Publicado em 07/01/2018 | ||
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3. Mão Amiga
Valena tinha acabado de completar dez anos quando o Orfanato Delafortuna foi fechado. Aparentemente, os burocratas da Província Central não viam mais utilidade na existência de um abrigo para vítimas de guerra, sendo que o país já estava em paz há mais de uma década. Então, o dinheiro simplesmente parou de chegar. Ou, ao menos, foi isso que o administrador disse às crianças, justificando assim o fato de estarem sendo separadas e enviadas a diferentes abrigos em diferentes cidades.
Assim, Valena foi parar numa casa estranha, cheia de desconhecidos, sendo obrigada a deixar para trás tudo o que conhecera durante toda a sua existência.
Não, é claro, que sua vida anterior no orfanato a agradasse. Depois que Ganaris foi dada como morta e foi designado aquele novo administrador, as coisas foram ficando cada vez piores. A comida foi ficando intragável, as roupas raramente eram lavadas ou recebiam qualquer tipo de reparo e os passeios acabaram. Os internos viviam, praticamente, como prisioneiros no antigo casarão, que ficava cada vez mais frio, uma vez que ninguém mais se preocupava em tentar tapar os buracos no chão e nas velhas paredes de madeira.
Ao menos, o abrigo para onde ela foi mandada não estava caindo aos pedaços e, pela primeira vez em sua vida, ela teve um quarto só seu. Não que aquilo realmente pudesse ser chamado de “quarto”, pois tratava-se de uma pequena despensa não mais utilizada e que tinha apenas um velho armário e uma pilha de cobertas no chão. Mesmo sem ter uma cama, no entanto, o lugar ainda era mais confortável do que o quarto coletivo do orfanato, uma vez que era bem protegido do frio.
Também haviam bem menos internos por ali, e todos eram mais ou menos da mesma idade dela, o que era ótimo. Ninguém pareceu simpatizar muito com ela nos primeiros dias, mas ao menos não a tratavam com condescendência, como se fosse uma criança, coisa que a irritava profundamente.
De qualquer forma, a mudança, para ela, não deixou de ser triste e melancólica, pois parecia-lhe que mais uma coisa sua lhe era tomada à força. Apesar do orfanato não ser mais tão agradável quanto antes, ele estava cheio das memórias de todos os momentos, alegres ou tristes, que tinha passado em sua vida.
Tendo vivido, praticamente, toda a infância disputando e brigando com crianças maiores do que ela, Valena não era uma menina muito sociável. Ela não sabia como tratar os mais jovens e implicava instintivamente com os mais velhos, principalmente os meninos, de forma que acabava ficando sozinha na maior parte do tempo.
Foi nesse contexto que, devido a uma série de acontecimentos, ela acabou se tornando amiga de Barlone.
No início, ela o rotulou como um “esquisitão”. Aquele menino de cabelos negros, sobrancelhas grossas e expressão geralmente enfezada foi uma das primeiras coisas que ela notou em sua nova “casa”. Ele preferia ficar pelos cantos e raramente se misturava com os outros adolescentes, o que a deixava curiosa. Teria ele tanta dificuldade para se relacionar com os outros quanto ela? Várias vezes ela se aproximou, tentando puxar conversa, ao que ele sempre reagia de duas formas: ou ignorando-a sumariamente ou simplesmente se afastando, deixando-a falando sozinha.
Valena chegou a perguntar para uma das garotas a razão de o menino ser tão antissocial e recebeu a resposta “ele é assim mesmo, deixa ele para lá”.
Quase todos os menores que residiam no abrigo, tanto meninos quanto meninas, pareciam fascinados por um assunto: poderes místicos. Nem mesmo o interesse por sexualidade, potencializado pelos hormônios da puberdade, conseguia superar o interesse e curiosidade que tinham pelos misteriosos e excitantes efeitos que a manipulação do campo místico podia causar.
Provavelmente, a maior responsável por aquela fascinação toda era a proprietária do abrigo. Tratava-se de uma senhora com mais de 40 anos, tinha cabelos grisalhos e andava com dificuldade devido a uma doença nos ossos. Durante a juventude havia trabalhado como alquimista e conhecia uma infinidade de encantamentos, que ela gostava de usar para entreter os pequenos.
Valena achava particularmente interessante a forma como ela acendia a lareira fazendo um simples gesto de mão, como se estivesse arremessando algo sobre a lenha e o fogo, subitamente, brotava do nada.
