Publicado em 27/01/2018 | ||
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5. Carta Branca
Barlone seguia por ruas escuras e vielas assustadoras. Valena já estava imaginando se ele não tinha escolhido aquele caminho de propósito, para dissuadi-la de segui-lo, quando ele adentrou um beco malcheiroso e deu leves batidas numa porta velha.
Depois de alguns minutos a madeira rangeu, quando foi empurrada por uma mulher alta, musculosa e mal-encarada, carregando o que parecia um machado de batalha preso em suas costas. Ela encarou Barlone por um momento, antes de fixar o olhar em Valena.
– Quem é ele?
Até a voz da fulana era assustadora. Por um momento, Valena pensou que a pergunta fosse dirigida a ela, mas então Barlone respondeu, não pareceu nem um pouco intimidado.
– Um amigo.
Pelo visto, vou ter que continuar fazendo papel de menino pelo resto da noite, pensou Valena.
– Isso não faz parte do acordo.
– Se eu ver que ele vai causar problemas, eu dou um jeito.
– Veja lá, não vá me causar problemas – a mulher não parecia nada convencida.
– Pode confiar em mim.
A grandalhona encarou Valena mais uma vez.
– Em você eu você eu confio, só não sei quanto a ele. Venham logo para dentro antes que alguém veja vocês.
Devido à pouca iluminação, era difícil dizer olhando o prédio pelo lado de fora, mas por dentro, o lugar era enorme, muito maior que o abrigo onde moravam. Passaram por uma espécie de cozinha, que tinha alguns caldeirões sobre o fogão e pilhas de panelas e de louça em aparadores num canto. A julgar pela quantidade de pratos, uma verdadeira multidão deveria comer ali. Valena imaginou se o lugar era um restaurante ou algo do gênero. Mas não faria sentido vir ali no meio da noite se fosse, não é?
A mulher sinalizou para que aguardassem e seguiu até a porta que dava para um corredor e olhou para os dois lados, antes de fazer sinal para que se aproximassem. Barlone fez um sinal para Valena ficar em silêncio e segui-lo. A mulher pôs uma chave na mão dele e empurrou os dois na direção de uma escadaria, sussurrando:
– Se vocês fizerem algum barulho, por menor que seja, eu vou tratar os dois como intrusos e os jogarei na rua.
Depois disso, ela se afastou.
Barlone pegou a mão de Valena e subiu pela estreita escadaria, levando-a consigo.
Ela estava cada vez mais curiosa. A julgar pelo barulho de música e risos, devia estar havendo uma festa do outro lado da parede. Por ali, estava tudo numa penumbra, uma vez que os poucos cristais de luz contínua que haviam pelas paredes eram pequenos e ineficientes. Ela acompanhou Barlone de perto enquanto passavam por diversas portas até que ele parou diante de uma delas e a abriu com a chave que tinha recebido.
A um gesto dele, Valena entrou e olhou ao redor. Ali dentro estava ainda mais escuro que no corredor. Havia um candelabro no teto, mas os cristais estavam dentro de recipientes de um tipo de vidro avermelhado, o que dava uma coloração um tanto curiosa aos móveis e paredes. Haviam alguns divãs forrados por tecido escuro, de frente para uma parede coberta por uma grossa e escura cortina.
Depois de trancar a porta, Barlone baixou o capuz e se adiantou até a cortina, lançando um olhar zombeteiro a Valena.
– Última chance de ir embora.
Sentindo-se desafiada, ela também descobriu a cabeça e sentou-se em um dos divãs, olhando para ele com o que julgava ser uma expressão tranquila e tentando ocultar a apreensão.
Ele deu um sorriso, balançando a cabeça e puxou a cortina para o lado, revelando uma parede que parecia ser feita de vidro, pois era transparente e dava uma visão e tanto da “festa” que ela tinha ouvido antes. Valena levou vários instantes até conseguir compreender a cena diante dela. Então corou violentamente e levou uma mão aos lábios.
Divertido com a reação dela, Barlone sentou-se no outro lado do divã e cruzou os braços, assistindo àquele… espetáculo com interesse, mas felizmente em silêncio. Se ele dissesse algo similar a “eu avisei” naquele momento, ela provavelmente voaria na garganta dele. O que seria inútil, pois, considerando os poderes dele, ela não teria a menor chance numa luta.
