Valena – Capítulo 24

Publicado em 06/01/2019
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24. Fim da Linha

Valena tentou convencer Sandora de que não devia se preocupar tanto. De que, se realmente estivesse grávida, as coisas seriam diferentes. De que essa criança tinha sido concebida da forma correta, através do amor de seus pais e não através de algum tipo absurdo e macabro de… experimento. A bruxa não discutiu, apenas sacudiu a cabeça e mergulhou nos seus livros, tentando encontrar respostas que provavelmente não estavam ali.

Acreditando que a outra precisava de tempo para se acalmar, Valena a deixou em paz. Ou, pelo menos, tentou. Era difícil, vendo que até mesmo o curiosamente grande apetite dela desaparecera por completo. Parecia não ter mais nenhuma vontade de se alimentar, passando todo o tempo que podia lendo e relendo aqueles livros.

Vendo que apenas deixar as bandejas com comida ao lado de Sandora não estava funcionando, Valena tomou medidas drásticas e a proibiu terminantemente de saltar refeições, arrastando-a até a mesa, se fosse necessário. Não que isso fosse difícil, pois a outra parecia cada vez mais fraca e desmotivada, nem mesmo forças para discutir ela tinha.

As noites eram ainda mais preocupantes. Sandora passou a ter dificuldade para dormir e, quando conseguia, era assolada por pesadelos. Sem conseguir imaginar qualquer outra linha de ação naquela situação, Valena apenas ficava por perto, juntando-se a ela na cama e a abraçando, em silêncio. Tática essa, aliás, que se mostrara surpreendentemente eficiente. Os tremores e soluços passavam e Sandora relaxava visivelmente, caindo em um sono tranquilo. Pelo menos durante algum tempo.

Cuidar de alguém em necessidade não era algo que Valena havia exercitado em seus 17 anos de vida. Na verdade, nunca havia se preocupado tanto com ninguém, exceto consigo mesma. Nunca se imaginara numa situação dessas, mas tinha que admitir que se sentia muito bem consigo mesma fazendo aquilo.

– Eu abandonei ele de novo – a bruxa disse, em certo momento, quando terminava de limpar o prato que Valena tinha ameaçado enfiar-lhe goela abaixo caso não comesse tudo.

– Quem? Evander?

– Ele estava tão empolgado. Planejava confrontar o coronel Narode junto com seu pai.

– O que tem o coronel? – Valena franziu o cenho.

– O general Nostarius está convencido de que ele é o responsável pela loucura de Donovan, bem como pelo assassinato do imperador, e por você ter sido atacada e obrigada a fugir do palácio. Ele vem manipulando as altas rodas do império há anos.

– Mas, como…?

– Ele tem um poder que afeta a mente. Força as pessoas a fazerem o que ele quer.

Valena suspirou.

– Isso explica muita coisa.

– Eu deveria estar lá, com eles.

– E por que não está?

– Não posso. Não, nesse estado.

Por alguma razão, Valena lembrou-se dos fortes laços afetivos que tinham unido o imperador e sua esposa. A forma como cuidavam um do outro. A maneira como os rostos deles se iluminavam simplesmente por estarem na companhia um do outro.

– Se ele a ama, ficará mais do que satisfeito em ter a oportunidade de cuidar de você, de protegê-la – disse, com certa hesitação. Ninguém nunca a havia amado daquela forma, então Valena não tinha muita experiência no assunto, mas tinha certeza que algum dia encontraria um amor assim. A própria Fênix havia lhe dito isso, não havia? E a ligação entre Evander e Sandora parecia-lhe tão intensa que não era difícil imaginá-los fazendo qualquer coisa um pelo outro.

O lábio de Sandora tremeu.

– Não quero que ninguém me veja assim.

– E qual é o problema? Caso não tenha percebido, eu estive aqui, olhando para você, durante todos esses dias. E, antes que me pergunte, não, não acho nada demais você estar abalada dessa forma, não depois de tudo o que aconteceu. Qualquer um ficaria para baixo numa situação dessas. E se eu, que sou uma culvert egoísta não penso menos de você por estar assim, garanto que ninguém mais vai pensar. Muito menos ele.

Sandora a olhou, surpresa, por um longo tempo. Então seus lábios se curvaram num arremedo de sorriso.

– Acredito que eu nunca agradeci adequadamente por todo o cuidado que teve comigo.

– Não se preocupe. Eu fiz isso porque eu gosto de você. Só não me pergunte o motivo, porque eu não faço a menor ideia.

Soltando um riso abafado, Sandora se recostou à cadeira e levantou a cabeça, fechando os olhos, com a expressão mais serena que havia demonstrado desde que retornara.

– Então, o que vai fazer? – Valena quis saber. – Não pode continuar presa aqui dentro, vivendo dessa forma. Por que não vai atrás do seu homem?

Sandora abriu os olhos e olhou pela janela. Para variar, estava caindo um dhilleysi de um aguaceiro lá fora, o que parecia acontecer quase todo dia naquele lugar. A bruxa refletiu um pouco antes de dizer:

– Eu preciso de respostas. E acho que sei onde encontrar algumas.

Enfiando a mão num dos bolsos de seu manto, ela removeu de lá uma folha de papel suja e amassada. Após afastar os pratos, ela a abriu sobre a mesa, revelando o que parecia um mapa, obviamente desenhado às pressas com carvão.

– Onde conseguiu isso?

– De um aliado inesperado que tivemos na batalha contra Donovan – Sandora disse, apontando para uma parte do desenho. – Ele disse que aqui fica o monte mais alto de Ebora.

Valena estudou o mapa com atenção enquanto Sandora citava os vários pontos de referência desenhados de maneira desajeitada.

