Publicado em 18/02/2018 | ||
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7. Presença de Espírito
Tomada por uma sensação de letargia e pela irracional esperança de que Barlone miraculosamente mudasse de ideia e voltasse, Valena tinha deitado no chão e passado ali a noite inteira. Levou bastante tempo, mas ela acabou dormindo um sonho agitado e cheio de pesadelos.
A sensação de solidão era esmagadora.
O sol nascia quando ela acordou de mais um sonho ruim e desistiu de tentar voltar a dormir. Tinha que sair dali. Sem Barlone aquele lugar não significava nada para ela além de sofrimento. Depois de juntar as poucas coisas que tinha, partiu daquela casa velha caindo aos pedaços, com intenção de nunca mais voltar.
Mas, e agora? O que faria em seguida? As moedas que ele deixou com ela davam apenas para comprar comida durante uns poucos dias, e o dinheiro que ela própria tinha juntado dava para ainda menos. Andou a esmo pela cidade por bastante tempo até que se viu no lugar conhecido como “a Praça da Ponte”.
O lugar estava movimentado, com filas de pessoas aguardando a vez para usarem as pontes de vento e assim viajarem instantaneamente para onde quisessem, ou, pelo menos, para onde seu dinheiro permitisse, já que os pergaminhos, necessários para ativar as pontes, não eram exatamente baratos, principalmente se a viagem fosse muito longa.
Um tanto indecisa, ela acabou entrando na porta ao lado de uma discreta placa com a palavra “alquimia” em caracteres rebuscados. Foi atendida por um senhor grisalho que tinha uma enorme barba branca.
– Olá mocinha. Procurando por alguma coisa?
– Eu… sou amiga do Barlone…
A expressão do homem se iluminou.
– Oh, sim, claro. Precisa pegar uma ponte, certo? Vou providenciar um pergaminho para você. Já sabe para onde quer ir?
Valena olhou nos olhos dele. O homem parecia sincero.
– Posso ir para onde quiser? Até mesmo para Halias? Ou para a Sidéria?
O alquimista coçou a barba, parecendo um pouco preocupado por um instante, mas logo voltou a sorrir.
– Sim, claro, pode ir para onde quiser.
– Mas não é muito caro?
– Não se preocupe, eu dou um jeito. Trato é trato.
Ela sentiu um frio na barriga. Por alguma razão, aquilo não parecia certo.
– Por que esses pergaminhos são caros?
– Oh, é que, quanto maior a distância, mais runas precisam ser fixadas neles para traçar a rota. E cada runa precisa de uma certa quantidade de materiais especiais para ser devidamente incorporada. Algumas dessas coisas são bem difíceis de conseguir, então precisamos aumentar o preço, senão não conseguiríamos manter a loja funcionando.
– Eu não tenho dinheiro.
– Não se preocupe, seu pergaminho é por minha conta.
– Mas o senhor tem esses materiais de sobra aí?
– Não exatamente, mas como é um pergaminho só, eu consigo repor o que eu gastar em algum tempo.
Aquilo estava soando cada vez pior para ela.
– Quanto tempo?
– Para Halias, talvez um mês ou dois. Para a Sidéria pode demorar um pouco mais.
De repente, Valena sentiu um gosto amargo na boca. Se era daquela forma que Barione se sentia quando usava seus poderes para manipular alguém, não era à toa que ele tinha decidido dar um fim naquilo.
– Obrigada, mas eu mudei de ideia.
Ele pareceu confuso.
– Mas como assim? Pensei que essa viagem fosse muito importante, uma situação de vida ou morte. Se não quer usar a ponte, posso providenciar uma carroça para você, e talvez contratar um guarda-costas, afinal as estradas são bem perigosas.
– Eu não devia ter vindo aqui. Me desculpe, eu vou embora.
O homem a segurou pelo braço quando ela se virou para a porta.
– Por favor me deixe ajudar você!
– Que tipo de ajuda?
– Eu não sei. Qualquer coisa! Pode pedir o que quiser!
Ela pensou um pouco.
– Pode esquecer de Barlone e de tudo o que ele pediu para que você fizesse?
– Mas por quê?
Como ela poderia convencer esse velho teimoso?
– É para o bem dele e para o meu. Ninguém pode saber que estivemos aqui. – Ela tinha que inventar alguma coisa, um motivo que parecesse sério o suficiente para aquele qeylinta parar de fazer perguntas. –Estaria salvando a minha vida se fizesse isso.
