Valena – Capítulo 8

Publicado em 25/02/2018
< 7. Presença de Espírito Sumário 9. Fio da Meada >

valena-cap-8t

8. Sangue Frio

Teorus era um péssimo líder, preguiçoso, aproveitador e desleixado. Ganhava o respeito dos outros por causa de suas misteriosas habilidades místicas, que ele não contava para ninguém como funcionavam, mas que provocavam fenômenos estranhos e aparentemente aleatórios, que sempre o beneficiavam em situações de perigo.

Valena não gostava dele, por isso não queria se juntar àquele bando, mas era difícil se livrar deles, uma vez que era complicado encontrar um lugar para viver naquela cidade sendo uma menor de idade procurada pela lei.

A gangue tinha diversos esconderijos diferentes, e os membros se revezavam na vigília, o que permitia que os demais pudessem dormir tranquilamente sem correr o risco de serem capturados de surpresa.

O bando atualmente tinha apenas seis elementos, se Valena se unisse a eles seria a sétima. O grupo já havia sido bem maior, mas ninguém comentava sobre o que tinha acontecido e ela não tinha intenção de chamar atenção sobre si mesma perguntando sobre essas coisas.

Alguns deles além de Teorus também tinham habilidades especiais, mas nada muito digno de nota. Depois de ter visto o que Barlone era capaz de fazer, Valena não se impressionava fácil. Ainda mais com aquela técnica de respiração e controle dos músculos, que a permitia se proteger quando os delinquentes tentavam lhe pregar alguma peça. Mesmo sem ser essa sua intenção, Valena foi, aos poucos, ganhando o respeito do grupo por causa daquilo. Ou, pelo menos, de boa parte dele.

Um fato interessante é que os membros da gangue não se davam muito bem entre si. Duas das garotas se odiavam abertamente, e os rapazes volta e meia estavam trocando socos um com o outro. Mas, quando o assunto era o exército imperial, eles se tornavam todos irmãos de sangue, defendendo-se uns aos outros com todas as suas forças.

Durante aquele período conturbado de sua vida, esse fato provavelmente foi o que mais chamou a atenção de Valena. Ela desejava fazer parte de algo assim, sentir-se pertencer. Mas aquilo não era, nem de longe, suficiente para que ela tolerasse a perspectiva de obedecer a todos os caprichos de Teorus. Pelo menos não por muito tempo.

O loiro parecia tolerá-la apenas por considera-la útil. Mas não demorou muito para Valena perceber que aquilo não era exatamente uma birra com ela, uma vez que ele agia da mesma maneira em relação a tudo e a todos. De qualquer forma, em algumas situações em que fugiam do exército, ficou bem claro que, em momentos de perigo, o jahwareer não pensava duas vezes antes de abandoná-la à própria sorte.

Naqueles meses em que se envolveu nas aventuras perigosas daquela gangue Valena teve muito tempo livre. Os saques que faziam eram razoavelmente rentáveis e Teorus, preguiçoso, evitava pegar novos “serviços” enquanto os recursos do saque anterior não acabassem. Ela então saía em missões de exploração, desbravando as ruas da enorme capital, tornando-se cada vez mais hábil em evitar os guardas.

Esse conhecimento das ruas tornou-se bastante útil quando, durante um “trabalho” que se mostrou um fracasso total, acabaram cercados pelos soldados. Ao perceber que seriam todos presos a menos que fizesse algo, Valena mandou os outros se esconderem e chamou a atenção dos oficiais, fazendo com que a seguissem.

Não foi nada fácil escapar do que parecia ser quase uma dezena de oficiais, muitos deles com habilidades místicas, mas ela conseguiu correr, serpenteando pelo meio das pessoas na rua enquanto mantinha os soldados em seu encalço por alguns quarteirões, o que deu tempo suficiente para a gangue poder escapar.

Com certa surpresa, ela percebeu que era muito mais ágil e resistente que a maior parte deles, muitas vezes tendo que parar um pouco para que eles não a perdessem de vista, uma vez que seu objetivo era atraí-los para o mais longe possível.

Depois de quase uma hora de muita correria, ela se escondeu sob as tábuas de uma velha ponte, observando dois de seus perseguidores passarem muito perto de onde estava.

– Pela Fênix, cara, eu não aguento mais – reclamou um deles, o loiro com a barriga protuberante.

– Eu sempre disse para fazer exercícios – retrucou o outro, moreno, com olhos azuis inteligentes. – Poderes místicos são bons, mas nem sempre são suficientes se não se manter em forma.

– Quanto tempo acha que ainda vai levar para pegarmos essa pirralha?

– Provavelmente nunca vamos conseguir, pelo menos enquanto ela não se cansar. É esperta demais e está no elemento dela.

– Então vamos deixar isso para lá e ir para casa. Somos os únicos que não desistiram ainda.

– Pode ir se quiser, mas eu preciso daquela recompensa.

Valena franziu o cenho.

Como é? Tem uma recompensa para quem me pegar?

– Isso é o que você diz, mas acho que está é se divertindo.

O moreno sorriu.

– Claro que estou. Nem lembro a última vez que eu brinquei de pega-pega com uma criança.

Valena esticou o pescoço para fora do seu esconderijo para olhar melhor para os dois soldados que se afastavam. Não sabia o que esperar de oficiais do exército, mas com certeza não era aquilo. Ela o tinha feito de bobo por quase uma hora e o cara ria e dizia que estava se divertindo?

E por que haveria uma recompensa por ela? Será que era por estar andando junto com Teorus? Ou será que a confundiram com outra pessoa?

