Publicado em 23/01/2018 | ||
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4. Fogo Cerrado
Barlone foi o primeiro amigo de verdade que Valena teve. E não apenas isso, ele foi também seu melhor amigo: o mais confiável, o mais atencioso e o mais dedicado. Foi uma amizade que durou vários anos e sobreviveu a muitos desafios.
Devido ao ambiente em que foi criada, Valena apresentava uma personalidade arredia, desconfiada e desafiadora, se metendo em brigas constantemente e, ocasionalmente, saindo machucada. Barlone ficava furioso com ela por causa disso.
– Por que você tem que ser tão cabeça dura?
– Vai ficar do lado daquela ku faraxsaneyn? Até você?!
– Deixa de ser idiota! Essa briga de vocês é estúpida.
– Estúpida? Ela entrou na minha frente e falou um monte de bobagens!
– Se são bobagens, porque você vai querer discutir com ela? Deixa para lá, não vê que essa convencida te provoca de propósito?
– E por que eu deveria deixar qualquer coisa “para lá”? Por que eu devo dar ouvidos a você?
– Eu estava sozinho e tranquilo aqui no meu canto, se não quer a minha opinião, por que veio conversar comigo?
Por alguma razão que nunca compreendeu direito, ela nunca conseguia se zangar com ele, por mais que, às vezes, quisesse.
– Ai, Barlone, para que falar comigo assim?
– Por que você merece!
A raiva dele também costumava desaparecer surpreendentemente rápido. Num minuto estava esbravejando com ela e no seguinte já conversava normalmente, como se nada tivesse acontecido.
– É seu dia de trabalhar na lavanderia hoje, não é? Da última vez você quase morreu afogada. – Valena sentiu as faces arderem ao ser lembrada do episódio em que havia caído dentro do barril de água. – Vai querer ajuda?
A forma dele encerrar uma discussão e mudar de assunto, falando calmamente como se nada demais tivesse acontecido, sempre a pegava de surpresa e a desarmava completamente. O fato de ele nunca deixar de pontuar as bobagens que ela fazia era totalmente compensado pela, aparentemente, infindável disposição que ele tinha para ajudá-la em qualquer coisa.
– Se você não se importar…
Diferente da maior parte dos adolescentes do abrigo, Barlone não gostava muito de conversar, o que era um outro ponto positivo, na opinião de Valena. Quando os dois estavam juntos realizando alguma tarefa, ficavam boa parte do tempo em um silêncio confortável. Era até um alívio poder sair por um tempo de perto das outras garotas, que vivam matraqueando futilidades sem parar.
– Percebeu que estão nos fazendo trabalhar cada vez mais?
Ela olhou para ele, intrigada.
– Mas qual é o problema? Não é o que eles sempre falam, aquela baboseira de que conforme formos crescendo vamos ganhando mais responsabilidades e tal?
– Sim, mas não acha que colocar meninos de 11 anos para rachar lenha e consertar telhados é um pouco de exagero?
– Por quê? Qual o problema com isso?
Ele olhou para ela, franzindo o cenho.
– Você nunca conversou com ninguém de fora daqui?
– Como eu faria isso? Quase nunca deixam a gente sair.
Ele apenas levantou uma sobrancelha. Ela arregalou os olhos e olhou para os dois lados antes de perguntar, baixinho:
– Você sai escondido?
– Eu e quase todo mundo. Já está aqui há tanto tempo, vai dizer que não percebeu?
♦ ♦ ♦
Andar pelas ruas da capital do império na calada da noite era excitante. Sem sombra de dúvida, aquela era a maior aventura da vida de Valena até então.
Os dois precisavam andar com cuidado para evitar os soldados, que patrulhavam as ruas estreitas da cidade, dia e noite. Se fossem pegos, seria o fim da aventura, pois provavelmente seriam mandados de volta para o abrigo, onde com certeza ficariam de castigo por muito tempo.