O homem arregalou os olhos.
– Pela Fênix! O que está acontecendo? Escute, eu conheço algumas pessoas, se me contar seu problema, posso conseguir proteção e…
Ela estava se complicando cada vez mais. Por que culvert, decidira entrar ali, afinal?
– Não! Wanaagsan! Pare com isso!
– Mas eu…
– Não posso contar, está bem? Tudo o que eu preciso é que o senhor mantenha essa jahwareer dessa boca fechada! Preciso que esqueça que estive aqui! Não entende? Isso é importante!
– Mas você…
Apenas cale essa aragti dessa matraca, seu koofiyada qoyan!
– Mas nada! Eu posso me virar sozinha, mas não se não tiver certeza que o senhor pode esquecer que eu estive aqui! E o Barlone também! Ninguém pode saber disso!
– Claro, se é isso que você realmente quer, eu posso…
– Ótimo! Adeus!
♦ ♦ ♦
Valena se afastou da praça da ponte, apressada. Não queria depender de ninguém. Não iria depender de ninguém. Se fosse para sair da cidade, arranjaria um jeito de fazer isso por mérito próprio, não se aproveitando de um velho senhor hipnotizado.
Ao menos, aquela conversa tinha servido para espantar sua apatia. Agora se sentia determinada a tomar alguma atitude, apesar de não ter decidido ainda o que fazer.
Ela entrava novamente nas vizinhanças de onde havia morado nas últimas semanas quando subitamente percebeu que estava sendo seguida. Com o coração disparado, notou que se tratava de um dos membros da gangue que controlava o submundo da região. Conhecia bem aquele indivíduo em particular, uma vez que já o tinha encontrado várias vezes, mas nunca tivera que lidar com aquele isha maskaxda sozinha.
Valena acreditava que, em plena luz do dia, aquele cara não teria como lhe fazer nenhum mal. Na verdade, ele provavelmente nem se aproximaria dela enquanto estivesse andando por ruas movimentadas. Mas, no estado de espírito em que ela se encontrava, fugir estava fora de cogitação, só queria saber logo do que se tratava e acabar com aquilo e que a cautela fosse à qallooac.
Tomando uma rua lateral pouco usada, ela chegou até uma região com construções sujas e malconservadas. Era incrível como uma pobreza tão grande podia existir tão perto de um local tão desenvolvido e movimentado.
Entrando pelo caminho lateral de uma construção velha e decadente, ela chegou até o gramado alto e cheio de ervas daninhas que ficava nos fundos. Uma cerca de tábuas de madeira apodrecidas contornava o local. Montes de lixo nos cantos denunciavam a presença constante de gente por ali, apesar de não haver ninguém no momento.
Com o coração batendo, acelerado, Valena parou no meio da grama judiada e esperou. Tinha consciência de que estava se arriscando, colocando-se em um território que não lhe era muito familiar, mas no momento sentia-se como se não tivesse nada a perder. Barlone lhe tomara tudo o que lhe importava quando partiu. Além disso, estava cansada. Se queriam alguma coisa com ela, era melhor resolver aquilo logo.
Então o loiro alto e mal-encarado aproximou-se, vindo pelo mesmo caminho por onde ela tinha entrado.
O jahwareer se chamava Teorus, que era um nome bastante incomum, diga-se de passagem, de origem de uma das ilhas menores do arquipélago de Halias, pelo que Barlone havia lhe contado. O formato dos olhos dele, levemente puxados nos cantos, também denunciava sua ascendência, bem como o tom de pele levemente amarelado. Tinha diversas cicatrizes no rosto, um nariz que parecia ter sido quebrado várias vezes e uma boca com lábios finos, levemente repuxados para a direita. Não devia ter mais do que 15 anos, apesar do olhar atento e perspicaz que fazia com que parecesse um adulto. Um adulto sacana e sádico.
– Está perdida, garotinha?
A voz dele era anasalada, provavelmente devido à deformidade nos ossos do nariz.
– O que você quer?
– Onde está seu namoradinho?
– Não te interessa.
Com um sorriso intimidador, ele se aproximou até ficar a um metro de distância dela e cruzou os braços.
– Olha só, falando grosso, quem diria. Não sabe que, se começar a me desagradar, vai ficar sem ter onde morar?
– Não quero mais aquela casa, pode ficar com ela.
– É mesmo? Por acaso o moleque enfezado foi preso pelos guardas? – Ao vê-la se mexer, desconfortável, ele sorriu, zombeteiro. – Ah, que pena, então você está sozinha no mundo agora?