– Eu acho que sei como chegar nesse lugar – disse, por fim. – O capitão Nevana me fez escalar uma dessas montanhas durante o meu treinamento. Você pode ativar pontes de vento, não pode? Quer dizer, não sei exatamente onde estamos, mas se pudermos chegar a uma vila que tem por aqui – ela apontou para um ponto do mapa – estaremos a não mais do que um dia ou dois de caminhada até esse “x”.

– Não precisa me acompanhar. Você já me ajudou bastante.

– Se está pensando em sair por aí sozinha nesse estado, ainda mais indo para uma região perigosa como essa, pode esquecer.

– Gram irá comigo.

– Esqueça, não vou sair de perto de você. Nunca abandonaria alguém desse jeito. Evander provavelmente comeria o meu fígado.

♦ ♦ ♦

A jornada acabou se estendendo por muito mais tempo do que Valena previra. Estavam ocorrendo fortes chuvas na região, que tornavam o caminho incrivelmente escorregadio e perigoso. Os poderes de Sandora os protegiam do frio, então os três conseguiam prosseguir viagem, mesmo embaixo do temporal, mas depois que as estradas e trilhas acabaram, o caminho se tornou bastante difícil.

Chovia tanto que Valena nem mesmo podia usar seus poderes, que se baseavam em fogo. Apesar de ela não ser capaz de carregar os outros dois consigo durante o voo, teria sido muito mais fácil encontrar a entrada do vale se pudesse dar uma olhada na região lá do alto.

No quarto dia chegaram a uma abertura quase escondida entre as montanhas. A estreita passagem parecia interminável e logo se transformou numa espécie de caverna. Sandora tirou um cristal de luz contínua do bolso e o passou para Valena, para que iluminasse o caminho. O fato de nem a bruxa e nem o morto vivo parecerem precisar de luz para se moverem por aquele breu a deixou com uma incômoda sensação de inferioridade.

Depois de algum tempo, no entanto, a caverna chegou ao fim.

– Seu amigo não avisou sobre isso? – Valena perguntou. O mapa dava a entender que deveriam atravessar aquela passagem, mas a sólida parede de pedra indicava que aquele era o fim da linha.

– Não, mas imaginei mesmo que deveria haver uma boa razão para ninguém mais saber da existência do santuário.

Enquanto as duas analisavam as paredes, Gram se agarrou nas pedras e começou a escalar, com agilidade. Boquiabertas, Valena e Sandora o viram ultrapassar o lugar onde deveria estar o teto.

– Ele está atravessando a pedra?! – Valena perguntou.

– Parece ser algum tipo de ilusão – concluiu Sandora. – Quem está no chão percebe o teto bem mais baixo do que ele realmente é.

Depois de uma breve escalada, chegaram em outro túnel, cuja entrada não podia ser vista lá de baixo. Após caminharem por diversas câmaras cheias de umidade e assustadoras estalactites pontudas pendendo do teto, finalmente chegaram à saída e puderam voltar a ver a luz do dia de novo.

E era um dia bem claro e ensolarado. Não havia nem sinal da forte chuva que enfrentaram por dias para chegar ali. Diante deles havia um vale verdejante, cercado por montanhas.

– O campo místico aqui é diferente – disse Sandora, analisando os arredores com cuidado. – Estamos em um espaço alternativo. A caverna deve ser algum tipo de portal.

– Pelo menos podemos nos livrar dessas roupas molhadas – disse Valena, antes de olhar para Sandora e perceber que os trajes da outra estavam secos e limpos, como se tivesse acabado de vesti-los. – Ou, pelo menos eu posso, já que não tenho roupas mágicas.

Caminharam pelo vale por algum tempo até chegarem às ruínas de um velho templo. Investigando o lugar, encontraram escadarias que levavam a andares subterrâneos. Apesar de não ter sobrado muito da construção em pé, a parte dela que ficava abaixo do solo era incrivelmente extensa. Levaram horas explorando aqueles túneis antigos até que uma figura etérea surgiu diante deles.

– Hã… olá? – Valena disse, levando a mão ao cabo da espada.

– São bem-vindos todos os que buscam respostas.

Era difícil discernir as feições da figura. Parecia um humano, mas a imagem era muito imprecisa e instável, como se estivessem enxergando aquela pessoa através de um fluxo de água corrente.

– Você é o guardião do santuário? – Sandora perguntou. – Se for o caso, deve saber quem sou eu e por que estou aqui.

– Este lugar guarda o conhecimento conseguido durante milênios – respondeu a figura. – Apenas isso. Onisciência não é uma capacidade que será encontrada aqui. Mas você conseguiu passar pelas diversas barreiras do vale como se elas não existissem. Creio que nem mesmo se deram conta dos diversos escudos que atravessaram, não é mesmo?

Valena e Sandora se encararam por um instante, surpresas.

– Como eu pensava – ele prosseguiu. – Isso que quer dizer que algumas das regras desta realidade não se aplicam a você. A julgar por isso e por seu peculiar fluxo vital, posso concluir que se trata de um espírito itinerante.

– É o que me foi dito – Sandora disse devagar, desconfiada.

– Muitos como você vieram a este lugar com o passar dos séculos. Todos tinham as mesmas perguntas, sobre si mesmos e o lugar que ocupavam no mundo que habitavam.

Valena ficou em silêncio, analisando a figura com atenção enquanto Sandora fazia suas perguntas.

O homem transparente pediu para chamá-lo apenas de “guardião”. Disse ser um espírito originado em tempos antigos e escolhido por uma das entidades ancestrais para reunir e proteger o conhecimento obtido pelo povo até então. E que continuou a fazer aquilo por milênios, mesmo depois que a entidade que lhe deu vida deixou de existir.