Sair do abrigo no meio da noite tinha sido surpreendentemente fácil. Nenhum dos adultos parecia particularmente interessado em monitorar os adolescentes, então, a menos que começassem a fazer bagunça dentro dos quartos, ninguém se dava ao trabalho de subir as escadas para ver o que estavam fazendo.
Sem ninguém para impedi-los, Valena e Barlone haviam saído pela porta dos fundos e pulado o muro para chegar até a rua com a maior facilidade.
– Ainda não entendi porque precisamos usar essas coisas – ela reclamou, referindo-se ao surrado manto com capuz que usava, que era muito grande para ela e, praticamente, a engolia inteira.
Barlone, que usava um traje muito similar, apenas levou um dedo aos lábios, pedindo silêncio, e a guiou pelo que parecia ser um labirinto de vielas estreitas e desertas, exceto por um ou outro soldado em patrulha.
– Uau! – Valena não conseguiu conter uma exclamação de espanto quando chegaram a uma praça incrivelmente iluminada. Cristais de luz contínua estavam pendurados em árvores, postes e em qualquer outro lugar disponível. – O que é isso?
– Festival da primavera – respondeu ele, guiando-a na direção do aglomerado de barracas que pareciam uma espécie de míni-cidade, agrupados em blocos separados entre si por espaços não muito grandes, por onde uma verdadeira multidão caminhava olhando os inúmeros produtos dispostos para venda.
– No meio da noite?!
– Nem pergunte. Acho que é algum tipo de tradição ou algo assim.
Os homens usavam ternos e gravatas e as mulheres, roupas coloridas e brilhantes. Algumas delas usavam vestidos longos e rendados, provavelmente para combinar com os antiquados fraques e cartolas de seus acompanhantes. Pelo que Valena sabia, aqueles trajes já tinham saído de moda há décadas.
Olhando para aquelas sedas e cetins, Valena nem imaginava o que levava aquelas mulheres a usarem esse tipo de roupa, que tolhia os movimentos, além de parecerem bastante desconfortáveis. Assim como as outras meninas do abrigo, ela nunca tinha usado nada além de calças compridas e estava muito satisfeita com isso.
Barlone a levou através da multidão até uma barraca grande, que vendia frutas cristalizadas e geleias. Para a surpresa de Valena, ele, sem nenhuma cerimônia, se aproximou de um velho senhor e tirou das mãos dele um caixote de madeira cheio com os potes que acabara de comprar.
O homem olhou para ele, surpreso, mas sorriu ao reconhecê-lo.
– Olá, Siom. Não esperava ver você por aqui.
– Eu levo para o senhor – respondeu Barlone. – Onde está sua carroça?
– Logo ali na frente.
Sem saber o que fazer, Valena ficou parada, apenas observando enquanto Barlone se afastava seguindo o velho, que andava devagar, contando alguma história de sua infância. “Siom” sorria, aparentemente apreciando a conversa do homem.
– Você é amigo do Siom?
Valena se virou ao perceber que aquela pergunta tinha sido dirigida a ela e encarou uma senhora sorridente, que estava atrás do balcão de frutas, usando um avental manchado.
Amigo? Ela acha que sou um menino? Tão logo pensou aquilo ela se lembrou das roupas que usava e daquele capuz horrível que cobria toda sua cabeça, deixando apenas uma parte do rosto visível.
– Ah… sim – ela respondeu, hesitante. Sua voz era um pouco mais grave do que a das outras meninas, e aparentemente podia passar pela de um menino mais novo, pois a mulher não pareceu desconfiar de nada. – Você o conhece?
– Ele às vezes aparece na nossa loja e dá uma ajuda. Qual é o seu nome?
Considerando que Barlone estava usando um nome falso, talvez fosse melhor inventar um também.
– Pode me chamar de Val.
– Prazer em conhecê-lo, Val. Estaria interessado em dar uma mão também? Estou precisando muito de auxílio.