Ela fez menção de se afastar.
– Se não vai falar o que você quer, eu vou embora.
– Um momentinho aí – ele a segurou pelo braço. – Sabe que não duraria nem um dia sozinha nessas ruas, não é?
Ela sentiu o olhar dele pelo seu corpo, e a sensação que a percorreu não foi nem um pouco parecida com a que Barlone a fazia sentir. Ao invés do calor e da expectativa que lhe eram familiares, o que a envolveu foi apenas apreensão e desconforto.
– Por que não fala logo por que está aqui, seu qosol badan?
♦ ♦ ♦
Um assalto. Era para isso que ele queria a ajuda dela. Na verdade, quem ele realmente queria era Barlone, mas se ele não estava disponível, Valena serviria.
A gangue estava bem menor do que ela se lembrava, e Teorus estava mancando um pouco, o que a fez concluir que haviam entrado em algum tipo de confronto. Com outra gangue, talvez? Ou teria sido com o exército?
Mas não importava.
Pelo que Barlone havia contado a respeito daquelas gangues, ela sabia que não podia confiar em pessoas como Teorus, mas lhe pareceu mais seguro fazer logo o que ele queria do que tentar fugir dele. As promessas de dinheiro e comida até eram tentadoras, mas não dava para confiar nas palavras de um líder de gangue traiçoeiro, então ela planejou cair fora assim que tivesse uma oportunidade.
O “trabalho” consistia em se apropriarem da carga de uma carroça que carregava itens a serem vendidos no mercado negro. Não parecia tão errado roubar quando a vítima era um criminoso, não é? De qualquer forma, a carroça vinha por uma estrada secundária pouco usada e não patrulhada, de forma a não chamar a atenção de oficiais do exército.
O plano era assustar os cavalos criando construtos místicos na forma de cobras, coisa que um dos membros da gangue conseguia fazer, apesar de que com pouca competência. Depois bastaria render o condutor, que estaria sozinho, e se apropriar da carga.
Teorus não revelou como ficou sabendo da existência daquele carregamento, mas Valena não se importou. Estava com coisas demais na cabeça e tudo estava acontecendo rápido demais para ela absorver.
Previsivelmente, quase todo o plano deu errado. No fim das contas, o condutor, mesmo sozinho, acabou dando uma surra em quase todos eles, e só não deu fim a suas vidas porque Valena conseguiu se esgueirar até a carroça enquanto ele estava distraído com os outros, e arremessou contra ele alguns potes de vidro que encontrou ali.
Quando um dos recipientes se quebrou, liberou um pó escuro e malcheiroso, que fez com que o homem sentisse terríveis coceiras. Assim, Teorus e os outros conseguiram golpeá-lo na cabeça e, assim, encerrar aquela luta.
Muito mais tarde, a gangue se reuniu para fazer uma comemoração e para dividirem o dinheiro que conseguiram pela carga da carroça. Valena ficou um pouco surpresa com a parte que recebeu. Levaria meses, talvez anos, para conseguir todo aquele dinheiro como mera ajudante de ferreiro. E a parte dela, por ser uma novata, era muito menor do que a dos outros, o que levava a concluir que aquele tipo de “trabalho” era muito lucrativo.
Ela olhou para aqueles jovens, todos sem família e sem um lugar para chamar de lar, assim como ela, e imaginou se era esta a vida que estava condenada a viver para sempre.
♦ ♦ ♦
Era um túmulo simples, uma singela homenagem a uma filha e irmã muito querida, mas de origem humilde. Algum artista com mais entusiasmo do que talento havia esculpido a imagem de um pássaro de asas abertas na pedra, provavelmente na intenção de retratar a Grande Fênix, mas criando algo um tanto amorfo e estranho.
Iseo Nistano colocou uma pequena rocha no chão, a cerca de um metro de distância da lápide e concentrou-se, reunindo sua energia espiritual. Em seguida, desferiu um poderoso golpe com seu martelo de batalha, estilhaçando a pedra em inúmeros pedaços e lançando pedriscos e poeira para todos os lados.
Em seguida, ele encostou o martelo no peito e fez uma leve reverência na direção da sepultura, antes de voltar a prender a arma no cinturão e se virar para ir embora.
Então notou a aproximação de Evander Nostarius.
– Aspirante Nistano – saudou o recém-chegado, com um sorriso cortês.