A conversa entre Sandora e o Guardião durou um longo tempo. Valena não conseguiu prestar atenção em tudo por diversos motivos. Primeiro, estava cansada e com fome. Em segundo, os dois falavam rápido, alternando entre os assuntos de uma forma que era difícil de ela acompanhar. Era como observar uma discussão filosófica entre dois sábios.

Mas, mesmo através do cansaço, impaciência e do tédio, ela conseguiu entender várias coisas.

O guardião explicou sobre a origem do mundo, ou melhor, a reformulação que ocorrera milênios atrás, quando uma entidade misteriosa havia modificado a realidade para torná-la como a conheciam hoje. Contou que os espíritos de Sandora e Evander eram “sobreviventes” do mundo antigo. E que a razão dos estranhos poderes do casal era que, como tinham escapado ao processo de reformulação, não tinham as limitações que a entidade havia colocado em todas as criaturas do novo mundo.

Então vieram as más notícias. Parece que o corpo de Sandora ainda estava sujeito a várias leis desta realidade, apesar de seu espírito não estar. E uma dessas leis era rejeitar qualquer coisa estranha, que não tivesse a mesma natureza que ele. O feto que Sandora carregava havia sido gerado a partir da união entre dois espíritos itinerantes, e era uma criatura tão aberrante quanto seus progenitores, talvez até mais. E o organismo de Sandora não iria aceitar esse corpo estranho dentro de si, fazendo tudo o que pudesse para combatê-lo. O feto resistiria, e essa batalha silenciosa entre os corpos da mãe e do filho iriam, certamente, levar ambos à morte.

Ao ver o quanto aquela revelação estava afetando sua amiga, Valena questionou o guardião, perguntando como ele poderia saber tanto sobre o assunto. A resposta foi que esse tipo de acontecimento havia se repetido diversas vezes durante as eras. Espíritos itinerantes encarnados tendiam a perecer. Era uma forma que o Criador havia encontrado para se livrar dos sobreviventes do mundo antigo.

Uma onda insuportável de náusea se abateu sobre Sandora. O guardião recomendou a Valena que a tirasse dali uma vez que continuar aquela conversa neste momento, com todas aquelas emoções envolvidas, serviria apenas para apressar o inevitável.

♦ ♦ ♦

Não tinham tempo a perder. Quanto mais tempo demorassem discutindo, mas perto o monstro que Luma Toniato havia se tornado estaria de obter o poder daquele bendito machado.

Valena reuniu Sandora, Valdimor e Falco e, junto com a tropa da capitã Imelde, tomaram a ponte de vento de volta ao palácio, levando consigo o que restou de Gram. Então se dirigiram à torre onde os curandeiros cuidavam de Joara Lafir.

Alvor e Iseo foram até as masmorras e trouxeram o metamorfo, com os pés acorrentados e os braços imobilizados atrás das costas.

– A que ponto chegamos, hein, Jester? – Falco perguntou, lançando um sorriso zombeteiro ao outro.

O homenzinho apenas grunhiu, incapaz de falar devido à mordaça que tinha sido colocada em sua boca por medida de precaução.

Valdimor também não estava nem um pouco satisfeito e não fazia nenhum esforço para ocultar sua contrariedade. Valena tivera quase que implorar a ele para vir. Teria sido muito mais fácil se não tivesse lhe contado sobre as possíveis consequências do ritual, mas ela não tivera coragem de ocultar essa informação dele. Importava-se demais com aquele homem para ser capaz de fazer uma coisa dessas.

Ela deu uma olhada ao redor. Os seis indivíduos a que o augúrio se referia estavam reunidos ali, junto com ela. A sensação que sentia agora, ao lado deles, era inegável. Tinha certeza que estavam predestinados a isso, provavelmente desde o nascimento. No entanto, a cena diante de seus olhos não era nada animadora.

Sandora olhava para ela com determinação, mas não conseguia esconder a expressão de sofrimento enquanto segurava o ventre com uma das mãos. Aparentemente, não era apenas o tempo de Valena que estava se esgotando. Valena se perguntou se havia sido esta a razão de a bruxa ter finalmente concordado em participar do ritual.

Falco tinha sido atingido no ombro durante a batalha e usava uma tipoia improvisada. O sorriso arrogante tinha desaparecido desde que seu artefato místico fora tirado dele. O que se via no rosto dele agora era preocupação e… medo.

Joara estava na cama, inconsciente. Pálida e muito magra, pouco lembrava a moça vibrante e cheia de vida que tanta inveja havia despertado em Valena com sua aparência exuberante e modos perfeitos.

Valdimor, felizmente, não havia sido ferido na batalha, mas a expressão revoltada que exibia chegava a ser assustadora. Se tivesse direito a um último pedido, Valena com certeza desejaria passar algum tempo com ele, para poder, ao menos se despedir de forma adequada.

Quanto a Gram, seus restos mortais – se é que podiam ser chamados assim – se encontravam dentro de uma grande caixa de madeira, ao lado de Sandora.

E, para completar o patético quadro, Jester forçava suas amarras, inutilmente, soltando gemidos abafados.

– Tire a mordaça dele – Valena pediu a Alvor.

Assim que o pano foi removido de sua boca, o homenzinho tossiu e engoliu várias vezes, antes de esbravejar:

– O que pensa que vai fazerrr comiga?

– Você tem tara por poder, não é, seu baixinho invocado? – Falco disse, antes que Valena pudesse responder. – O que você acha de participar da ressurreição da entidade mais poderosa deste mundo? E com grandes possibilidades de ter um de seus desejos atendidos?

Aquilo fez com que Jester arregalasse os olhos por um momento, antes de voltar a estreitá-los, com desconfiança.

– E porrr que eu acrreditarria em você?