Assim, sem entender muito bem o que estava acontecendo, Valena se viu carregando coisas de um lado para o outro e ajudando a mulher a atender os clientes, enquanto Barlone ficava levando e trazendo caixas.
As pessoas a tratavam como uma espécie de “mascote” da loja, sendo geralmente amáveis e simpáticas. Valena descobriu que aquela movimentação toda, inédita para ela até então, era surpreendentemente divertida, tanto que ela nem viu as horas passarem.
O sino já havia tocado, anunciando a meia-noite, quando a movimentação do festival diminuiu, com as pessoas começando a voltar para casa.
Barlone e Valena ajudaram a desmontar a barraca e a carregar tudo para as carroças. A dona da loja não se cansava de dizer o quanto estava grata pela ajuda deles. No final, ela entregou um grande embrulho para Barlone, exigindo que ele o dividisse com seu amigo.
Depois de se despedir da mulher, Barlone se afastou da praça, que estava ficando vazia conforme as barracas eram desmontadas e as pessoas iam embora. Valena o seguiu em silêncio por vários minutos, até que chegaram em uma espécie de mirante. A parte baixa da cidade se estendia lá em baixo a perder de vista, os cristais de luz contínua que iluminavam as ruas distantes brilhando na noite como estrelas no céu.
Barlone se sentou no chão e começou a abrir o embrulho. Valena se ajeitou ao lado dele.
– Você foge do abrigo para trabalhar?
Ele deu de ombros.
– Foi você quem quis vir comigo, agora não reclame.
– Não estou reclamando, só tentando imaginar por que faz isso.
Ele tirou algo do embrulho e colocou nas mãos dela.
– Dê uma mordida que você vai entender.
Valena olhou para o que parecia ser um pedaço de queijo em forma de bola. Curiosa, ele aproximou aquilo do nariz e o aroma que sentiu a deixou com água na boca. Ao arriscar uma mordida, ela arregalou os olhos.
– Uau! Isso aqui é uma delícia!
Ele não respondeu, ocupado em mastigar outro pedaço. Também havia frutas e outras coisas no embrulho, tudo tão gostoso que aquela refeição improvisada acabou se tornando a melhor que Valena já tivera em sua vida.
– Nossa, esse trabalho realmente valeu a pena – disse ela, rindo. – Não me lembro de ter comido tanto antes. Mas me fala aí: por que aquela mulher chama você de “Siom”?
– É um nome que eu inventei. As pessoas aqui de fora me chamam assim.
– Você gosta mesmo de sair do abrigo, hein? Aqui fora você parece outra pessoa, tem até outro nome!
– Falando no abrigo, agora é melhor você voltar para lá.
– Como assim? Quer que eu volte sozinha?
– Vai dizer que não consegue?
– Claro que consigo, mas você vai fazer o quê?
– Você não precisa saber.
– Eu vou junto.
– Não.
Ela cruzou os braços.
– E o que você vai fazer para me impedir? Vai me dar choque de novo?
Ele olhou para ela e riu.
– Eu poderia fazer mais do que isso. – Ele terminou de jogar os restos dentro do pacote e se levantou, fechando novamente o embrulho. – Onde estou indo agora não é lugar para criança.
– Eu não sou criança, vou fazer 12 anos semana que vem!
Ele não disse nada e saiu andando. Sem pensar duas vezes, ela foi atrás dele, decidida a provar que já era uma mocinha bem crescida.
E aquela, provavelmente, foi a pior decisão que tomou em sua vida. Parecia inacreditável como uma vida podia ser completamente arruinada por uma simples decisão infantil, numa única noite.
♦ ♦ ♦
Valena olhou mais uma vez para o rosto da esposa do dragão. As roupas que a senhora Asmund usava a lembrava de Barlone e daqueles mantos com capuz que ele usava quando escapulia do abrigo e ia para sua… diversão noturna.