Iseo chegou a levantar instintivamente o braço direito para prestar continência, mas então se lembrou que Evander havia sofrido uma traição imperdoável por parte do exército e que se recusara a reassumir sua antiga patente de tenente por causa daquilo.
– Bom dia – ele acabou dizendo, sem saber direito o que fazer.
O contraste entre os dois era grande. Iseo era alto e encorpado, tinha pele morena, cabelos e olhos negros. Já Evander, além de ser pelo menos uns cinco anos mais jovem, tinha pele branca, cabelos loiros e olhos castanho claros.
O ex tenente fez um gesto na direção do túmulo, que não passava de uma rocha solitária em meio ao chão gramado de uma clareira no meio da floresta.
– Ouvi dizer que vocês dois estavam envolvidos.
Iseo desviou o olhar.
– Imagino que não seria mentira se alguém afirmasse isso.
Evander assentiu e se aproximou, olhando para a rocha esmagada no chão. Havia indícios ao redor de que não era a primeira vez que alguém fazia aquilo.
– Quebrar pedras é algum tipo de tradição por aqui?
– Para a família dela parece que é, sim. Como deve saber, ela vem de uma longa linhagem de mineiros. No entanto, Indra sempre achou esse costume ridículo e precisava esconder o riso quando via alguém batendo em pedras para homenagear os mortos.
– Então você está repetindo um gesto que provavelmente a faria cair na risada?
Iseo deu de ombros.
– Saber que ela pode estar se divertindo comigo, onde quer que esteja… bem, não é uma sensação ruim, se sabe o que quero dizer.
Evander sorriu e assentiu, mas logo voltou a encarar o outro, sério.
– Eu me pergunto se você não estaria interessado em ir à desforra por eu a ter matado.
O aspirante levantou os olhos arregalados para ele.
– Mas não foi você quem a matou!
– Eu sabia o que ia acontecer. Não pensei que fosse ocorrer com ela, mas tinha certeza que haveriam vítimas. Então é a mesma coisa.
– Você salvou muitas vidas aquele dia, incluindo a minha. – Iseo apontou para o túmulo humilde. – Além disso, ela nunca me perdoaria se eu levantasse uma arma contra você. Ela sempre disse que você era o melhor amigo que alguém poderia ter, que a tratava como igual, mesmo ela não tendo um décimo da competência que você tem.
Ambos ficaram calados por um longo momento, encarando a lápide, até que Evander decidiu perguntar:
– Acha que eu deveria voltar ao exército?
– Eu acho que você pode fazer o que quiser. Indra acreditava que você nunca pararia de lutar pelo que acha certo, e que provavelmente sua vida seria uma batalha atrás de outra, até o fim de sua vida.
– Às vezes parece que ela me conhecia melhor do que eu mesmo.
– Esse era um dos pontos fortes dela, aparentemente – Iseo deu uma última olhada naquele patético pássaro esculpido na pedra. Indra provavelmente acharia hilária uma escultura como aquela em uma sepultura, inclusive, aquela devia ter sido a razão principal para seus familiares a terem escolhido. O bom humor dela com certeza tinha sido herança de família. – De qualquer forma, minha opinião não é realmente relevante, é? Você parece já ter decidido o que quer fazer.
– Sua opinião é muito importante, só o fato dela ter se interessado por você já diz muita coisa a seu respeito, pelo menos para mim.
– Fico contente que pense assim, mas ela não gostaria nada de saber que estamos parados aqui, conversando sobre ela.
– Tem razão.
– Sabe o que ela sempre fazia quando eu recebia uma missão perigosa? Ela repetia um antigo poema: “o futuro se faz agora, e cada erro é uma vitória, pois a derrota não existe; não há conquista sem labuta, a vida é uma infinita luta onde só perde quem desiste”. É o que ela diria para você também. Te vejo por aí.
Evander levou dois dedos à testa, antes de incliná-los para a frente, na direção do aspirante, num gesto informal de despedida. Iseo virou-se e marchou para a trilha na floresta.
Voltando-se para a sepultura, Evander prestou uma continência formal. Mesmo sendo uma pessoa descontraída, Indra tinha um grande orgulho de fazer parte do exército. No entanto, aquele gesto lhe parecia inadequado, insuficiente para aquela que tinha sido uma de suas maiores amigas e mais valorosas aliadas. Insatisfeito, ele balançou a cabeça e afastou-se, retornando pelo caminho por onde viera.
– Tudo pronto? – Lucine Durandal, em sua habitual cota de malha, perguntou quando ele se aproximou dela.