– Todos aqui precisam de alguma coisa – respondeu Valena. – A Fênix é uma entidade benigna, conhecida por recompensar aqueles que trilham o caminho da justiça. Tenho certeza de que ela verá com bons olhos aqueles que participarem de bom grado desse ritual.

Valena não tinha nada além da palavra do capitão Nevana em relação àquele assunto, mas também não tinha motivo para duvidar dele. Segundo o capitão, os participantes do ritual de ressurreição sempre conseguiam algo que queriam muito.

– Mas porrr que eu? – Jester perguntou, ainda desconfiado.

– Não sei responder a essa pergunta – respondeu Valena, fazendo um gesto abrangendo os presentes. – Ela escolheu você, assim como cada um de nós. Falco e Radal nos disseram que você não concordava com as decisões de Dantena. Que estava aliado a ele apenas até conseguir obter algo que desejava muito, e que não tinha conhecimento de todos os atos malignos que ele estava cometendo. Isso é verdade?

Jester balançou a cabeça.

– Que diferrença isso faz?

– Dois de nós estão incapacitados – respondeu Sandora, lançando um demorado olhar para Valdimor, Falco e depois para Jester. – As chances de o ritual falhar serão muito grandes se qualquer um de nós quatro, além de Valena, não participarmos por vontade própria. Isso nunca irá funcionar se alguém tentar sabotar ou lutar contra seus efeitos.

Jester olhou para Falco.

– E o que você ganharrá com isso?

Falco sorriu.

– Minha espada de volta. E ouro. Muito ouro. Vamos lá, seu teimoso. Quando foi que eu menti para você antes? Nunca vou te perdoar se eu perder essa chance por sua causa.

Ainda desconfiado, Jester encarou Valena.

Querro meu liberrdade.

Ela apertou os punhos, frustrada. Estavam perdendo tempo demais com aquela conversa.

– Apenas se prometer não tentar matar mais ninguém de novo e nem voltar a se aliar a inimigos do império.

– Muito bem.

Aquela aceitação tinha vindo fácil demais, não tinha? Valena o encarou por um momento, indecisa. Então, suspirou.

– Libertem ele.

Alvor e Iseo soltaram as amarras dos punhos do metamorfo e as correntes de seus pés. Todos ao redor se retesaram, se preparando para um possível combate.

Mas Jester não tentou invocar seus poderes. Ao invés disso, olhou para Sandora e os dois se encararam por alguns momentos. Então o olhar dele desceu para o ventre levemente distendido pela gravidez. A forma como ela segurava a barriga com a mão levemente trêmula deixava claro o quanto estava se sentindo mal.

– Vai perdirrr porrr seu saúde?

– Não – respondeu ela. – Se eu tiver direito a um pedido, tenho algo mais importante em mente.

– Mais imporrtante que seu filha? – Ele pareceu confuso.

Sandora apertou os lábios e engoliu em seco, mas não respondeu.

Valena notou, contrariada, que sabia o que a bruxa queria. A teimosa esperava encontrar uma forma de evitar o destino do portador da marca. Planejava se aproveitar do fato de ser um espírito itinerante para tentar, de alguma maneira, manipular as flutuações do ritual e modificar suas regras, ou, pelo menos, amenizar seus efeitos. Por que aquela bruxa não se preocupava apenas consigo mesma? Será que ela ainda acreditava na promessa que Valena tinha feito, de encontrar uma forma de curá-la? Ninguém em sã consciência acreditaria mais naquilo, não depois de tantos meses de tentativas fracassadas.

Jester pensou por um momento e voltou a olhar para Valena, aparentemente contagiado pela determinação de Sandora.

– O que querrr que eu faça?

♦ ♦ ♦

Depois que Beni, Iseo, Alvor, Laina e Loren saíram do aposento, Sandora observou, apreensiva, enquanto Valena se concentrava por alguns instantes, antes de fazer um gesto dramático com as mãos, como se estivesse retirando algo de dentro de si e arremessando ao ar à sua frente.

Subitamente, a realidade pareceu se desintegrar a seu redor. De repente, ela não estava mais em seu corpo, não tinha mais boca, olhos, nariz ou ouvidos. A súbita privação de sentidos lhe causou uma onda de pânico e ela tentou, instintivamente, usar seus poderes de reconhecimento místico para tentar se localizar.

Percebeu que flutuava em meio a um fluxo energético de intensidade absurdamente grande. Era como se toda a energia do mundo estivesse passando através dela. Tentou descobrir onde estavam seus aliados e descobriu que todos faziam parte daquele fluxo, assim como ela própria. Todos os sete haviam se juntado, se fundido em uma única e poderosa força, potencializada de forma incomensurável pelo favor divino.

Unidos daquela forma, os sentimentos mais profundos de cada um deles ficavam evidentes, suas essências expostas.

Foi com alegria e alívio que Sandora sentiu a presença de Gram. Ela estava ali, mais forte e vibrante do que nunca, otimista, alegre, impulsiva. Tudo para ela era uma aventura, incluindo o que acontecia no momento.

A presença de Valdimor era marcante, com sua furiosa determinação, que usava para tentar preencher o enorme vazio que havia dentro dele. Um vazio que desejava desesperadamente que Valena preenchesse.

A essência de Falco era surpreendente. Ele tinha uma visão um tanto romântica em relação ao mundo e uma necessidade quase desesperada de encontrar seu lugar nele.

Já Jester carregava uma incomensurável carga de culpa e sofrimento. A solidão em sua alma era tão grande que podia ser sentida em ondas, chegando até mesmo a afetar o fluxo energético.

Sandora nunca chegara a conhecer pessoalmente a princesa Joara, mas de alguma forma a reconheceu, com seu entusiasmo e otimismo juvenil, sedenta por conhecer o mundo e fazer dele um lugar melhor.