Valena soltou a respiração, que tinha prendido inconscientemente, e voltou a olhar para a frente. Numa espécie de palco, diante de uma multidão alvoroçada, uma jovem exibia seu corpo despido, realizando uma sequência impressionante de movimentos que, além de demonstrar uma enorme flexibilidade de suas juntas, ainda deixava que as pessoas ao redor apreciassem suas partes íntimas nos mínimos detalhes.
Aquela parede de vidro devia funcionar como um tipo de luneta, porque a imagem era muito próxima e amplificada, o corpo da moça parecia enorme e os gritos e assobios que Valena ouvia pareciam estar vindo de muito mais longe.
Depois de mais alguns movimentos lânguidos, a moça se endireitou, sorriu para a multidão e inclinou o tronco para a frente, numa espécie de reverência. Aquilo suscitou aplausos entusiasmados de alguns e brados frustrados de outros, que, obviamente, queriam que o espetáculo prosseguisse. Um dos rapazes da plateia se adiantou e tentou agarrar sua perna, mas a grandalhona que havia aberto a porta para Valena e Barlone se adiantou e segurou o pulso dele, falando alguma coisa em voz baixa que o fez fechar a cara e se virar, sumindo no meio da multidão.
Enquanto isso, no palco, a moça fazia mais alguns gestos de agradecimento e se afastava, desaparecendo por uma porta lateral.
Valena respirou fundo.
– Wanaagsan!
Acostumado aos praguejamentos dela, Barlone sorriu e a encarou com olhar irônico.
– Você ainda não viu nada. Acho que chegamos bem na hora, a apresentação principal vai começar daqui a pouco. Essa moça aí é uma amadora perto da que vai entrar a seguir.
– Desde… – ela limpou a garganta – desde quando você assiste a esse tipo de coisa?
– Há um tempinho.
– Mas isso… não devia ser proibido para menores?
Ele deu de ombros.
– Eu ajudei a Dariana uma vez, aí ela me deixa entrar de vez em quando.
– Dariana é a grandalhona do machado? Porque alguém como ela iria precisar de ajuda?
– Apesar da aparência, ela não é muito forte. Ela diz que, se fosse, poderia conseguir um emprego bem melhor no exército ou como mercenária. Um dia eu estava andando por aqui e vi um grupo de ladrões a cercando e batendo nela.
– E aí você colocou eles para correr?
– Mais ou menos. Depois daquilo, ela não queria que eu contasse para ninguém que tinha sido derrotada por aquele bando então…
– Então ela te colocou para dentro de um antro de perversão?
Ele riu.
– Não foi assim tão simples. No começo ela me deu comida e dinheiro, mas aí eu ensinei ela a se defender de certos ataques.
– A mesma coisa que fez comigo.
– Algo parecido. Mas escuta, você não parece muito chocada com isso – ele gesticulou na direção da parede transparente.
– Esperava que eu gritasse e saísse correndo?
– Talvez. Vai querer continuar assistindo?
Ela pensou um pouco. Tinha uma boa ideia de porque as pessoas gostavam de assistir àquele tipo de coisa, as crianças no abrigo viviam falando a respeito sempre que não tinham adultos por perto. No entanto, nunca tinha visto o corpo nu de outra pessoa antes e o clima daquele lugar e a empolgação da plateia aguçavam sua curiosidade, a vontade inata de aprender mais sobre aquele assunto proibido.
– Por que não?
– Achei que, sendo mulher, acharia isso, sei lá, nojento.
Ela ficou ainda mais corada do que já estava ao ouvir aquilo.
– Não é tão ruim.
– Promete que não vai contar para ninguém?
Valena estranhou a pergunta.
– Por que a pergunta? Duvido que alguém acreditaria se eu contasse.
– É sério. Preciso que me prometa que não vai falar para ninguém sobre nada que você vir aqui dentro.
Ela franziu o cenho, curiosa. Será que iria acontecer algo ainda pior do que vira até agora? Um arrepio de expectativa a percorreu.
– Está bem, está bem, prometo.