– Sim, me desculpem pela demora.
Um pouco atrás de Lucine, a protetora chamada Elinora se debateu, enquanto Idan segurava firmemente seus punhos, amarrados atrás das costas.
– O que significa isso, itinerante? Para onde pretende me levar?
– Para um lugar onde não possa causar problemas, pelo menos até que se acalme um pouco.
Mesmo a protetora tendo revertido à forma humana, em que não tinha asas, possuía uma pele bem mais morena, os cabelos avermelhados eram consideravelmente mais curtos e sua musculatura menos desenvolvida, Elinora ainda tinha um porte bastante imponente e Idan estava com um pouco de dificuldade para segurá-la.
Jena Seinate lançou um olhar preocupado para a ruiva.
– Será que isso é uma boa ideia?
Evander sorriu.
– O objetivo de vida do povo dela parece ser policiar o império e prender malfeitores. Então, acredito que ela se sentirá praticamente em casa durante essa viagem.
Sem contar que, definitivamente, não posso permitir que ela fique à solta para voltar a ameaçar Valena e, consequentemente, Sandora.
– Meu objetivo é matar aquele demônio!
– Se é um demônio que você quer, vou lhe mostrar um – disse Lucine, antes de virar-se e começar a caminhar. – Vamos!
♦ ♦ ♦
– Tem certeza que está tudo bem com você?
Ao ouvir a pergunta, Valena olhou para o rosto preocupado daquele que havia sido seu mentor. Leonel Nostarius era um dos homens que ela mais respeitava. Ele sempre a havia tratado da mesma forma, com cortesia e seriedade, desde quando ela recebera a marca da Fênix e viera morar no palácio imperial, há mais de um ano.
O homem tinha todo o direito de ser arrogante e cheio de si, afinal, tinha sido um dos maiores generais do exército e comandado por muito tempo os Cavaleiros Aéreos, a tropa mais famosa e temida de todo o continente. No entanto, Valena nunca o vira se vangloriar de nada disso, sendo uma pessoa justa e amigável, apesar de ser sério demais, na opinião dela. Ao contrário da maior parte dos nobres e burocratas, Leonel nunca havia olhado para Valena de forma diferente enquanto ela passava de “aprendiz do imperador” para suspeita de traição, depois para fugitiva da justiça, depois para candidata ao trono e, finalmente, para imperatriz.
– Não sei – ela respondeu, finalmente, com franqueza.
Ela ainda estava muito confusa. Não sabia direito o que fazer com Valdimor, o homem parecia uma pilha de contradições. Primeiro tentara matá-la, o que continuava a insistir que era seu principal objetivo, mas a tinha tirado do caminho quando percebeu que seria atacado e ainda a salvou quando ela desmaiou no ar. Na maior parte do tempo a tratava com uma expressão entre divertida e irônica e aquela fúria toda que ele demonstrara nos primeiros dias depois de Sandora o ter capturado parecia ter desaparecido. Seria tudo aquilo apenas um estratagema para pegá-la desprevenida? Não, isso não fazia sentido, se a quisesse morta, bastaria ter deixado que se espatifasse na calçada de pedras irregulares naquele dia.
E o qeylinta, de alguma forma, ainda tinha conseguido fazer amizade com Gram, o que deixava aquela situação toda ainda mais sinistra. Agora tinha duas pessoas, ou melhor, duas criaturas naquele palácio que lhe causavam arrepios, ao invés de uma.
Leonel lançou-lhe um olhar compreensivo, dizendo:
– Acho que é consenso entre todos os presentes que, quanto antes esse assunto for concluído, melhor será para todos. Mas não vamos nos exceder, afinal, não é como se a vida de alguém estivesse em risco se isso não fosse resolvido ainda hoje. Certas coisas dão melhores resultados se forem tratadas com calma.
– Agradeço a preocupação, senhor, mas quero resolver logo isso.
Algumas das pessoas que estavam reunidas na sala arregalaram os olhos ao ouvir a detentora do cargo máximo do país se dirigir a alguém como “senhor”. Leonel, no entanto, acostumado com aquilo, apenas assentiu e virou-se para os demais, que se sentavam em cadeiras, formando uma espécie de roda ao redor da poltrona de encosto alto da imperatriz. Valena acompanhou o olhar dele, avaliando aquela gente.