Ela só esperava que a decisão que estava tomando agora não viesse a causar um efeito tão destrutivo e avassalador em sua vida quando a que tomou naquela noite de primavera, tantos anos atrás. Hoje, não estava apostando apenas a sua vida e seu futuro, mas também o do império e dos milhares de pessoas que viviam nele.
– Mostre o caminho – Valena disse, finalmente.
A outra assentiu. Era difícil ler sua expressão, principalmente com o rosto meio coberto daquela forma.
– Me dê alguns minutos. Encontrarei vocês na praça.
Sem responder, Valena virou-se e caminho para fora, fechando a porta com cuidado atrás de si. Encontrou Sandora e Gram do outro lado da rua.
– Vamos – chamou ela. – Temos que organizar os soldados, partiremos para Mesembria assim que ela terminar o que quer que tenha vindo fazer aqui.
Os três saíram caminhando a passos largos.
– Então ela veio mesmo pedir ajuda?
– Sim, ela queria que abríssemos a fronteira para que as pessoas pudessem fugir para cá, caso o país dela se tornasse um campo de guerra.
Sandora franziu o cenho.
– Mas isso não resolveria nada. Na verdade, apenas complicaria ainda mais as coisas. Primeiro que não é todo mundo que vai querer abandonar sua casa e depois, como iríamos alimentar toda essa gente? Sem contar que, depois que conquistassem Mesembria, os conselheiros iriam mandar as tropas para nos atacar. E aí, as pessoas iriam fugir para onde?
– É, eu também imaginei algo assim. Fugir não resolve nada, vamos cortar o mal pela raiz. Ainda bem que você teve a ideia de trazer nossas tropas para cá. Vamos pegar aqueles istiraatiiji de surpresa.
– Quem, exatamente, você está chamando de “istiratiji”, ou sei lá o quê?
Vendo que eles chamavam a atenção de algumas pessoas que passavam pela rua, Valena baixou o tom de voz.
– Os antigos conselheiros imperiais. Estão mandando tropas para atacar Mesembria pelo norte e pelo sul, pelo que ela disse, a invasão já pode ter começado.
Sandora assentiu, pensativa.
– E o que você disse a ela que faríamos?
– Que vamos até lá e acabaremos com esse conflito.
– Como? Não temos tropas suficientes aqui para lutar contra dois exércitos ao mesmo tempo.
Valena sorriu, convencida.
– Eu sou a imperatriz de Verídia. Se eu me mostrar em toda a minha glória, com certeza eles vão querer negociar. – Ao notar que Sandora tinha ficado em silêncio, Valena olhou para ela e franziu o cenho. – O que foi? Por que está me olhando com essa cara?
– Tem momentos em que eu realmente me pergunto por que eu decidi ajudar você, sabia?
– Ei! Eu causo uma impressão considerável na minha forma de Fênix! Não venha me dizer que essa é uma ideia idiota!
– Assumir a aparência de uma ave de fogo não é suficiente. O que vai fazer quando conseguir chamar a atenção deles?
– Conversar e fazer um acordo.
Sandora suspirou, olhando para os soldados que os aguardavam na praça. A capitã Laina Imelde tinha um sorriso profissional no rosto enquanto conversava com algumas pessoas, provavelmente explicando a razão da presença de metade do exército imperial bem no meio da cidade.
– Eu realmente espero que você tenha aprendido um pouco de estratégia, negociação e bom senso no tempo em que passou com a Guarda Imperial. – Sandora parou, de repente, e segurou Valena pelo braço. – Achamos que a Sidéria tem um contingente maior do que as Rochosas. A senhora Asmund tem alguma informação sobre os números…? Ah, esqueça, parece que podemos perguntar direto para ela.
A mulher encapuzada vinha marchando, determinada, pela rua. Parou ao lado deles e avaliou as tropas reunidas na praça por um momento.