– Não esqueça dessa promessa. Ah, olha lá, já vai começar.
Valena olhou para o palco e viu uma jovem loira se adiantar, usando trajes semitransparentes. Algo na moça lhe parecia familiar. Inclinando-se para a frente, ela olhou com mais atenção e arregalou os olhos quando finalmente percebeu quem era.
– Então é por isso que você me fez prometer não contar nada?
– Ninguém pode saber disso.
Tratava-se de Salene, a filha de 16 anos da proprietária do abrigo, apesar de estar muito diferente de sua aparência normal. Usava um pouco de pintura labial vermelho vivo, a pele do rosto parecia macia e sem as costumeiras sardas, provavelmente cobertas por algum tipo de pó e os olhos estavam bem delineados com uma pintura escura. Os cabelos loiros, normalmente presos em coques, cascateavam soltos sobre os ombros. As parcas vestimentas que usava deixavam ver um corpo delgado, mas curvilíneo. Atraente.
Sacudindo a cabeça, ela repreendeu a si mesma. Não devia achar mulheres atraentes, afinal ela era uma mulher também. Ou, pelo menos, um dia seria.
Lançou um olhar para Barlone e viu que ele encarava a moça no palco com uma expressão fascinada. Então era mesmo verdade que meninos babavam ao verem uma mulher com pouca roupa? Valena estivera entretida demais durante a apresentação anterior e não tinha reparado na reação dele de antes. Ela sorriu ao se lembrar da expressão usual dele, tão diferente daquela.
Ele a olhou franzindo o cenho.
– O que foi?
– Você gosta disso.
– É claro que eu gosto. Eu sou menino.
Ela riu e voltou a olhar para a frente.
– Salene não é muito jovem para estar fazendo uma coisa dessas?
– Pelo que eu sei, ela está nessa vida desde os treze.
– É, ela parece ter prática. Mas me diga uma coisa: vai me fazer ficar aqui olhando enquanto você se diverte sozinho?
Ele sorriu, malicioso.
– Eles também têm dançarinos homens por aqui. E até casais que, pelo que a Dariana diz, fazem bem mais do que só dançar. Dá para ver os salões onde eles se apresentam ajustando a posição desse vidro. Quer que te mostre depois?
Ela sentiu um novo arrepio de excitação na espinha.
– Tudo bem. Mas você vai ter que assistir tudo comigo até o fim.
– Fechado.
Aquela foi uma madrugada extremamente excitante. Valena não conseguiu desgrudar os olhos dos “dançarinos” durante todas as apresentações que assistiram. Já tinha ouvido as garotas do abrigo matraquearem sobre garotos, namoro e sexo vezes sem conta, mas aquilo não a tinha preparado para observar a coisa em primeira mão. Pensou que o próprio coração fosse sair pela boca diversas vezes, enquanto apreciava cada um dos movimentos. Tinha gostado muito mais das apresentações masculinas, mas as dançarinas também tinham sido fascinantes. E quanto às apresentações de casais… bem… provavelmente aquelas cenas povoariam seus sonhos por muito tempo.
Na maior parte do tempo, Barlone parecera tão fascinado quanto ela, o que a fez se perguntar se ele realmente já tinha vindo ali tantas vezes quanto dera a entender. Seria normal esperar que ela se sentisse constrangida ao ficar olhando aquelas apresentações ao lado de um menino, mas ao invés disso, sentia-se muito à vontade, apesar do rosto corado e do coração acelerado. Várias vezes no decorrer da noite os olhos de ambos se encontraram e eles trocaram sorrisos cúmplices antes de voltarem a olhar para o vidro.
Inúmeros sentimentos passaram pelo peito dela, enquanto o mundo parecia ter se resumido àquele lugar, como se nada mais existisse. Como se nada mais precisasse existir.
Ela não saberia dizer há quanto tempo estavam ali, entretidos, quando a porta subitamente foi aberta e Dariana apareceu.
– O que vocês dois ainda estão fazendo aqui? Já deveriam ter ido embora e… – ela se interrompeu ao olhar para Valena. – Você não é um menino!