Luma Toniato, antiga general do exército e que atualmente vivia maritalmente com Leonel, ajeitou o turbante, que cobria seus cabelos negros antes de cruzar os braços e olhar para a imperatriz com expectativa. Sua pele escura enfatizava ainda mais as marcas da idade já avançada, o que lhe dava uma aura de tranquilidade e sabedoria, intensificada por aqueles olhos penetrantes e inteligentes.
O general Viriel Camiro, que tinha um rosto enganosamente jovem e comum, o que levava muitas pessoas a confundi-lo com um simples soldado, ainda mais quando ele usava um uniforme padrão e sem sua insígnia, como agora, parecia mais interessado em avaliar as outras pessoas da sala do que na preocupação de Leonel com Valena.
A capitã Laina Imelde, líder da segunda divisão da Tropa de Operações Especiais, uma equipe pequena e com integrantes jovens, mas que haviam provado seu valor em inúmeras ocasiões, colocou uma mecha dos cabelos loiros para trás e analisou a imperatriz com aqueles olhos verdes e inteligentes. A princípio, Valena sentira uma antipatia imediata e gratuita em relação à capitã, mas logo percebera que aquilo era apenas uma reação irracional à incrível aura de feminilidade que a outra possuía.
Joniar Balbate, que gerenciava as finanças do império, coçou a cabeça, desarrumando ainda mais os cabelos negros enquanto analisava um livro aberto sobre uma pilha de outros que estavam em seu colo. Parecia ignorar completamente o que ocorria a seu redor.
O sábio Monselmo Ajurita, especialista em alquimia e assuntos místicos, analisava Valena e Leonel criticamente, com aqueles olhos azuis. O homem tinha uma aparência típica, clichê até, do que as pessoas imaginavam que um sábio se parecesse. Tinha uma barba branca longa, idade avançada, usava um manto longo e antigo no tom verde e usava uma espécie de chapéu pontudo, também na cor verde.
Sataromi Mantana, próspero fazendeiro e conhecido por suas técnicas inovadoras de agricultura, que se aproveitava de todos os meios conhecidos para tornar os campos férteis e assim aumentar a produção de alimentos, dirigia a Valena um olhar desconfiado enquanto alisava sua barriga proeminente com uma das mãos e coçava o queixo quadrado com a outra.
Tardiana Igalatar, uma outra nobre que se destacava pelo desempenho de suas propriedades rurais, mas que se especializava mais na área da pecuária, olhava para tudo e todos com olhar crítico. Pouca coisa escapava àqueles olhos escuros. Valena imaginava o quanto aquela fofoqueira devia falar sobre ela à suas costas.
As irmãs Pacífica e Janirete, da família Inariatu, dona da maior rede de lojas de roupas e tecidos do país, trocaram um olhar entre preocupado e divertido. Ambas tinham cabelos negros e pele muito clara, usando vestidos longos e coloridos, que Valena considerava nada práticos e se abanavam com leques enfeitados com pedras preciosas.
Borsur Felicidar olhava para Valena com um sorriso compreensivo. Seu rosto de pele suave e seus gestos tranquilos e um tanto afeminados contrastavam grandemente com sua profissão: tratava-se do mais famoso ferreiro de Verídia. Valena nem queria imaginar como uma pessoa como ele conseguia se dar bem em uma atividade que requeria tanto esforço e derramamento de suor, algo que parecia impensável para alguém com aquela aparência e porte físico.
Sandora Nostarius parecia mais preocupada do que o de costume. Sentava-se numa postura incomum, com uma mão protetora sobre o ventre que começava a crescer por causa da gravidez, enquanto olhava ao redor. Atrás da cadeira dela, Gram estava em pé, com as mãos às costas, parecendo montar guarda, o capuz e o manto longo não deixando nenhuma parte de sua pele à vista. A maioria das pessoas na sala não parecia se importar muito com Sandora ou com a figura encapuzada atrás dela. Aquilo, provavelmente tinha relação com a idade da bruxa. Sandora e Valena eram, disparado, as pessoas mais jovens no aposento, uma vez que, com exceção da capitã Imelde, todos os outros já tinham passado da casa dos quarenta. Valena ainda tinha a marca da Fênix no rosto, o que fazia com que todos tivessem um certo respeito por ela, mas Sandora não tinha esse benefício.
– Senhores e senhoras – disse Leonel, chamando a atenção de todos. – Podemos dar início a este encontro. Acredito que todos estejam cientes da razão de termos reunido todos vocês aqui.