A proprietária também gostava de contar histórias sobre os diversos lugares onde viveu e trabalhou: as florestas de Lemoran, as ruas estreitas e abarrotadas de pessoas em Alias, o clima instável da Sidéria, a organização e a camaradagem dos quartéis do exército imperial, bem como coisas incríveis que aconteciam em todos esses lugares.
Um dia também viajarei por todo o país, Valena decidiu.
Até mesmo o normalmente carrancudo Barlone ouvia tudo o que a mulher falava, com inequívoca fascinação, enquanto a mulher passava instruções às crianças sobre como lidar com pessoas que tinham certos tipos perigosos de poder, e incentivava a todos a conversarem com ela caso percebessem a manifestação de qualquer tipo de habilidade especial.
Em determinado outono, três dos adolescentes manifestaram habilidades místicas. O primeiro deles relatou o fato, conforme fora instruído, e acabou sendo levado embora do abrigo. Segundo a proprietária, ele seria avaliado por um oficial e provavelmente conseguiria uma boa colocação no exército, bem como treinamento apropriado para desenvolver seus poderes. A partida dele, no entanto, foi tão repentina que os outros adolescentes começaram a imaginar se realmente aquilo era verdade.
Então foi a vez do casal de gêmeos. Os irmãos descobriram, de repente, que eram capazes de gerar cargas elétricas quando davam as mãos, podendo assim, dar choque em qualquer pessoa em quem encostassem. Ao invés de relatarem o fato, os dois preferiram manter aquilo em sigilo e usaram aquela habilidade para se vingar dos grandalhões que se consideravam os donos do lugar e não perdiam oportunidade de abusar dos menores. Ao se darem conta do que aquele poder lhes permitia realizar, não levou muito tempo para os oprimidos se tornarem os novos opressores.
E foi então que eles começaram a implicar com Valena.
A discussão ocorreu por algum motivo bobo, algo a ver com o fato dela ter batido em um menino que a havia insultado. Ao verem que ela não estava disposta a obedecer a eles, os gêmeos a pegaram de surpresa um dia que ela estava sozinha no quarto de brinquedos do sótão e lhe aplicaram diversos choques, até que ela caísse no chão, quase inconsciente. Quando a tortura finalmente parou e ela conseguiu abrir os olhos, viu Barlone segurando os irmãos pelos cabelos, um com cada mão. Ao notar que estava sendo observado, ele os soltou, fazendo com que se estatelassem no chão, desmaiados. Sem dizer nada, ele apenas levou um dedo aos lábios, para que Valena ficasse quieta, e se afastou.
Os gêmeos acordaram sem nenhuma recordação do que tinha acontecido nas últimas horas. Não querendo ser ridicularizados, eles decidiram não contar nada daquilo para ninguém. Valena percebeu que os dois não se lembravam do que lhe tinham feito, quando ouviu uma conversa dos dois planejando “dar uma lição” nela.
E agora, o que faria? Se contasse para os adultos, era possível que não acreditassem nela e os gêmeos acabariam fazendo coisas ainda piores. Além disso, se fosse contar aquela história para alguém, teria que contar também sobre ter sido salva por Barlone, e ele pedira para ela manter aquilo em segredo, não foi?
Barlone! Ele deve saber o que fazer!
No meio da noite, ela foi até o quarto dele, esforçando-se para não fazer nenhum ruído. Quando levantou a mão para a maçaneta, a porta se abriu e ela, instintivamente, levou a mão à boca para evitar soltar uma exclamação de susto. Barlone a agarrou pelo braço e a puxou para dentro do aposento, antes de fechar a porta com cuidado e trancá-la.
Aquele quarto era ainda menor que o dela, mas tinha a vantagem de haver uma janela por onde entrava um tímido raio de luar.
Barlone virou-se para ela, parecendo ainda mais bravo do que o de costume e perguntou, num sussurro:
– O que está fazendo aqui?
– Eu queria falar com você – ela respondeu, no mesmo tom.
– O que foi? São os gêmeos de novo?
Ela assentiu.
Barlone soltou um suspiro, frustrado.
– Droga!
– Eles não lembram de nada daquele dia, então estão querendo…
– Eu sei, eu sei!
– Eles não vão parar com isso até serem pegos. Temos que contar para os adultos.
– Não.
– Mas…
Ele a encarou com a expressão mais assustadora que ela já tinha visto.
– Ninguém pode saber nada sobre isso!
– Por quê?
– Não te interessa.
– Mas o que eu vou fazer?
Ele pensou por um momento.
– Vamos dar uma lição neles.
– O quê? Como?