Valena se perguntava porque aquela mulher não apresentava nenhuma reação à presença de Gram. Ela própria sentia arrepios toda vez que se lembrava que ele estava por perto.
Demonstrando que tinha ouvido a conversa, a senhora Asmund voltar-se para Sandora e respondeu sua pergunta:
– Não temos números exatos, mas sabemos que as tropas da Sidéria são, pelo menos, três vezes maiores.
Sandora levantou uma sobrancelha.
– Você tem uma audição e tanto.
– Você ainda não viu nada.
Levando uma mão ao queixo, Sandora avaliou a mulher com atenção.
– Consegue nos mandar para as áreas de conflito?
– Sim, temos pontes de vento próximas às duas fronteiras.
– Sabe quem está comandando as tropas inimigas?
– O conselheiro Radal segue à frente da tropa do norte. A do sul parece ser comandada pelo general Linaru, mas não temos certeza.
Valena estranhou aquilo.
– Radal não é um dos manda chuvas das Rochosas? Por que comandar um ataque pessoalmente? Que eu saiba, nem poderes ele tem.
Sandora olhou para ela.
– Eu quero a capitã Imelde e a tropa pessoal dela. Você pega o resto dos soldados e vai para o sul.
– Você pretende derrotar o exército de Radal com seis pessoas?
– Se as informações que temos sobre ele estiverem certas, não precisamos de mais do que isso.
– Certo – disse Valena, devagar. – Vamos ouvir o seu plano.
♦ ♦ ♦
– Bola de fogo vindo pela direita! – Alvor gritou, enquanto disparava uma de suas flechas especiais, que explodiu no ar, atingindo e derrubando um dos morcegos gigantes que vinham na direção deles.
O careca cheio de músculos que atendia pelo apelido “Beni” virou o enorme escudo na direção indicada e ativou a habilidade especial do artefato, fazendo com que a boa de fogo fosse diminuindo de tamanho conforme se aproximava, até desaparecer por completo.
Uma inimiga tentou acertar Beni pelas costas, mas antes que pudesse arremessar sua lança, foi atingida no dorso pelo martelo de batalha que o moreno de cabelos negros chamado Iseo lançou contra ela. O impacto poderia ter sido mortal, se não fosse pela aura de proteção de Sandora.
– Te devo essa – disse Beni, ao perceber o que tinha acontecido.
– Continue usando essa coisa assim, que estamos quites – respondeu Iseo, correndo para recuperar sua arma.
Beni virou o escudo na direção de dois inimigos que preparavam um algum tipo de conjuração. A barreira energética que os protegia se desfez imediatamente.
Aquilo era tudo o que a ruiva chamada Loren queria. Usando sua agilidade e seus afiados punhais, ela os alcançou e os derrubou em segundos. Normalmente os oponentes teriam sido degolados pela violência dos ataques, mas graças à aura de proteção, caíram apenas desmaiados.
– Temos que avançar, mexam-se! – Laina Imelde gritou, enquanto corria na direção de dois espadachins de aparência mal-encarada. Suas espadas curtas não eram a melhor opção para confrontar lâminas pesadas como as daqueles dois, então ela teve que usar um pouco de habilidade mística para absorver parte dos impactos e assim, balancear um pouco a luta. Se bem que, considerando o nível de habilidade deles, talvez aquilo nem tivesse sido necessário. Em poucos instantes, ela conseguiu encontrar uma abertura e derrubou o primeiro com um golpe fulminante. Ao ver aquilo, o outro perdeu boa parte de sua autoconfiança e seus movimentos se tornaram mais hesitantes, o que permitiu que ela facilmente o desarmasse e o colocasse para dormir.
Neste momento um novo grupo de atacantes surgiu por entre os arbustos, vindo na direção dela, mas foram interceptados pelas garras afiadas de Gram e pelo mortífero chicote de Sandora. Juntos, os dois conseguiram nocautear o grupo todo em poucos segundos.