– Sim, senhor Nostarius – respondeu o sábio Monselmo. – Mas antes de começarmos, gostaria de alguns esclarecimentos, se possível. É verdade que a imperatriz sofreu um atentado a alguns dias?
– Não, não é verdade – disse Valena. – A pessoa que estava comigo é quem era o alvo. A atacante não tomou nenhuma atitude agressiva contra minha pessoa.
– Mas a pessoa que estava com vossa Alteza é o demônio que a atacou antes, em Mesembria, não? – Tardiana, a fofoqueira, pelo visto, estava bem informada, como sempre.
Valena trincou os dentes.
– Sim.
– Me pergunto por que essa pessoa ainda não recebeu a pena capital.
Alguns murmúrios pelo salão levaram a crer que muitos concordavam com aquela posição. Antes que Valena pudesse responder, no entanto, Sandora tomou a palavra.
– Ele ainda está vivo por minha causa. Acreditamos que Valdimor Nileste estava sobre algum tipo de influência hipnótica durante o atentado em Mesembria. Minhas habilidades permitem livrar pessoas desse tipo de influência e o comportamento dele vem se modificando bastante nas últimas semanas.
– Acreditamos que ele deverá retornar à sua personalidade normal em mais algum tempo – complementou Valena, por alguma razão se sentindo compelida a proteger o monstro. – Então ele deverá ser capaz de nos dizer mais sobre a pessoa ou pessoas que o comandaram a cometer aquele ato, bem como nos ajudar a dar o troco.
Valena continuava se recusando a autorizar o uso do encanto da verdade nele. Aquilo lhe parecia completamente desnecessário, ainda mais depois do que ocorrera na praça.
– E quanto ao ataque que esse tal Valdimor sofreu? – Borsur entrou na conversa, com sua voz um tanto aguda, quase feminina. – Podemos entender isso como uma tentativa de impedir que ele se torne um delator?
– É uma possibilidade – respondeu Valena, não querendo trazer o assunto da existência dos protetores à tona e prolongar aquela reunião mais do que o necessário.
– Vossa Alteza passou vários dias ausente – reclamou Joniar, se mexendo na cadeira e quase derrubando a pilha de livros. – Isso tem alguma relação com esses ataques?
– Não exatamente – respondeu Leonel, ao ver Valena hesitar. – Diga-me, senhor Balbate, quantos dias a imperatriz esteve atendendo você no gabinete dela até altas horas da noite nas últimas semanas?
Joniar arregalou os olhos.
– As finanças do império estavam uma bagunça! Graças à ajuda dela, conseguimos colocar a maioria dos livros num estado quase apresentável! Os pagamentos atrasados foram todos concluídos, não há mais nenhuma reclamação entre os soldados e nem entre os empregados do palácio! Os fornecedores estão todos satisfeitos, e ansiosos para nos prestar serviços! Esse trabalho foi de inestimável importância!
– Concordo plenamente – disse Leonel, o que fez com que o homenzinho relaxasse visivelmente. – O ponto aqui, senhor Balbate, é que esses não eram os únicos assuntos de extrema importância que a imperatriz estava tratando. Ela estava dormindo muito pouco e pulando refeições, a fim de atender a todos que requisitavam sua atenção. Esses dias em que ela passou ausente foram um descanso mais do que necessário.
O salão caiu em completo silêncio, alguns olhando para Valena, preocupados, outros com expressão de culpa.
– Pelo que entendi, essa é a razão principal desta reunião, não? – Luma encarou Valena com um olhar avaliativo.
Ao ver a imperatriz assentir, ela continuou:
– Nesse caso, o que tem em mente? A criação de um conselho para ajudá-la a tomar decisões?
Ao ouvir a palavra “conselho”, as pessoas arregalaram os olhos.
– Mas isso é um absurdo – reclamou Janirete Inariatu. – Sileno Caraman foi o melhor imperador que já existiu, mas foi traído e morto pelo conselho que ele mesmo criou!
– Não estou interessada em um conselho imperial – decretou Valena.
– E qual é a ideia então? – Luma perguntou.
Valena olhou para Sandora, que encarou a velha senhora.
– Estamos propondo uma solução adotada pela civilização Damariana, milênios atrás: a criação de um senado, composta por membros escolhidos pelo povo.
Aquilo deixou a maioria dos presentes perplexos.
– O fato de serem escolhidos pelo povo não vai impedir que se tornem traidores! – Janirete esbravejou, com um olhar do tipo “quem essa fedelha pensa que é?”.
