milhares de pessoas teriam morrido, se não fosse pela intervenção da Grande Fênix. A entidade se manifestou fisicamente, confrontou a criatura e a derrotou, fazendo com que Luma conseguisse recobrar o controle. A Fênix então implantou nela um bloqueio, que deveria impedir permanente que o monstro voltasse a se manifestar.

E agora, para esse bloqueio ter sido rompido e o monstro estar de volta, só posso concluir que a entidade esteja morta.

A Grande Fênix nunca foi, realmente, uma entidade muito poderosa, pelo menos não se comparada às outras, que viveram séculos atrás. A única razão pela qual ela conseguiu sobreviver desde a época das tribulações é seu poder de ressurreição. Para isso, ela escolhe um humano que tenha o nível ideal de afinidade e concede a ele a sua marca. Uma marca que dá a seu portador o poder para desistir de sua própria existência, cedendo seu fluxo energético à entidade, que assim renasce. Esse ciclo tem se repetido por milhares de anos, desde muito antes da fundação do império.

Você deve ter recebido algum tipo de mensagem, não? Um augúrio, talvez, onde a entidade dá a entender que você precisa encontrar aliados e unir forças com eles? Essa é a essência do ritual de ressurreição, onde o portador da marca utiliza o favor divino para trazer de volta o espírito da entidade, que então utiliza o fluxo energético dos aliados para reconstruir seu corpo.

Eu sei que este é um pedido demasiadamente grande, mas a verdade é que Luma agora está longe de qualquer redenção. Se conseguir aquele artefato, ela vai se tornar poderosa demais para ser detida. Ela vai voltar a matar e, dessa vez, temo que não irá parar.

Durante toda a história do império, temo que este é o momento onde mais desesperadamente necessitamos da proteção da Fênix.

Depois de ouvir aquilo, Valena tinha concluído que o que mais temia, aquilo que ela desesperadamente não queria acreditar, era verdade. Radal não mentira. Narode havia mesmo destruído a Fênix. Com isso, o monstro interior de Luma se liberou do bloqueio e matou o imperador.

E agora, ele estava de volta. E, com Narode morto, não havia mais ninguém capaz de controlá-lo.

– Não temos tempo para procurar outro jeito – disse Valena. – Você disse que mandou o machado para a cratera de Aldera, não foi? Por mais distorcido que o tempo seja naquele buraco, não deve demorar muito para alguém tão poderoso conseguir chegar até ele.

– Você está aceitando isso tudo muito melhor do que eu imaginava – comentou Evander, olhando para ela com uma sobrancelha levantada, uma expressão muito parecida à de seu pai.

– Como pretende fazer isso? – Sandora perguntou.

– O capitão disse que o ritual para ressurreição da entidade nunca é igual, mas geralmente envolve encontrar outras pessoas com níveis de afinidade compatíveis e usar o favor divino.

– Quantas pessoas? – Sandora insistiu. – Como iremos encontra-las?

– Segundo o capitão, a marca deveria colocar essa informação em minha cabeça. E eu andei pensando – ela balançou a cabeça, furiosa consigo mesma por ter interpretado aquele augúrio de forma errada durante tantos anos. – Faz algum tempo que passei a sentir uma sensação curiosa quando estou perto de algumas pessoas. Acho que eu sei quem são os “companheiros” com os quais devo me unir para realizar o ritual.

– Quem? – Sandora perguntou.

– Você. E Valdimor. E a princesa Joara. E… Falco.

– Falco? – Sandora estranhou. – Mas você nem mesmo confia nele.

– Isso não é o pior. Vou precisar de Jester, também.

Jester Armindes era o nome do metamorfo contra o qual lutaram nas Montanhas Rochosas, e que agora estava na masmorra. O interrogatório dele havia fornecido diversas informações úteis, mas nada compensava o fato de ele ter tentado matar todo mundo. E quase ter conseguido.

Sandora estreitou os olhos.

– Isso é ridículo!

– Calma, querida – disse Evander, com suavidade, colocando uma mão em seu ombro.

Ela suspirou.

– Certo. E quem mais?

– Ela – Valena respondeu, em tom pesaroso, apontando para os restos mortais de Gram.

O casal se entreolhou.

– Acha que o ritual vai funcionar com uma pessoa a menos? – Sandora perguntou, engolindo em seco.

Valena se ajoelhou e tocou um dos braços mumificados. Não lhe passou despercebido o fato de que era a primeira vez que tomava a iniciativa de encostar em Gram. Continuava sentindo arrepios ao olhar para ela, ainda mais agora, com seu corpo dilacerado daquela forma. Mas, depois de todas as batalhas em que lutaram lado a lado, passara a tolerar sua presença, e até mesmo a gostar um pouco de seu jeito brincalhão.

– Eu continuo tendo a mesma sensação de antes. Talvez ela ainda esteja aqui e nós só não sabemos como a trazer de volta. Talvez a Fênix possa reconstruir seu corpo e até dissipar a maldição. Ela pode voltar a ser humana de novo! Temos que tentar!

– A Fênix não vai “renascer” – protestou Sandora. – O que esse ritual vai fazer é transformar você em uma cópia dela. Seu espírito deixará de existir. Você vai morrer no processo!

Valena suspirou.

– Eu sei. Isso é o que aconteceu a cada um dos imperadores antes de mim, você tinha razão em desconfiar do motivo da morte deles. – Ela fez uma pausa, e estreitou os olhos. – Exceto Sileno Caraman. Aquele monstro roubou essa honra dele.

– “Honra”?! – Evander e Sandora exclamaram, em uníssono.

– É para isso que fui escolhida, não foi? Esse é o objetivo da minha vida – Valena se engasgou com a última palavra e limpou uma lágrima antes de continuar. – É a razão da minha existência.

– Isso é a maior besteira que já saiu de sua boca! – Sandora exclamou, exaltada.

Valena sorriu, ao perceber que nunca vira a bruxa reagir com tanta raiva e indignação a alguma coisa. A preocupação evidente na voz dela lhe aquecia o coração.

– Você terá Gram de volta.

– Não me obrigue a escolher entre uma de vocês duas. É injusto.

– Não há o que escolher – Valena sentia mais lágrimas a caminho e fechou os olhos com força, tentando se controlar. – Meu destino estava selado desde que recebi esta marca.

– O meu também estava, muito antes de eu nascer, mas continuo aqui – Sandora retrucou, antes de respirar fundo e estreitar os olhos, a determinação dominando seu semblante. – Vamos encontrar uma forma de resolver isso.

– Sandora, sinceramente, eu acredito que, se tem alguém capaz de encontrar uma solução, é você. Mas não temos mais tempo. Agora, é tudo ou nada.

— Fim do capítulo 23 —
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