Valena sentiu uma enorme e surpreendente onda de frustração pela interrupção, mas isso não a impediu de notar um estranho tom de decepção na voz da outra. Sem dizer nada, voltou a cobrir a cabeça com o capuz e se levantou, enquanto Barlone fechava a cortina.
Os dois então seguiram a grandalhona escadaria abaixo. Entravam na cozinha, quando foram surpreendidos por uma cena inusitada. A garota chamada Salene, de volta às roupas velhas e largas que costumava usar no abrigo, estava sentada em uma cadeira, com uma expressão assustada no rosto e as mãos amarradas às costas. Diante dela, havia um soldado do império, envergando um uniforme novo, espada na cintura e com os braços cruzados.
Dariana olhou para o rapaz e arregalou os olhos.
– Você! Achei que eu tinha te colocado para fora daqui! O que pensa que está fazendo?
O rapaz sorriu, presunçoso, e apontou para a insígnia no peito.
– Assuntos oficiais. A propósito, você está presa por exploração indecente de menores. Trazer crianças para dentro de um lugar como este? Quem diria, hein? Agora fique quietinha que vamos todos para o posto militar.
Salene se mexeu na cadeira.
– Ei, vai me soltar ou não?
Dariana olhou para a outra, furiosa.
– Você contou para ele?!
– Contei sim, sua pervertida! Não aguento mais ver você se aproximando de garotos querendo se aproveitar deles! E bem debaixo do nariz de todo mundo!
O soldado olhou para Salene.
– Não acho que você está em condições de condenar ninguém, então acho melhor ficar quieta. O que você faz aqui também é ilegal.
– Nunca vi você reclamar disso quando está na plateia me assistindo!
– Assistir não é contra a lei – ele apontou para Barlone e Valena. – Então quer dizer que esses pirralhos são do abrigo da sua mãe, hein? Que interessante. Finalmente temos evidências suficientes para fechar aquele lugar.
Dariana desprendeu o machado das costas enquanto jogava uma outra chave para Barlone.
– Caiam fora daqui.
Ele não perdeu tempo, agarrando Valena pelo braço e correndo na direção da porta. Ela o acompanhou sem reclamar, enquanto ouvia o assustador barulho de lâminas se chocando, acompanhados por insultos e xingamentos.
Assim que ele conseguiu abrir a porta, os dois saíram, apressados, apenas para topar com dois outros soldados que estavam de guarda no beco.
Valena se imobilizou no lugar, sem saber o que fazer, mas Barlone rapidamente a puxou para um canto, enquanto um dos oficiais se adiantava e entrava pela porta, aparentemente sem vê-los ali. Então o garoto correu na direção da rua, levando-a com ele, ambos passando diante do outro soldado, que os ignorou completamente.
Ambos correram pelas ruas escuras até não aguentarem mais e terem que parar para recuperar o fôlego.
– Por que… aqueles guardas… não prenderam a gente?
Barlone levou a mão à testa, respirando pesadamente.
– Eu… bloqueei nossa presença deles.
– Quer dizer… que você nos deixou invisíveis?
– Não é bem isso – ele se inclinou, apoiando as mãos nas coxas e suspirando. – Droga, estou exausto. Temos que achar um lugar para descansar.
– Vamos voltar para o abrigo.
– Não! Você ouviu, não ouviu? Eles vão fechar aquele lugar. Se formos para lá, vão nos pegar.
– Mas não fizemos nada!
– Sim, por isso não vão nos mandar para a masmorra, mas provavelmente vão nos colocar em alguma fazenda corretiva, onde são feitos trabalhos forçados.
– Isso é horrível! Mas por que fechariam o abrigo?
– Por que as pessoas que trabalham lá cometem crimes. Vai dizer que nunca percebeu nada de errado com os adultos?
– Quer dizer que estamos…?
Ele apenas assentiu.
E foi assim que Valena foi, mas uma vez, privada de sua casa e de seus amigos. Se bem que, além de Barlone, não tinha mais ninguém lá de quem realmente gostasse. Mas, de qualquer forma, aquilo era tudo o que ela tinha, e agora estava na rua, sem nada além da roupa do corpo. E ainda sendo procurada pelo exército.