– Sim, se eles tiverem plenos poderes para isso – retrucou Sandora. – Mas um senado é diferente. É um corpo com autoridade apenas para criação de leis e mais nada. Além disso, em Damaria, os membros do senado eram substituídos a períodos regulares, de forma a não deixar sempre as mesmas pessoas no comando, e assim, renovar o corpo constantemente, o que tornava o senado mais aberto a adotar ideias novas e reagir melhor às mudanças sociais que ocorrem com o passar dos anos.
– Também vemos a necessidade de designar um governador para a província – complementou Leonel Nostarius. – Tendo em vista que a imperatriz precisa se preocupar com questões internacionais, como o acordo de paz com Mesembria e a ameaça de ataque das outras antigas províncias, é essencial que a administração pública fique centralizada em uma pessoa dedicada apenas para esse fim.
Valena observou a discussão que se seguiu com bastante preocupação. Ainda criança, ela tinha tomado a decisão de fazer sempre as coisas do seu jeito, sem depender de ninguém. Mas o período em que ela esteve envolvida com aquela gangue durante a infância a fez perceber que, na verdade, isso é impossível. Você sempre depende de outras pessoas, de uma forma ou de outra, querendo ou não. E o fato dela ter sofrido um colapso era uma comprovação mais do que evidente daquilo.
No momento, por mais que não gostasse do fato, ela sabia que precisava de ajuda. As cenas patéticas que ela protagonizou, achando que Valdimor e Barlone eram a mesma pessoa, iriam lhe causar vergonha para o resto da vida.
Só esperava que o fato de adotar as ideias de Sandora não viesse a provocar sua ruína. Por mais que tentasse, não conseguia obter um augúrio em relação àquele assunto, era como se a Grande Fênix não se importasse com o que ela faria.
Ou como se a estivesse testando, o que a deixava ainda mais apreensiva.
♦ ♦ ♦
A viela estava escura, com os cristais de luz contínua tendo desaparecido dos postes, provavelmente roubados. Valena caminhou, determinada, liderando o pequeno grupo até uma velha construção abandonada.
Tantos anos se passaram, tantas coisas mudaram para ela, mas, aparentemente, o resto do mundo continuava o mesmo.
Quando ouviu as conversas e risadas, levantou uma mão, usando o poder da Fênix para lançar uma bola de fogo para o alto. O construto subiu e explodiu no ar, fazendo relativamente pouco barulho, mas lançando luz suficiente para ser visto por metade da cidade.
Os soldados imperiais, que aguardavam aquele sinal, saíram de seus esconderijos e avançaram, invadindo a construção por todos os lados. Valena percebeu os sons da batalha que se seguiu e olhou para Valdimor.
– Posso mesmo confiar em você?
Ele lançou um olhar irônico para Gram, que estava ao lado dele.
– Não tenho opção. Boneca vigiando.
“Boneca”?! Ele se referia a Gram? Valena começou a duvidar da sanidade mental daquele homem. Ou melhor, daquela criatura. Por que Valena o confundira com Barlone, afinal?
Decidindo que não era hora de se preocupar com aquilo, ela avançou, sendo seguida pelos dois enquanto entrava na velha mansão. Os soldados que vigiavam a porta deram passagem a eles sem dizer nada. A maioria dos criminosos já tinha sido imobilizada pelos oficiais, mas o líder deles parecia estar dando algum trabalho.
De alguma forma, o homem conseguiu empurrar um dos soldados que o segurava para o lado e livrar-se das algemas que não tinham sido bem colocadas. Em seguida ele usou algum tipo de manobra especial para fazer com que os demais oficiais ao redor dele escorregassem no velho e imundo piso de madeira e saiu correndo na direção de Valena com óbvias intenções assassinas.
Valdimor e Gram se moveram de forma tão sincronizada e eficiente que deixaram Valena impressionada. Seguraram e imobilizaram o homem em poucos segundos, deitando-lhe de bruços no chão e amarrando-lhe os pulsos e os tornozelos.
Ela se aproximou do indivíduo e agarrou-o pelos cabelos, fazendo com que a encarasse.
– Sempre achei que você tinha muita presença de espírito – resmungou ele, entre gemidos de dor. – Mas não a ponto de vir a se tornar… isso.
– Olá, Teorus, seu qosol badan! Esperava nunca mais revê-lo.
O chefe da gangue da qual ela fez parte anos atrás tentou dar um sorriso irônico, mas tudo o que conseguiu foi fazer uma careta.
— Fim do capítulo 7 — | ||
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