– Encolha a barriga.
– Hã?!
– Vamos! Vou te mostrar uma coisa. Encolhe a barriga!
Sem entender, ela fez o que ele mandou.
– Agora levante os dedos dos pés e flexione os joelhos. Não, assim não! Tem que flexionar mais os músculos das coxas.
Perplexa, ela foi obedecendo os comandos dele, que ficavam cada vez mais estranhos. Já estava perdendo a paciência com aquilo quando ele assentiu, parecendo satisfeito. Então ele se aproximou dela e a tocou no peito com os dedos indicadores das duas mãos, que emitiram uma faísca e deram-lhe um intenso choque, fazendo com que ela caísse sobre as peles no chão.
– Por que fez isso?!
Ele levou um dedo ao lábio, sinalizando para que falasse baixo. Indignada, ela se levantou, abrindo a boca para reclamar, mas se interrompeu quando ele voltou a encostar os dedos nela dando outro choque. Dessa vez, no entanto, a intensidade foi bem menor e ela se manteve firme no lugar.
– Ótimo – disse ele, com uma expressão satisfeita.
– Mas o quê…?
– Não sei outro jeito de ensinar isso, tem que ser uma coisa instintiva, tipo um reflexo.
– Ensinar o quê?
– Lembra o que aconteceu quando os gêmeos te deram choques?
– Doeu para wanaagsan! Eu caí no chão e achei que não ia conseguir levantar mais!
– Acabei de te dar um bem mais forte que o deles, e você continua parada no lugar, quase nem se mexeu.
Muito surpresa, Valena levou algum tempo para compreender o que ele estava falando.
No dia seguinte, quando os gêmeos a cercaram, tentando “lhe dar uma lição”, ela resistiu ao choque, do jeito que Barlone lhe ensinou, e pegou os dois pelo pescoço, encostando-os na parede. Mesmo sendo maiores do que ela, foram pegos completamente de surpresa.
– Da outra vez acho que eu bati forte demais nas cabeças de artichoke de vocês dois, pois parece que não se lembram de nada – disse ela, com uma voz ameaçadora. – Dessa vez eu vou deixar irem embora ilesos, para que não esqueçam de novo. Mas eu estarei de olho. Se ficar sabendo que andaram atazanando mais alguém, vou fazer com que se arrependam, estão me ouvindo bem?
Depois desse episódio, a vida dos adolescentes do abrigo voltou à normalidade, sem mais bullying. Valena voltou a procurar Barlone.
– Por que você resolveu me ajudar naquele dia? Nunca fiz nada por você.
– Você precisa de um motivo para ajudar outra pessoa?
Ela ficou pensativa por um tempo.
– É, acho que tem razão. Mas você sempre pareceu tão sozinho, achei que não gostasse de ninguém.
– E não gosto mesmo. Mas isso não quer dizer que eu queira ver alguém sofrendo. E não esqueça que não é para contar nada disso para ninguém!
Com o passar dos meses, Valena e Barlone acabaram se aproximando, passando a conversar e a realizar tarefas juntos. Por fim ele acabou contando a ela a natureza dos poderes dele, que não tinham nenhuma relação com choques elétricos.
– Então você fez com que eu pensasse que estava tomando um choque?
– Na verdade eu fiz com que você se lembrasse dos choques que tinha tomado. Então sua mente tornou aquilo real.
Ela arregalou os olhos.
– Você tem poder sobre a mente?
– Psiu! Fala baixo! Ninguém pode saber sobre isso!
Habilidades místicas capazes de afetar a mente eram um tabu. Valena ouvira inúmeras histórias de pessoas severamente castigadas por usar esse tipo de poder, que ia contra os ensinamentos das Grandes Entidades.
– E por que eu tive que fazer tudo aquilo? “Encolher a barriga”, e tal?
– Ah, aquilo eu aprendi num livro. É um jeito simples de isolar o corpo contra flutuações elétricas de baixo nível.
– Uau! Você é incrível!
E aquele foi o início de uma “parceria” que durou anos. Valena não sabia definir exatamente o relacionamento deles, que não era como uma amizade “normal”. Os dois conversavam e se ajudavam mutuamente sempre que podiam, mas não eram, exatamente, próximos.
Anos depois ela viria a concluir que o que os impediu de se aproximarem mais provavelmente era o fato de estarem na adolescência e de serem de sexos diferentes. Sempre havia uma espécie de “tensão” entre os dois, algo que no futuro (e com outros rapazes) ela viria a aprender a apreciar, mas que, então, era algo completamente novo, misterioso e um pouco assustador.