♦ ♦ ♦
Em sua forma humana, Daimar Gretel, o Dragão de Mesembria, não era nem um pouco assustador. Era quase tão jovem quanto a esposa, devia estar no começo da casa dos vinte. Tinha cabelos negros, olhos castanho claros e uma pele saudavelmente bronzeada. O que chamava a atenção nele era a armadura que usava, que parecia mais uma segunda pele, feita de um material parecido com escamas.
Normalmente, Valena apreciaria aquele porte físico, mas hoje estava preocupada demais com outras coisas para se importar com a aparência de algum cara, por mais bonito que ele pudesse ser.
Claro que ainda havia o fato do bonitão ser casado. Cariele Asmund andava ao lado dele e os dois pareciam se comportar como se um fosse a extensão do outro. Raramente trocavam palavras ou olhares, mas se entendiam de uma maneira tão simples e tão intensa que ocasionalmente um chegava a completar uma frase que o outro iniciava.
– Então a estratégia da cunha funcionou? – Valena perguntou, olhando para a esposa do Dragão, que continuava usando aquele manto com o capuz puxado até quase cobrir os olhos. – Vocês avançaram pelo meio das tropas inimigas até chegarem ao comandante?
Cariele deu de ombros.
– Com a equipe que você enviou, o trabalho foi bem mais simples do que imaginei. Infelizmente, aquele artefato de proteção foi completamente destruído na luta. Era uma relíquia admirável, muito bem construída e, praticamente, insubstituível.
Valena tinha suas dúvidas se algum artefato místico realmente poderia ser considerado “insubstituível”, principalmente tendo alguém engenhoso como Sandora por perto.
Ela olhou para o tronco de árvore a alguma distância deles, onde o conselheiro Radal estava amarrado, com vários soldados de guarda ao redor.
– E vocês vão nos deixar ficar com a guarda daquele fret? Quero dizer, daquele traste?
– Não estamos dispostos a tirar a vida dele – disse o Dragão. – E é bem possível que os outros conselheiros queiram tentar libertá-lo. Se você quiser ficar com ele mesmo assim, é todo seu.
– Se quiserem me desafiar, que tentem. Estou louca para acertar as contas com cada um deles.
Cariele a olhou com atenção.
– Você está bem? Tem certeza que não foi ferida por aquele monstro?
– Ele não é um monstro. Mas não precisa se preocupar, ele não me atingiu. Sandora o tirou de combate bem na hora.
O Dragão levou uma mão ao queixo, pensativo.
– A descrição que me fizeram dele me lembrou de criaturas que foram avistadas em Atalia, antes da cidade ser destruída.
– Sim – disse Valena, suspirando. – Sandora me contou essa história. Ela também acha que esse mesmo indivíduo foi o responsável pela morte de um alto oficial do exército, antes da fragmentação do império.
– Se for esse o caso, ele pode ter sido enviado com a missão específica de dar cabo de você – concluiu Cariele. – Melhor tomar cuidado.
– Não se preocupe, estamos voltando para Verídia imediatamente. Temos que cuidar do funeral daqueles que morreram aqui, eles precisam das devidas homenagens, e também temos que cuidar de suas famílias. Além disso, quero começar o interrogatório daquele… conselheiro, assim que possível. – Valena não tinha certeza de porque se dava ao trabalho de evitar usar seus xingamentos na frente do Dragão. Nunca tivera esse tipo de preocupação antes com ninguém, nem mesmo com o falecido imperador. – Imagino que vocês também tenham muito o que fazer, então, se me derem licença…
Ela começava a se afastar quando o Dragão perguntou:
– Espere, você vai embora assim?
Valena parou e olhou para ele, franzindo o cenho.
– “Assim”, como?
– Achamos que você quisesse fazer algum tipo de negociação – a esposa do Dragão respondeu por ele. – Não é esse o seu objetivo? Reanexar todas as antigas províncias ao império, incluindo Mesembria?
Valena pensou por um instante.
– Minha prioridade é acabar com aquela corja – ela apontou o dedo na direção do conselheiro. – Acredito que grande parte das províncias esteja sendo controlada por eles contra a vontade do povo. Depois que eles forem devidamente neutralizados, as coisas irão se ajeitar.
O Dragão sorriu.
– Está falando isso para tentar ser diplomática?