E por fim, encarou o íntimo de Valena, sua carência, sua necessidade de pertencer, de ser amada, e disposta a qualquer sacrifício para fazer com que sua existência fizesse sentido.

Também percebia a si própria no meio daquele fluxo, sua raiva e indignação por tudo o que lhe foi imposto e pela falta de autocontrole que, primeiro colocou em risco dezenas de milhares de vidas, depois, causou a concepção de uma criança que não tinha chances de nascer.

Era curioso, Sandora pensou consigo mesma. Nunca tinha percebido que aqueles sentimentos tão intensos estavam enterrados dentro de si. Achava que havia superado aquelas coisas há muito tempo e seguido em frente com sua vida, mas não, continuava presa, seu passado ainda ditando seu presente, controlando-a, forçando-a a percorrer um caminho que não tinha certeza se queria.

Os fluxos de energia estavam se unindo, criando uma flutuação, materializando algo. Pareciam funcionar de forma pré-programada, as nuances se sucedendo de forma precisa e metódica demais para que aquilo pudesse ser considerado como algo espontâneo, aleatório.

Então, uma consciência começou a se formar, uma presença surgindo em meio à energia. Algo que nascia, frágil a princípio, mas que se alimentava do fluxo, começando a crescer, com potencial para se tornar algo maior, mais forte, talvez invencível.

Sandora sentiu sua própria consciência se desacelerar, como se um grande cansaço tivesse se abatido sobre ela. Percebeu que o mesmo estava acontecendo com todos os outros. Suas essências estavam perdendo a força, sendo atraídas e engolfadas pelo novo ser que nascia. E concluiu que não era apenas Valena quem estava correndo risco. Algo estava errado. Aquela coisa queria absorver a todos eles.

Ela nunca iria permitir isso.

Podia sentir Joara e Gram tentando debilmente se afastar da presença intrusa, assustadas, e se juntou a elas, as energias das três se entrelaçando, se fortalecendo, e assim se afastando do perigo. O intruso voltou sua atenção para os outros, tentando atraí-los para si, mas encontrou resistência. Jester pareceu ponderar sobre quem era mais perigoso, e acabou optando pelo risco conhecido, juntando-se a Sandora. Falco, indeciso, acabou seguindo o amigo. Valena era a única que se aproximava voluntariamente da presença estranha, seguida por Valdimor, que se recusava deixar que ela se entregasse sozinha. E foi aquilo que fez com que a imperatriz mudasse de ideia. Sandora sentiu o exato momento em que a outra se deu conta de que, se seguisse aquele caminho, seria responsável por duas mortes, já que ele nunca a deixaria. Então os dois tentaram se afastar da presença, mas já estavam entranhados demais para isso.

Sandora e os demais se aproximaram, sua consciência coletiva gerando uma força que rivalizava com a da entidade embrionária. A indescritível luta prosseguiu pelo que pareceu uma eternidade, mas finalmente Valena e Valdimor se libertaram da presença desconhecida e se uniram a seus amigos.

Sete almas se abraçaram, acalmando e consolando umas às outras, suas consciências se aproximando de forma cada vez mais íntima. Sentindo um outro perigo, Sandora agitou-se, forçando todos a manterem alguma distância entre si. De alguma forma, soube instintivamente que, se seus espíritos se unissem ainda mais, o intruso acabaria vencendo, pois eles provavelmente acabariam se transformando numa cópia dele.

A entidade continuou tentando se aproximar deles, absorvê-los, mas Sandora se afastava, levando os outros consigo.

Era curioso que eles a obedecessem sem nenhuma hesitação. Então ela olhou para eles mais a fundo e percebeu o que estava acontecendo. Pela primeira vez, teve uma constatação incontestável do que o guardião do santuário lhe dissera. Era como se existisse uma tranca, um bloqueio que os impedia de pensar e agir com clareza naquele ambiente, deixando-os como se estivessem embriagados, sem o total controle sobre si mesmos. E aquele bloqueio não era algo externo, que pudesse ser removido. Era mais profundo, parecendo fazer parte das essências de todos eles, exceto Sandora.

Tentando evitar que o intruso ficasse ainda mais forte, ela tentou redirecionar o fluxo energético para si, gerando um tipo de efeito de repulsão para mantê-lo a distância. Não demorou muito para a presença começar a perder força. Com o controle cada vez menor sobre o fluxo, aquela consciência não tinha qualquer esperança de continuar existindo.

Ela então percebeu que o intruso estava abrigado no interior de algo, como se fosse uma casca, ou um ninho. Como era tudo imaterial e fluído onde estavam, era difícil descrever, mas aquilo parecia um construto, algo criado para fortalecer a entidade e dar a ela controle sobre aquela realidade onde estavam.

Sem pensar duas vezes, Sandora se lançou lá para dentro, envolvendo o intruso enfraquecido e absorvendo sua energia até que ele se dissipasse totalmente. Então, junto com os outros, assumiu o lugar dele.

♦ ♦ ♦

Laina Imelde andava de um lado para o outro, impaciente, do lado de fora do quarto de Joara.

– Vai acabar fazendo um buraco no chão desse jeito – Loren disse a ela, numa tentativa não muito eficiente de animar o ambiente.

– Verdade – disse Beni, dando a ela uma piscadela maliciosa. – Por que não se concentra naquele encontro de hoje à noite e na noitada que vai ter?

Laina parou e o encarou, franzindo o cenho.

– Encontro? Não tenho nenhum encontro. – Ela piscou, por um momento, parecendo confusa. – Ou tenho?