– Exibida – provocou Laina, apertando os lábios, enquanto tentava recuperar o fôlego.
Sandora olhou para ela.
– Você melhorou desde a última vez.
Laina pensou consigo mesma que aquela infeliz provavelmente tinha derrubado mais oponentes do que todos os outros juntos, mas parecia não ter derramado uma mísera gota de suor que fosse até agora. E ainda achava que ela havia melhorado?
– Quer dizer, desde aquela vez em que eu fui humilhantemente escorraçada e que você teve que salvar minha vida? Seria muita idiotice da minha parte não tentar evitar que aquilo se repetisse.
– Se eu acreditasse que o termo “idiota” pudesse ser aplicado a qualquer um de vocês, não estaríamos aqui. – Sandora olhou para o lado. – E agora, Asmund, para que lado?
Antes de responder, a mulher encapuzada fez um movimento em arco com uma pequena besta, disparando diversos projeteis e atingindo os três últimos morcegos gigantes, que imediatamente se dissiparam no ar.
– “Asmund” era meu pai. Meu nome é Cariele. Vamos para o leste, a concentração das tropas é bem menor por lá, acho que já conseguimos passar pela pior parte. A propósito, Nostarius, essa sua equipe é impressionante.
– Sandora. Meu nome é Sandora.
– Nunca imaginei que algum dia veria vocês duas trabalhando juntas – comentou Alvor, com um enorme sorriso, enquanto se aproximava. – A propósito, Cariele, achei que essa sua “clarividência” funcionava apenas quando o senhor Gretel estivesse por perto.
– Encontramos uma forma de canalizar a empatia através de uma âncora. Mas isso tem suas desvantagens, meu tempo aqui está acabando.
– Devo admitir, Sandora, que não achava que fôssemos chegar até aqui assim tão fácil – comentou Laina, enquanto se aproximava, junto com os outros.
Sandora franziu o cenho.
– Do que está falando? Isso tudo foi um desastre. – Ela levou à testa e sacudiu a cabeça. – O plano falhou miseravelmente, estamos apenas reagindo aos acontecimentos. O escudo de expurgo está exaurido, estamos todos cansados e não há garantias de que vamos encontrar quem estamos procurando, muito menos de que poderemos achar uma forma de voltar para casa.
Os cinco oficiais olharam para ela, muito espantados. Gram se aproximou e pôs uma das mãos enluvadas em seu ombro.
Cariele Asmund cruzou os braços e a encarou com atenção.
– O que há com você?
Sandora respirou fundo, tentando se acalmar. Tinha que admitir que aquela era uma pergunta relevante. Por que estava tão frustrada, afinal?
Laina se adiantou e a pegou pelos ombros.
– Sandora, você está grávida. É natural se preocupar um pouco, mas está tudo bem. Estivemos seguindo o plano original o tempo todo, ocorreram alguns imprevistos, só isso. Não tinha como ser de outra forma.
Cariele arregalou os olhos.
– Grávida?! O que raios, pensa que está fazendo aqui nessas condições?!
– Ela está fazendo o trabalho que ninguém mais consegue fazer – disse Alvor. – Você é um soldado, entende bem isso, não é?
– Mas ela não é – retrucou Cariele.
– Depende do ponto de vista.
Então é isso, Sandora pensou consigo mesma, mal ouvindo a discussão entre Cariele e Alvor. Na maior parte do tempo, ela conseguia seguir em frente, fingindo que nada havia mudado, que ela era a mesma de sempre, mas sabia que aquilo não era verdade. Havia uma outra vida dentro de si, e o fato de estar ali, arriscando não só sua vida como também a de seu filho, obviamente, a estava afetando. Pensando bem, não poderia ser diferente, poderia?
Evander não iria gostar nem um pouco de saber que ela tinha decidido liderar aquele grupo. Ele iria sofrer por causa disso, mas provavelmente não lhe diria nada. Porque confiava nela. Porque sabia que ela nunca se envolveria numa situação com a qual não pudesse lidar.