Valena olhou para ele, séria.
– Não entendo quase nada desse negócio de “diplomacia”. As coisas que eu digo que vou fazer, eu faço, e pronto. Odeio aquele tipo de conversa onde você tem que ficar fazendo rodeios o tempo todo para tentar não ofender a outra pessoa. Se alguém tem algo contra mim, ou se eu fiz algo de errado, prefiro que me falem na cara dura.
– Esse é um ponto de vista bastante interessante.
– Ah, eu já ia me esquecendo – disse Valena. – Poderiam liberar a ponte para podermos voltar para Aurora?
Cariele sacudiu a cabeça.
– Não acho que seja necessário. Fale com sua amiga Sandora, ela já conhece a configuração que usamos nas nossas pontes de vento e parece ser capaz de ativá-las com surpreendente facilidade.
– É, ela é bastante hábil com esse tipo de coisa. Talvez vocês devam mudar a configuração para algo mais complicado.
– Não achamos que seja necessário.
Valena franziu o cenho e encarou a outra.
– Está nos dando livre acesso a seu país?
– Quando invadi o seu, fui muito bem recebida.
– Vou falar com franqueza, alteza – disse o Dragão. – Acho que você é muito jovem para esse cargo. Mas não me leve a mal, porque mesmo sendo alguns anos mais velho, eu também me acho muito jovem para esse tipo de coisa. Governar um país é algo que exige muita disciplina e responsabilidade. No meu caso, eu assumi porque não havia outra escolha. Os conselheiros queriam instituir políticas que transformariam nossos cidadãos em escravos e, modéstia à parte, não havia ninguém tão popular quanto eu na época por causa de toda aquela história de “Dragão de Lassam”. O meu ponto é que esse cargo pode exigir demais de qualquer um. Recomendo que não tente resolver tudo sozinha. Você tem aliados impressionantes, faça bom uso deles. E, se tiver algo que esteja a nosso alcance, sabe como nos encontrar.
– Muito gentil de sua parte.
– Fizemos essa mesma oferta à sua amiga Sandora, e ela aceitou.
Aquilo deixou Valena curiosa, mas preferiu deixar o assunto para depois.
– É mesmo? Então, só para ter certeza: vocês estão me dando carta branca para usar os recursos de vocês quando eu precisar?
– Desde que possamos contar com sua ajuda quando formos atacados de novo.
♦ ♦ ♦
Depois que Valena se afastou, Alvor Sigournei e Loren Giorane se aproximaram, sorridentes.
– Foi muito bom ver vocês dois de novo – disse o aspirante. – O casamento parece ter feito muito bem a ambos.
Cariele sorriu.
– Obrigada. E vocês continuam fazendo amigos incomuns.
– Esse é o nosso trabalho – respondeu a ruiva. – Como vai sua filha?
– Provavelmente vai transformar a vida da governanta num inferno se não voltarmos logo para casa – brincou Daimar. – E quanto a vocês dois? Achamos que voltariam para suas províncias de origem quando o império foi dividido.
– Nossa terra natal é o império, não uma província específica – disse Alvor. – Além disso, nosso trabalho atual é muito satisfatório, não é mesmo, ruiva?
– Com certeza – respondeu Loren. – E se eu tivesse voltado para a Sidéria, teria sido mandada para lutar contra vocês hoje, então estou feliz por estar deste lado da fronteira.
Daimar assentiu.
– É bom ver que está tudo bem com vocês. Pena que toda vez que nos encontramos seja em circunstâncias complicadas como esta.
Alvor riu.
– Que tal colocarmos esse país nos eixos de novo? Aí poderemos relaxar um pouco e tomar uma cerveja.
– Seria ótimo – disse Cariele, antes de ficar séria e fazer um gesto na direção de Valena, que conversava com o general Camiro em meio a uma intensa movimentação no acampamento militar. – Aspirante, o que acha dela?
Alvor avaliou a imperatriz por alguns segundos.
– Sabem que, por razões éticas, qualquer coisa que eu contar a vocês, precisarei reportar a ela, não?
Daimar assentiu novamente.
– É justo.
– Em minha opinião, ela ainda é muito jovem e inexperiente, mas tem muito potencial.