Beni e Loren caíram na risada, juntamente com Alvor e Iseo. Todos os cinco haviam sido enxotados para fora do quarto antes de Valena dar início ao tal ritual, e a imperatriz tinha dado ordens expressas para ninguém mais subir naquela torre, então eram apenas eles ali, esperando, sem saber direito pelo quê.

– Sério, Laina, agora fiquei com inveja – disse Alvor. – Sua vida amorosa deve andar movimentada como nunca se precisa de um calendário para saber se vai ou não se dar bem hoje.

– Posso me dar bem quando quiser – respondeu a capitã, entrando na brincadeira. – Não preciso marcar encontros para isso.

Os outros se preparavam para fazer um coro de vaias quando um som estranho se fez ouvir dentro do quarto, colocando a todos de prontidão.

Iseo correu para a porta e pôs a mão na maçaneta, olhando para Laina a espera de autorização para abri-la. A capitã, no entanto, pressentiu algo e correu para a janela. O que avistou ali a fez arregalar os olhos.

– Uau!

Os outros espicharam as cabeças bem a tempo de ver um enorme pássaro de fogo, que parecia estar sendo formado a partir de um jato de chamas que que saída do quarto de Joara através da janela.

Iseo abriu a porta do aposento, constatando que não havia mais ninguém lá. A imperatriz e as outras seis pessoas haviam desaparecido, incluindo a princesa inconsciente e os “restos mortais” de Gram.

Pelas janelas, eles contemplaram enquanto o pássaro de fogo cruzava os céus da capital, na direção oeste. Brados foram ouvidos dos andares inferiores do castelo, bem como das ruas da cidade. As pessoas comemoravam, excitadas, o ressurgimento da Grande Fênix, que não era avistada há anos.

♦ ♦ ♦

Valena tinha consciência do que estava acontecendo, mas se sentia inerte, incapaz de tomar decisões. Valdimor, Gram, Falco, Joara e Jester estavam na mesma situação. Era como se tivessem se tornado escravos, sua existência subitamente se resumindo a aguardar e obedecer a instruções.

Mas Sandora era diferente. Ela conseguira manter sua personalidade e assumira o controle do ritual, de uma forma que fez Valena se sentir orgulhosa. Por mais que quisesse reviver a Fênix, não havia ninguém no mundo em quem confiasse mais e estava feliz por ver a bruxa no comando.

Não que Sandora estivesse tendo um trabalho fácil. Unidos da forma como estavam, não era possível manter os sentimentos um do outro em segredo, e era muito claro o esforço quase sobre-humano que ela precisava fazer para manter o controle sobre o fluxo energético.

Logo perceberem que o poder com o qual estavam lidando era demais para uma mente humana, mesmo uma tão privilegiada quanto a de Sandora. O “ninho” no qual se estabeleceram tinha energias incomensuráveis, que podiam ser moldadas de infindáveis formas. Valena sentia que poderiam fazer quase qualquer coisa, manipulando a realidade de formas inimagináveis. Mas, ao mesmo tempo, estavam sendo bombardeados com uma insuportável quantidade de estímulos externos. Os “sentidos” da criatura que haviam se tornado eram tão desenvolvidos que as sensações que recebiam eram intensas demais, atordoantes, e quase impossíveis de serem compreendidas.

Sandora imediatamente atacou aquele problema, instruindo Gram, Valdimor e Valena a moldarem a realidade à sua volta de forma a criar um bloqueio, para “abafar” aquela cacofonia. Jester, Joara e Falco foram encarregados de reunir todo tipo de informação que pudesse existir no meio daquele fluxo. Descobriram que o “intruso” não tinha sido completamente destruído. Sua vontade se fora, mas o restante dele, como suas memórias, continuavam ali. Memórias de uma entidade divina. Sandora então encontrou uma forma de extraírem aquele conhecimento e usá-lo para refinar o bloqueio criado pelos outros, de forma a filtrar e “traduzir” aqueles estímulos, estabelecendo mecanismos para lidar automaticamente com a maior parte deles.

O resultado desse esforço foi a criação de uma espécie de mente independente, que se tornou um intermediário entre eles e a realidade, cuidando para a manutenção e desenvolvimento do ser coletivo e interceptando tudo o que pudesse, de forma que o “núcleo”, composto por Valena e pelos outros, ficasse responsável apenas por tomar decisões mais importantes. A mente independente estudava formas de melhorar a si mesma, numa retroalimentação infinita, desenvolvendo-se cada vez mais rápido e se tornando cada vez melhor.

Logo estavam com completa consciência do corpo físico dentro do qual estavam, bem como de tudo o que acontecia a seu redor. Sandora e os outros continuaram trabalhando, buscando informações na memória divina e criando camadas na mente independente até conseguirem ter um controle razoável sobre os incomensuráveis poderes que tinham à sua disposição.

Então perceberam que, mesmo com todo o potencial daquela mente independente, levariam tempo demais para dominar completamente aquele corpo. Um tempo que não tinham. Por isso, Sandora decidiu se concentrar no objetivo principal: encontrar Luma Toniato, e pará-la.

Assim, a nova Grande Fênix partiu para Mesembria, cruzando os céus da província com incrível velocidade, mas, de forma paradoxal, permitindo que todas as pessoas lá embaixo a vissem com clareza. A entidade se movia de forma parecida com o sol daquele mundo, inexplicavelmente permitindo que todas as pessoas, de quase todo o país, a avistassem na mesma posição do céu ao mesmo tempo.

Quando a entidade chegou em Aldera, o monstro já havia obtido a posse do artefato, que flutuava à sua frente, acima da grande cratera.

Então, em um ato impensável para qualquer mortal, a Fênix simplesmente rasgou a realidade ao redor, lançando a si mesma e a sua adversária em um espaço alternativo. Luma não pareceu se importar, concentrando-se apenas em preparar sua ofensiva, com o auxílio do poderoso artefato.