– Estou bem – disse ela, se recompondo. – Vamos em frente.
♦ ♦ ♦
Uma das coisas que causava mais deleite em Valena Delafortuna era a glória, o poder, o reconhecimento de que era diferente, especial, única. Por isso, aquele dia, em que sobrevoou a região acidentada da Sidéria ao lado do Dragão de Mesembria, ficaria marcado para sempre em sua memória como um dos mais memoráveis de sua vida.
Os soldados lá em baixo faziam o que podiam para tentar conter o avanço de ambos. Bolas de fogo, relâmpagos e outros tipos de projéteis místicos eram lançados na direção deles quase que o tempo todo, mas o Dragão conseguia antecipar aqueles ataques e se esquivava com muita facilidade, fazendo um ou outro gesto para ela caso fosse necessária alguma manobra para evitar ser atingida.
Mesmo sob aquele fogo cerrado, era possível perceber a reação que ela e Daimar Gretel causavam nas pessoas. Todos lá em baixo estavam com medo, o que era ótimo.
Em termos de aparência, ela tinha que admitir que o Dragão era muitas vezes mais impressionante do que ela, com aquele gigantesco corpo que devia ter mais de 20 metros da cabeça até a ponta da cauda, coberto com escamas azuladas e brilhantes. Estando perto daquele monstro, as pessoas lá em baixo provavelmente só notavam a presença dela por causa do brilho emitido pela forma da Fênix.
Aquilo não chega a ser, exatamente, uma transformação. A única coisa que ocorria era que seu corpo era envolvido por chamas místicas, dando-lhe a aparência de um pássaro de fogo. Aquela forma lhe concedia vários poderes especiais, como a habilidade de voar e de lançar bolas de fogo. Infelizmente, não lhe concedia invulnerabilidade, então era melhor tomar cuidado para não ser atingida, ou poderia muito bem acabar ficando conhecida como a imperatriz de reinado mais curto da história.
Ocasionalmente, o Dragão lhe fazia um gesto em direção a um ponto específico no solo, ao que ela respondia lançando um projétil de fogo naquela direção. A explosão resultante era violenta, arrancando árvores, lançando terra e fumaça para todos os lados e criando pequenos incêndios, mas sem nunca ferir ninguém, já que ele escolhia cuidadosamente os alvos.
De qualquer forma, a mensagem que estavam passando não podia ser mais clara: podiam bombardear o lugar que quisessem, à hora em que quisessem, por quanto tempo quisessem e as tropas inimigas não podiam fazer nada a respeito.
Depois de terem sobrevoado duas vezes toda a região em zigue-zague, os dois voltaram para Mesembria.
O general Camiro correu para receber Valena, quando ela pousou em meio ao acampamento improvisado e dissipou as chamas da forma da Fênix.
– Tudo bem com você, alteza?
– Estou ótima. – Ela sorriu. – Na verdade, estou melhor do que nunca. O Dragão voltou para junto das tropas dele. Como foram as coisas por aqui?
– Tivemos alguns embates e diversas baixas, mas as tropas inimigas bateram em retirada pouco depois que vocês dois começaram a sobrevoar a região.
– Acha que o general Linaru entendeu a mensagem?
– Com nossas forças surgindo do nada dessa forma, não vejo como não entenderia. E, se ele não entendeu, os soldados dele com certeza entenderam.
Valena levantou os braços acima da cabeça, alongando os músculos.
– Excelente. Espero que Sandora também tenha tido êxito no norte.
– Parece que ela estava certa. Se tivéssemos trazido um contingente menor para cá, duvido muito que pudéssemos evitar a invasão, mesmo com você e o Dragão. Vencemos porque eles ficaram com as forças divididas, sem saber se atacavam a nós ou a vocês, mas com menos tropas, teríamos sido esmagados e vocês dois não conseguiriam enfrentá-los sozinhos. – O general fez uma pausa enquanto a estudava com atenção. – Você parece cansada.