– Também é muito poderosa – comentou Daimar, franzindo o cenho. – Eu nunca seria capaz de parar um exército inteiro daquela forma, se estivesse sozinho. Ela conseguiu lançar mais conjurações em uma hora do que eu em toda a minha vida.
– Falou bonito, para quem ganhou poderes há tão pouco tempo – alfinetou Cariele, fazendo com que todos rissem.
– Como todos os imperadores antes dela, Valena tem o poder da Fênix, então não é de se surpreender – disse Alvor. – Mas pelo que eu vi até agora, eu diria que ela não representa nenhuma ameaça a pessoas de bem, pois usa esse poder apenas quando é realmente necessário. A propósito, senhor Gretel, pelo que andei ouvindo, senhor Gretel, sua popularidade aumentou muito hoje. Apesar de ter sido ela lançando as bolas de fogo, você era o dragão, então foi você que as pessoas viram, muito mais do que ela. Nossos inimigos irão pensar duas vezes antes de voltar a atacar Mesembria.
– Valena me pareceu um pouco tensa – comentou Daimar. – Talvez o cargo esteja exigindo muito dela.
– Não se preocupe, ela aguenta o tranco – respondeu Alvor. – Tem muitas pessoas de confiança a apoiando.
Daimar voltou a assentir.
– Contamos com você, aspirante, para nos contatar em qualquer eventualidade. Sabe como nos encontrar.
♦ ♦ ♦
No dia seguinte, Valena encontrou Sandora sentada atrás de uma mesa rústica ao lado da entrada para o calabouço.
– O que está fazendo aqui?
Sandora levantou os olhos do livro que estava lendo e se espreguiçou, soltou um grande bocejo.
– Eu posso ler em qualquer lugar, então decidi fazer isso aqui, assim posso garantir que nossos prisioneiros não vão causar problemas.
Notando um movimento do outro lado do cômodo, Valena olhou para lá e viu Gram, sentado no chão enquanto calmamente entalhava alguma coisa num pequeno bloco de madeira com um cinzel.
– Ele pode estar com uma aparência diferente, mas continua me dando arrepios.
– É ela, não ele. E ela entende o que falamos, então é melhor não ser grosseira.
Valena engoliu em seco.
– Desculpe. Mas, como assim, “ela”? Como você…?
Sandora deu de ombros.
– Eu preciso usar meus poderes de cura periodicamente para reparar o corpo dela e evitar que se deteriore. Numa dessas ocasiões eu a vi sem as roupas.
Aparentemente sem se importar com a conversa das duas, Gram continuava trabalhando na madeira. Valena lançou um longo olhar para a criatura. De certa forma, saber que se tratava de uma mulher, ou melhor, de alguma coisa do sexo feminino, tornava a imagem daquele ser um pouco menos assustadora.
Então Valena percebeu que não tinha mais ninguém por perto.
– Você está guardando a masmorra sozinha? Onde estão os nasiib daro daqueles guardas?
– Lá dentro. Estão fazendo a ronda pelas celas.
– Certo – Valena avaliou a outra por um instante. – Escute, tem certeza de que deveria ter se esforçando tanto ontem? Ainda mais nesse estado. E esses prisioneiros podem ser perigosos, talvez fosse melhor ficar longe daqui.
– Estou bem. E aquele monstro é o assassino do capitão Joanson. Se nem um membro da antiga Guarda Imperial conseguiu derrotá-lo, tenho minhas dúvidas de que qualquer um de nós teria chance. Não podemos nos descuidar.
– Me pareceu que você conseguiu colocar ele para dormir com muita facilidade.
– Aquilo foi um golpe de sorte.
– Sei. Mudando de assunto, o Dragão me disse que ofereceu algum tipo de ajuda a você. Do que se trata?
Sandora suspirou.
– A esposa dele montou uma equipe de sábios e curandeiros para pesquisar sobre gravidez e parto. Ela disse que a mãe dela morreu ao dar à luz e que viu alguém próximo a ela falecer da mesma forma. Então me lembrei que minha mãe também pereceu assim e que a de Evander nunca mais conseguiu se recuperar plenamente depois do nascimento dele. – Sandora levou a mão ao ventre. – Meu filho é um espírito itinerante, assim como eu e Evander. Existe a possibilidade de que eu venha a ter o mesmo destino de minha mãe.