♦ ♦ ♦
Valena largou os papéis sobre a mesa e levou uma mão à fronte, fechando os olhos com força. Uma súbita batida à porta fez com que ela se sobressaltasse e enxugasse uma lágrima com a mão antes de respirar fundo, tentando se recompor.
– Entre.
A porta se abriu, revelando a figura levemente encurvada de Luma Toniato. Apesar da óbvia idade avançada e da dificuldade que tinha para caminhar, a mulher conseguia manter um surpreendente ar de feminilidade e sofisticação. Isso sem falar de sua perspicácia, que fez com que estacasse no lugar, preocupada, ao notar a palidez no rosto da imperatriz.
– Algum problema, alteza?
Valena sacudiu a cabeça.
– Não, só estou cansada de ler relatórios.
Luma assentiu e fechou a porta, sentando-se devagar na cadeira em frente à escrivaninha de Valena.
– Está precisando de ajuda com algo?
– Não. Sandora e eu já resolvemos tudo por hoje, ela saiu daqui agora há pouco para encontrar o comandante.
Luma franziu o cenho.
– “Comandante”?
– Ah, eu quis dizer o namorado, noivo, ou sei lá o quê dela.
– Certo. E quanto a Mesembria? Já tomou uma decisão?
– O dragão matou o ex conselheiro imperial que havia assumido o controle da província e tomou o lugar dele. O resto daqueles jooji não vão deixar isso barato. A Sidéria já pode ter começado o ataque, e provavelmente as tropas das Rochosas vão tentar invadir também.
– E você quer ajudá-los?
– Se eles quiserem ajuda, sim. Sandora sugeriu reforçar nossas tropas que estão próximas à fronteira.
Luma se mexeu na cadeira.
– Posso fazer uma pergunta pessoal?
Valena lançou um olhar de espanto para a outra, mas assentiu.
– Claro.
– O que sabe sobre o passado de Sandora?
– Fora o fato dela ter sido acusada de bruxaria, ter destruído uma das maiores cidades do império e ajudado a capturar o maior genocida da história? Não muito.
– Você se dá muito bem com ela.
Valena deu de ombros.
– Eu gosto dela. Algum problema com isso?
– Como pode confiar tanto em alguém que não conhece direito?
– Primeiro, porque ela tem a mesma idade que eu. Segundo, porque eu entendo ela.
– É mesmo?
– O melhor amigo que eu já tive era parecido. Fechado, de poucas palavras e não muito amigável. Mas não hesitava em ajudar qualquer pessoa que precisasse.
Ao ver que Valena tinha abaixado a cabeça, Luma inclinou-se para a frente e cobriu a mão da imperatriz com a sua.
– E o que aconteceu com seu amigo?
Valena recolheu a mão e apontou para as folhas que estava lendo.
– Foi morto. Na revolta de Lemoran, meses atrás.
– Oh, sinto muito.
– Não falava com ele há muitos anos, desde que ele virou cadete. Pedi informações sobre ele, para ver se estava bem, e… – Valena se interrompeu e balançou a cabeça. – Ao menos ele conseguiu o que tanto queria. Entrou para o exército, fez uma carreira. E morreu como herói.
Luma abria a boca para dizer algo, mas foi interrompida por uma forte batida na porta.
– Entre – disse Valena, imaginando quem poderia ser agora.
O general Viriel Camiro abriu a porta, prestando continência, enquanto Valena e Luma se levantavam.
– Com licença, alteza.
Valena assentiu e o general entrou, seguido pelo que parecia uma multidão de pessoas, que lotaram a pequena sala. Entre eles estavam a capitã Laina Imelde, o aspirante Alvor Sigournei, Leonel Nostarius e Sandora.
A imperatriz franziu o cenho.
– O que está acontecendo?
– Nossos alquimistas acabam de detectar uma flutuação incomum no litoral nordeste – respondeu Camiro.
– Que tipo de flutuação?
– Um teleporte.
A julgar por sua expressão, Sandora devia ter sido chamada àquela reunião sem saber do motivo da mesma. Ela se adiantou e encarou o general.
– De que tipo?
– Conjuração.
– Conseguiram detectar o local exato?
– Sim. Foi em uma cidade chamada Calise. Algo ou alguém foi teleportado para lá. Não conseguimos detectar a origem, mas a intensidade energética é pequena, se for mesmo uma pessoa, deve ter vindo sozinha.
Valena levou uma mão ao queixo.