Era impossível descrever com palavras o que, exatamente, aconteceu dentro daquela realidade alternativa. O monstro em que Luma Toniato havia se tornado era extremamente forte, determinado e agressivo, tendo total controle sobre seu próprio corpo e seus poderes, coisa que a Fênix, definitivamente, não tinha. Mas o poder que a entidade manipulava era muito maior. Sandora manteve a Fênix na defensiva quase o tempo todo, enquanto a mente independente aprendia a lidar com a situação e desenvolvia novas formas de se proteger e contra-atacar.

Aquela dança prosseguiu por muito tempo. Para a percepção humana, era como se tivessem se passado semanas dentro daquele espaço alternativo.

Luma havia criado a arma capaz de destruir a Fênix, e agora tinha poder suficiente para construir algo ainda mais mortal, coisa que ela fez, de várias formas diferentes. Mas Sandora estava preparada para aquilo, uma vez que tinha uma boa ideia do funcionamento da Godika Goenika e usara os conhecimentos da entidade para se proteger dos efeitos. Mesmo assim, a Fênix foi seriamente ferida, precisando despender grande parte de seu fluxo se refazendo e fortalecendo suas defesas. Felizmente, o jogo logo começou a virar, conforme Sandora e os outros se adaptavam à situação e aprendiam a controlar aqueles poderes divinos de forma cada vez mais eficiente.

Por fim, Luma foi derrotada. A personalidade “monstruosa” que habitava seu corpo foi erradicada, e então a Fênix abandonou o espaço alternativo, trazendo consigo o corpo inerte de sua adversária. Infelizmente, o espírito original de Luma já havia partido desse plano de existência há muito tempo, não sendo mais possível, nem mesmo para a grande entidade, revivê-la.

A alegria e a sensação de triunfo eram intensas. Valena sentia-se eufórica e sabia que os demais também estavam.

Enquanto flutuavam no ar, logo acima da borda da cratera, ela percebeu que poderiam continuar ali, dentro daquela entidade, ou melhor, sendo aquela entidade, para sempre. Seria um arranjo perfeito. Dentro daquele ninho, tinham tudo o que seus espíritos pudessem desejar. Conforto. Paz. Excitação. Alegria. Poderiam viver ali, longe das agruras da vida humana. Sem dor, sem sofrimento. Nunca estariam sozinhos. E tinham poder suficiente para cuidar de todos e tornar aquele mundo um lugar melhor. A mesma constatação se abateu a todos os outros. A vontade de esquecer todo o resto e partir em uma eterna jornada corrigindo injustiças e ajudando as pessoas era forte, quase irresistível.

E, para a surpresa de Valena, foi justamente isso o que fez Sandora decidir que tinham que abandonar aqueles poderes. Imediatamente.

Aproveitando que a mente independente estava consideravelmente enfraquecida depois da batalha, e assim, menos propensa a se rebelar devido a seus instintos de autoproteção, Sandora a comandou a dissipar os fluxos e lhes devolver a seus corpos físicos.

Nunca ficou muito claro onde, exatamente, seus corpos haviam estado aquele tempo todo, mas em poucos instantes, a Grande Fênix deixou de existir e Valena abriu os olhos e se viu em meio à floresta de pinheiros, um pouco frustrada por aquela experiência incrível ter chegado ao fim. Todos os sete estavam exatamente da mesma forma como antes do ritual: as mesmas roupas, os mesmos ferimentos. Joara continuava inconsciente e Gram, ainda aos pedaços, com o corpo sem vida de Luma Toniato a seu lado.

Valena e Valdimor se encararam por um instante, antes de se lançarem nos braços um do outro. Quando o abraço terminou, ela encarou aqueles olhos negros com um sentimento indescritível. A provação chegara ao fim. Havia feito uma aposta contra todas as expectativas e tinha vencido. Estava viva. Estava livre. E não existiriam outros “companheiros”, não da forma como pensara antes. Seu único parceiro seria esse homem à sua frente. Por todo o tempo que lhe restasse.

E, pela expressão de felicidade e expectativa estampada no rosto dele, sabia que também havia chegado à mesma conclusão. Teriam muito o que conversar. E havia todo o tempo do mundo para isso.

Olhando ao redor, ela percebeu que Falco passava o braço pelos ombros de Jester, numa demonstração de camaradagem que parecia incomodar o metamorfo, mas da qual ele não tentava se esquivar, limitando-se a lançar um olhar de reprovação ao outro.

Enquanto isso, Sandora se ajoelhava ao lado de Gram, levando a mão ao ventre, com uma careta de dor.

Valena se afastou de Valdimor, pensando em ir até ela, quando teve uma súbita realização. Algo mais acontecera enquanto seus espíritos se separavam. Todos eles tinham fortes desejos e, antes que a mente independente desaparecesse completamente, aconteceu um momento de comunhão, onde as vontades de cada um deles foi compartilhada por um breve instante.

Sete desejos foram feitos. Sete pedidos puros, isentos de qualquer egoísmo. Não sabiam exatamente quem havia pedido o quê, mas todos se deram conta de que sete graças foram concedidas pelo poder da Grande Fênix no último instante de sua existência.

Aqueles pedidos foram retornando um a um à memória ainda um pouco confusa de Valena, conforme os acontecimentos subsequentes.

Se lembrou do primeiro deles quando o corpo de Luma Toniato foi levantado do solo, a graça divina separando dela todos os artefatos místicos que havia absorvido e enviando-os de volta a seus donos de direito. A falcione voltou para a mão de Falco, que sorriu, com surpresa e satisfação.