– Sim, tive que gastar muita energia. O Dragão de Mesembria é muito mais humano do que pensamos. Apesar de ser absurdamente poderoso, não teria como me ajudar nesse bombardeio.
– Não é de admirar. Nem mesmo um dragão de verdade conseguiria usar tantas invocações de fogo em sequência, como você fez lá.
– A Entidade esteve comigo o tempo todo, com a bênção dela, nada é impossível.
Valena imaginava se concordaria com aquele plano maluco de Sandora se não tivesse recebido um augúrio, uma mensagem vinda diretamente da Grande Fênix, a aconselhando a seguir com aquele plano de ação.
Uma súbita comoção vinda da direção das sentinelas chamou a atenção deles. Ambos sacaram suas espadas ao verem dois soldados serem arremessados para o lado e uma criatura humanoide de pele negra e aspecto demoníaco surgir.
– Fique atrás de mim, alteza – disse Camiro.
– Não seja idiota – respondeu ela, adiantando-se. – Chame ajuda.
O monstrengo tinha chifres e um rabo pontudo, além de assustadoras garras no lugar das mãos. Usava apenas uma velha calça esfarrapada, da qual não tinha sobrado nada abaixo dos joelhos. Os olhos apresentavam um sinistro brilho avermelhado.
Ele soltou um grunhido, no qual Valena conseguiu, não sabia muito bem como, distinguir as palavras “é você”.
De forma instintiva, ela fez a invocação silenciosa de sua habilidade de aumento de força, que se completou uma fração de segundo antes da criatura fazer o primeiro ataque.
Um som de lâmina contra lâmina foi ouvido quando as garras do monstro se chocaram com sua espada. A força dele era fenomenal, muito maior do que a dela, ainda mais cansada como estava. Não havia muito o que fazer além de tentar aparar aqueles ataques e esperar que os reforços chegassem.
Aquele embate prossegui até que, em determinado momento, ela se viu encarando de perto aqueles olhos avermelhados, e viu algo dentro deles que despertou dentro de si uma sensação tão intensa que ela se viu incapaz de fazer qualquer coisa além de olhar, embasbacada, para ele.
O monstro aproveitou a hesitação dela para golpear sua mão, fazendo com que a espada voasse para longe. Ele levantava uma das garras para rasgar seu pescoço quando, subitamente, ele se viu envolvido por uma espécie de tentáculo negro.
A criatura mal teve tempo de reagir, antes de ser puxada para trás com violência, voando pelo ar até que suas costas se chocaram com toda força contra o sólido tronco de uma árvore.
Apesar da apatia causada pelas intensas emoções que sentia, Valena conseguiu distinguir, de maneira vaga, a voz de Sandora, perguntando-lhe se estava bem.
Hã? Sandora? De onde ela tinha vindo?
Confusa, Valena sacudiu a cabeça e tentou dizer que sim, estava bem, mas tudo o que conseguiu foi emitir um gemido abafado.
No entanto, ao ver a bruxa se aproximar do monstro caído, materializando em sua mão um daqueles tentáculos negros que chamava de “chicote” e se preparando para atacar, toda a letargia que havia se apossado dela desapareceu como por encanto. Então, no momento seguinte, ela estava segurando o braço da outra.
– O que está fazendo?! – Sandora reclamou. – Temos que acabar com ele antes que se recupere e volte a atacar!
Valena olhou mais uma vez para o rosto da criatura, que levava a mão à cabeça, fazendo uma careta, os olhos apertados por causa da dor.
– Eu… conheço ele.
Então o monstro olhou ao redor, com uma expressão confusa e irritada. Uma expressão da qual ela se lembrava muito bem.
– Barlone? O que houve com você?!
— Fim do capítulo 4 — | ||
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