– Calise? Essa não é a cidade natal da esposa do Dragão de Mesembria?
Sandora olhou para o aspirante Sigournei.
– Oficial, você revelou a ele que nos passou aquelas informações?
A capitã Imelde ficou pálida e encarou o aspirante, arregalando os olhos.
– Hã… sim – Alvor admitiu, hesitante.
– O quê?! – Laina exclamou. – Como pôde?
– Eu autorizei – revelou Valena, o que fez com que todos, exceto Alvor, olhassem para ela, surpresos. Ela preferiu não acrescentar que aquela tinha sido uma das condições que o aspirante havia imposto quando ela lhe pediu que revelasse detalhes sobre a história do novo governante de Mesembria. – Achei justo que o dragão soubesse disso. Pedi para o aspirante não reportar esse fato para ninguém por se tratar de um assunto delicado.
– Oh! – Laina exclamou.
– Deixar o dragão saber disso foi uma excelente decisão – disse Sandora, pensativa, o que fez com que o ego de Valena fosse para as alturas, mesmo aquilo não tendo sido ideia dela. Era a primeira vez que a bruxa lhe fazia um elogio diretamente. – Fez com que ele resolvesse tomar uma atitude para tentar descobrir nossas intenções.
O general franziu o cenho.
– Mas como saber se isso é coisa dele? Pode ser mera coincidência.
Sandora sacudiu a cabeça.
– Sabe o quanto custam os materiais necessários para fazer uma conjuração como essa? Se isso fosse simples, ninguém precisaria de pontes de vento. Teleporte requer muita experiência, recursos e preparo, além de ser muito fácil de detectar. Ele sabia que iríamos perceber a chegada, devia estar contando com isso. Deve ter mandado alguém para conversar com Valena. Temos que ir para lá. Agora.
Incerto se podia confiar nas palavras daquela jovem, o general olhou para Leonel Nostarius, que apenas assentiu. Então ele virou-se para Laina.
– Capitã, prepare uma tropa.
– Espere! – Valena levantou uma mão. – Se Sandora estiver certa e o dragão quiser mesmo negociar, talvez seja melhor eu ir sozinha.
– Não – disse Sandora. – É melhor levarmos todos os soldados que pudermos.
♦ ♦ ♦
Valena lançou um olhar para o impressionante contingente que o general tinha conseguido reunir em tão pouco tempo. Infelizmente, aquilo lhe parecia pouco.
– Não me parece que temos tropas suficientes.
– Não temos mais tempo – disse Sandora, ajoelhando-se e tocando o chão da plataforma de vento, preparando-se para ativá-la. – Vamos ter que nos virar com o que o general conseguiu nos enviar.
– Eu me sentiria melhor se seu marido estivesse por aqui.
Sandora olhou para ela estreitando os olhos, obviamente incomodada com o uso da palavra “marido”.
– Evander e os amigos dele têm seus próprios assuntos para tratar, eles não estarão por perto sempre que você quiser os serviços deles.
– O que é uma pena. E como está ele? Conseguindo superar o fato da amiga ter morrido naquela batalha?
– Lidar com a perda de alguém próximo é sempre difícil, mas ao menos ele está, aos poucos, se livrando do sentimento de culpa.
– É mesmo?
– É fácil aceitar o ocorrido quando você olha a coisa pelo lado lógico. Se ele tivesse conseguido impedir a morte dela, muitos outros poderiam ter morrido. É muito fácil uma pessoa de boa índole tomar a atitude de sacrificar a si própria para salvar inúmeras outras pessoas porque sabe que, se não fizer isso, ficará se culpando pelo resto da vida. Evander entende que a moça, se tivesse escolha, não pensaria duas vezes e entregaria a própria vida de bom grado naquele momento. Ela não conseguiria conviver consigo mesma se não fizesse isso, ou se alguém a impedisse.
– Uau! Isso foi profundo.
– Você deveria ler um pouco mais. Esse tipo de situação foi proposto pela primeira vez por filósofos há centenas de anos.
– Não, obrigada. Prefiro fornecer a você todos os livros que quiser e, em troca, você me passa apenas um resumo do que eu deva saber.
Valena olhou para Gram, que se colocava sobre a plataforma, atrás de Sandora. Era impossível conter um arrepio ao olhar para a figura dele, mesmo estando quase que completamente escondida por um manto velho e desbotado com o capuz puxado sobre os olhos. Ela sabia que, debaixo daquele pano, a aparência da criatura lembrava uma espécie de múmia, o que o tornava ainda mais macabro do que quando não passava de um esqueleto ambulante.