Muita energia foi liberada enquanto os artefatos se materializavam e se teleportavam de volta a seus locais de origem, mas a graça da Fênix impediu que presenciassem uma repetição da grande explosão que acontecera quando Dantena perdera os poderes de forma parecida.

No entanto, apesar de a explosão não acontecer, a energia negativa surgiu, atingindo o corpo sem vida de Luma e reanimando-o, transformando-o lentamente em uma criatura amaldiçoada.

Neste momento, a segunda graça da Fênix se manifestou, atendendo ao desejo que pedia pela reconstituição de Gram. As mãos mumificadas dela, subitamente, pareceram ganhar vida e flutuaram até o corpo de Luma, agarrando-o pelos tornozelos.

Sandora e Valena tinham visto Gram absorver um morto vivo muito tempo atrás, quando ela deixou de ser apenas um esqueleto para se tornar uma espécie de múmia. Mas, de qualquer forma, ficaram tão surpresas quanto os outros ao verem o processo se repetir.

O morto vivo recém-formado não teve oportunidade de realizar nenhum ato antes que o processo de absorção começasse. Também não emitiu nenhum som enquanto se desmaterializava, diminuindo de tamanho enquanto sua energia era direcionada ao corpo dilacerado de Gram, que começou a brilhar e se recompor, mudando de forma.

Quando o brilho se dissipou, havia ali apenas o corpo de uma mulher jovem, sem vestimentas e extremamente pálida caída no chão, sua pele levemente azulada. Suas orelhas eram pontudas e a boca levemente aberta deixava entrever incisivos grandes, muito maiores do que o normal.

Exceto pelas orelhas, dentes e as unhas compridas e pontudas tanto nas mãos quanto nos pés, o resto do corpo dela parecia normal. Poderia até mesmo ser descrito como atraente, se não fosse pela mórbida cor da pele.

Sandora se aproximou do novo corpo de Gram com olhos lacrimejantes, passando a mão pelos longos cabelos brancos, antes de tirar um grande lençol de seu bolso de fundo infinito para cobri-la. Então as pálpebras pálidas se abriram, revelando íris de um intenso vermelho. Gram a olhou por um momento, antes dos cantos de seus lábios se curvarem num leve sorriso. Então virou-se na direção de Valena e libertou uma das mãos pálidas do lençol, levando-a à testa, num gesto de continência.

Valena sorriu, aliviada, enquanto Valdimor, ao lado dela, fez alguns gestos que a imperatriz não entendeu, mas que deixaram Gram satisfeita.

– A maldição acabou? – Valena perguntou a Sandora.

– Não – foi a resposta, com voz entrecortada. – Ela está com uma aparência melhor que a de antes, mas ainda está na mesma condição.

– Ao invés de uma múmia, ela agora é o quê? – Falco perguntou, cruzando os braços. – Uma vampira?

Um brilho sinistro e um silvo estranho cortou o ar e eles perceberam que o terceiro pedido estava se realizando. O desejo que Valena desconfiava que tivesse sido o seu próprio.

Ela deu alguns passos adiante, saindo detrás das árvores e parou diante de onde, até poucos instantes atrás, estava a gigantesca cratera. No lugar dela, havia agora uma enorme planície. O chão, apesar de relativamente plano, parecia todo revirado, com pedras, pedaços de madeira e outras coisas misturadas à terra de forma caótica.

A uma certa distância, havia pessoas. Dezenas delas. Estavam se levantando do chão e olhando ao redor, confusas. Valena chamou a atenção de Valdimor, Falco e Jester.

– Vão até lá, vejam se alguém precisa de ajuda.

Valdimor correu naquela direção imediatamente. Jester pareceu não gostar muito de receber ordens, mas Falco, que Valena nunca tinha visto expressar tanta alegria e satisfação antes, o convenceu a ir com ele, fazendo brincadeiras e provocações bem-humoradas.

– São os habitantes de Aldera! – Valena exclamou, animada, se aproximando de Sandora, que ainda estava ajoelhada ao lado de Gram e da princesa. – A cidade está destruída, mas as pessoas parecem estar todas vivas, como você disse que estariam. Vamos lá, você tem que…

Ela se calou de repente, seu sorriso desaparecendo, quando a bruxa olhou para ela. Então Valena levou a mão ao rosto, empalidecendo. A marca da Fênix aparecia, com todo o seu esplendor, na face direita de Sandora.

A bochecha direita de Valena estava lisa, não havia nenhum sinal de sua marca, era como se nunca tivesse estado ali.

– O que… o que significa isso?

Então Valena se lembrou. Aquele havia sido o quarto desejo.

– Você… você tomou minha marca… roubou meus poderes… – ela disse, com voz fraca. – Foi esse foi o seu desejo? Por quê?

Sandora desviou o olhar e puxou o capuz sobre a cabeça, antes de ajudar Gram a se levantar, enrolando o lençol em volta de seu corpo.

– Por que não me responde?!

A bruxa continuou calada enquanto tirava alguma coisa do bolso.

Uma onda de pânico ameaçou tomar conta de Valena. Estava perdendo tudo novamente. Mais uma vez, estava sendo abandonada, traída por uma pessoa que amava.

– Era isso que você queria esse tempo todo? Tomar tudo de mim? Meu trono? Minha vida?!

Sandora soltou um gemido de dor, enquanto revelava o item que tinha tirado do bolso – o anel com encantamento de âncora, capaz de transportar o portador de volta ao palácio. Então apertou os ombros de Gram com força e pronunciou a palavra de ativação.

No instante seguinte, Valena estava sozinha, exceto pela princesa de Chalandri, que continuava inconsciente, no chão, há alguns passos de distância. Sentindo-se ferida como nunca, ela soltou um grito desesperado e se ajoelhou, levando as mãos à cabeça.

— Fim do capítulo 24 —
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