– Sua mãe morreu porque Donovan era um tuugada de um açougueiro sanguinário. É provável que essa história de ser itinerante nem tenha relação com isso.
– Preciso ter certeza. Havia muitas outras mulheres nas mesmas condições que minha mãe, Valena. De todas elas, só duas sobreviveram até o momento do parto. E quando a mãe morre assim, o bebê se vai junto com ela. Não posso ignorar isso. Cariele Asmund se ofereceu para fazer alguns exames em mim.
– Entendo. Talvez seja mesmo uma boa ideia.
Sandora encarou Valena com atenção.
– O que há com você? Não é de seu feitio ficar puxando conversa dessa forma.
– Só estava curiosa – Valena se adiantou e abriu a pesada porta de madeira. – Vou conversar com os prisioneiros.
– Sozinha?
– Sim, por quê? Acha que não dou conta?
Com isso, Valena entrou no corredor úmido, fechando novamente a porta atrás de si, e marchou pelo pequeno labirinto de corredores cheios de portas de celas de ambos os lados. Ao chegar em uma cela específica, ela respirou fundo e olhou através das grades de metal que bloqueavam o buraco quadrado na porta.
O demônio não estava mais ali. Ao invés dele, ela encontrou um rapaz mais ou menos de sua idade, com pele morena e cabelos longos bem escuros, sendo suas sobrancelhas no mesmo tom. Usava apenas a calça, tão danificada que se parecia mais um calção de dormir, e que parecia muito larga para ele. Seu corpo era muito musculoso e atlético, com coxas grossas e tonificadas e um abdômen invejavelmente definido.
Agarrado em uma viga do teto com as duas mãos, ele levantava e abaixava o corpo ritmicamente, apenas com a força dos braços musculosos. Ao notar a presença dela, ele soltou a viga, pousando no chão quase sem nenhum ruído. Jogando para trás o cabelo, ele a encarou, com um leve toque de ironia em sua expressão.
– Princesa.
Sua voz era grave, rouca, profunda.
– Barlone! Achei que você estava morto!
Ele franziu o cenho.
– Errado. Nome é Valdimor.
– Você não lembra de mim? Sou eu, Valena!
– Princesa de Verídia. Alvo.
– “Alvo”? Que história é essa? O que fizeram com você?
Ele inclinou a cabeça para o lado.
– Princesa estúpida?
Valena ficou embasbacada com aquilo, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, sentiu uma mão em seu ombro e quase deu um pulo de susto. Voltou-se rapidamente e topou com Sandora. De onde ela tinha vindo? Há quanto tempo estaria ali?
– Não adianta, ele provavelmente não conhece você, ou pelo menos não a reconhece.
Ao ouvir a voz de Sandora, o homem na cela soltou um urro e se abaixou, batendo violentamente no chão com os punhos. Em poucos segundos, tinha voltado a ser o demônio de antes, com pele negra, garras, chifres e aquela cauda pontuda. Ele se endireitou devagar, soltando um rosnado.
Valena ficou desconsolada.
– Qeylinta! Como ele ficou assim?!
– Nós o interrogamos durante horas, sem nenhum progresso. Facilitaria muito as coisas se você autorizasse o uso do encanto da verdade. Aliás, estou surpresa por ele ter dirigindo a palavra a você na forma humana. Sempre que eu, Gram ou qualquer um dos guardas se aproxima ele fica desse jeito aí.
Dentro da cela, o monstro olhava para elas com raiva. Valena sentiu uma angústia insuportável.
– Sandora, por favor, você vai me ajudar, não vai? Temos que fazer com que ele volte ao normal!
– Não estou certa de que ele seja quem você está pensando.
– Ele é meu amigo de infância! Eu sei que é!
– Princesa estúpida – disse o monstro, com um sorriso assustador, exibindo fileiras de dentes pontiagudos. – Fazer gritar muito depois quebrar pescoço.
O tom de ameaça era inequívoco. Valena engoliu em seco, instintivamente levando a mão à própria garganta.
— Fim do capítulo 5 — | ||
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