Deixando aqueles pensamentos de lado, ela se colocou sobre a plataforma e inspirou fundo, antes de exalar o ar com força, lutando para combater a apreensão.
– Certo. Vamos em frente. Pode ativar esse negócio.
Calise era uma pequena cidade litorânea, o que explicava a temperatura bem mais elevada e o odor característico de maresia.
Valena, Sandora e Gram caminharam por vários minutos pelas ruas da cidade. As pessoas lançavam olhares curiosos para os três, mas ninguém parecia realmente reconhecer sua imperatriz. Frustrada, Valena imaginava o que teria que fazer para mudar aquela situação, quando avistou a mulher encapuzada, que estava parada diante do portão da casa do falecido sábio Baldier Asmund.
Sandora e Valena trocaram um olhar. Não esperavam que o dragão fosse mandar a própria esposa para negociar.
– Senhora Asmund, eu presumo?
À pergunta de Valena, a mulher se virou e olhou para eles, um raio de sol incidindo sobre ela e permitindo que fossem vistas as inconfundíveis marcas vermelhas de uma horrível queimadura que cobria todo o lado direito de seu rosto.
– Então você é Valena Delafortuna.
– Sim. E esta aqui é…
– Sandora Nostarius – a mulher completou, encarando a outra com curiosidade. – O aspirante Sigournei parece admirar bastante você.
Sandora assentiu.
– Ficamos sabendo do falecimento de seu pai. Li alguns dos livros dele, e devo dizer que o mundo perdeu um grande homem.
– Minhas condolências – acrescentou Valena.
A mulher voltou a olhar para a casa por um instante e balançou a cabeça, antes de abrir o portão e entrar. Interpretando o fato dela ter deixado o portão aberto como um convite, Valena a seguiu, com Sandora e Gram a acompanhando.
– Suponho que não estejam aqui para me prender por invadir seu país – disse a mulher, enquanto destrancava a porta da casa de madeira e entrava.
– Imagino que tenha uma boa razão para ter vindo até aqui, além de visitar a casa onde cresceu – retrucou Valena, entrando na sala vazia e olhando ao redor. Não havia nenhum móvel em parte alguma e um leve cheiro de mofo podia ser sentido no ar.
– Você se considera uma pessoa confiável, imperatriz?
Valena pensou por um instante, antes de apontar para a marca da Fênix em seu rosto.
– Quantas pessoas você vê por aí com isso na cara?
– Se o aspirante realmente contou a você toda a história do Dragão de Mesembria, sabe que o fato de uma entidade lhe conceder poderes não significa, necessariamente, que fará bom uso deles.
– Vocês estão precisando de ajuda – disse Sandora, também entrando no aposento, com Gram logo atrás. – Já que veio até aqui, por que não nos conta tudo, de uma vez? Como vê, viemos em paz.
A mulher encarou Sandora.
– Com a intensidade das emanações energéticas vindas de vocês, isso me parece um pouco dúbio. Ainda mais quando sinto claramente esse poder me envolvendo, tentando me afetar de alguma forma.
Valena olhou para Sandora.
– Talvez seja melhor vocês esperarem lá fora.
Sandora estudou a mulher encapuzada por um momento.
– Se você tem uma afinidade grande o suficiente para detectar minha aura energética assim tão rápido, deve ser capaz de perceber que ela afeta a mim e a todos à minha volta da mesma forma.
A outra não pareceu nada convencida.
– Se você diz.
Sandora franziu o cenho e olhou para Valena.
– Quer mesmo arriscar ficar aqui sem o meu campo de proteção?
Valena sabia bem o que a bruxa queria dizer. No momento, ela não era, simplesmente, Valena Delafortuna, era a imperatriz de Verídia. Se expor, daquela forma, era uma decisão bastante arriscada. Mas então, ela se lembrou de Barlone.
– Certa vez um garoto que nem me conhecia veio em meu socorro quando eu precisava de ajuda, sem se importar com o fato de que, no processo, estava me revelando sua maior vulnerabilidade. Graças a ele, eu acredito que, quando duas pessoas querem se entender, uma delas precisa dar o primeiro voto de confiança.
Julgando que talvez aquela fosse a melhor estratégia naquela situação, Sandora assentiu, dirigindo-se para a porta e fazendo um pequeno gesto para que Gram a seguisse.
– Muito bem, senhora Asmund – disse Valena, quando as duas ficaram a sós. – Como posso ajudá-la?
— Fim do capítulo 3 — | ||
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