Quando voltou a se encontrar a gangue, foi recebida com alegria e admiração, muitos deles demonstrando orgulho e preocupação genuína com ela. Aquilo foi uma sensação nova e inesperada.

A volta ao dia-a-dia depois daquela aventura foi um anticlímax. Ficar andando a esmo pela cidade agora era muito tedioso. Precisava arrumar algo para fazer, mas o quê?

Passava em frente a uma velha ferraria quando viu uma senhora com um pedaço de carvão, escrevendo algo em placa de madeira na parede. Curiosa, ela ficou olhando para aquelas letras por um longo tempo, imaginando o que elas poderiam significar. A mulher percebeu o interesse da garota e se aproximou dela.

– Olá, mocinha. Está interessada?

Valena olhou para ela, sem entender. A mulher apontou para a placa.

– Não sabe ler?

A garota sacudiu a cabeça.

– Aí diz “precisa-se de assistente”. Estou procurando alguém para me ajudar na ferraria.

Valena deu uma espiada para dentro e espantou-se com o que viu. Já havia trabalhado em duas ferrarias antes, mas nenhuma delas se parecia com um… estábulo.

– E esses cavalos?

– Os donos os trouxeram para trocar as ferraduras. Quer ver como se faz?

Valena começou a ajudar a ferreira por pura curiosidade, mas, para sua própria surpresa, acabou gostando do trabalho, principalmente de lidar com os animais. Eram criaturas grandes, fortes e um pouco assustadoras, mas, quando se sabia lidar com eles, eram dóceis e obedientes, alguns se mostravam até mesmo amorosos.

A ferreira, por sua vez, ficou impressionada com a garota, que aprendia rápido e se dava tão bem com os cavalos. Não revelava nada sobre si mesma, exceto que não tinha família e nem casa, o que a tornava um tanto misteriosa. E ficara genuinamente alegre ao receber algumas poucas moedas pelo trabalho que passara toda a tarde fazendo.

Não dava para comparar aquelas poucas moedas com a quantidade de dinheiro que os saques da gangue lhe rendiam, mas por alguma razão, as moedas que a ferreira lhe dera pareciam mais valiosas. Afinal, eram o pagamento por uma tarefa que traria benefícios para outras pessoas, ao passo em que os “trabalhos” de Teorus se resumiam a se apropriar das coisas dos outros. Assim, ela acabou voltando na ferraria na manhã seguinte, e na outra, depois na outra. Até que um dia a ferreira removeu a placa da parede, alegando que não era mais necessária, pois já tinha uma assistente.

Aquele arranjo durou por vários meses, até que um dia, um grupo de clientes entrou na ferraria enquanto Valena trabalhava para acender a fornalha. Um deles se aproximou e começou a puxar conversa com ela. Então, de repente, ele a segurou e amarrou seus braços atrás das costas enquanto seus amigos faziam o mesmo com a ferreira. Se identificaram como soldados imperiais e as conduziram para a masmorra, sob a alegação de terem encontrado mercadorias roubadas escondidas dentro da ferraria.

Valena passou mais de uma semana naquela cela suja, recriminando-se por ter baixado a guarda. Poderia facilmente ter escapado se aqueles soldados não a tivessem pego de surpresa.

Aquela experiência na prisão foi bem diferente do que ela tinha imaginado. Depois de ouvir tantas histórias sobre a suposta crueldade dos soldados imperiais, era difícil de entender o que estava acontecendo, afinal, lhe deram um catre para dormir que era dez vezes mais confortável do que a pilha de trapos no chão que estava acostumada, além de três refeições diárias que eram muito melhores do que o pão, queijo e carne desidratada que ela vinha consumindo nos últimos meses.

A cela onde estava podia ser suja e esfriava bastante à noite, mas era um lugar tranquilo e silencioso.

Então, um dia, a porta da cela foi aberta e dois homens familiares entraram.

– Parece que finalmente pegamos você – disse o loiro barrigudo.

Valena riu.

– Vão me dizer que estão me procurando desde aquele dia?

Para surpresa dela, o moreno de olhos azuis riu também.

– Para falar a verdade, estamos – disse ele. – Tinha uma recompensa por você, sabia?

– Onde está a ferreira?

– Ah, ela já voltou para casa. As acusações contra ela foram retiradas uma vez que descobrimos o que aconteceu. Conhece um indivíduo que atende pelo nome “Teorus”?

Achando melhor ficar quieta, Valena apertou os lábios.

– Não tente fingir inocência – falou o loiro. – Sabemos que você pertence à gangue. E que cometeu vários crimes junto com eles.

– Só não entendemos direito uma coisa – voltou a falar o moreno. – Você arranjou um emprego. Estava tentando fugir deles, ou algo assim? – Vendo que ela abaixava o olhar e continuava quieta, ele continuou: – Porque, aparentemente, ele estava irritado com você a ponto de tentar te incriminar, escondendo um monte de tralha roubada naquela ferraria.

Aquilo não podia ser verdade. Mesmo que estivesse insatisfeito com ela, Teorus era acomodado demais para fazer algo assim.

– Isso é bobagem!

– Acha mesmo? Nesse caso, que tal fazermos um trato?

♦ ♦ ♦

Encontrar a gangue não foi difícil. Eles não voltaram mais a nenhum dos esconderijos que Valena conhecia, mas a maior parte dos delinquentes tinha hábitos, gostava de frequentar certos lugares. Bastou esperar algumas horas em desses lugares e depois seguir o adolescente até o novo esconderijo.

Ela entrou no lugar exigindo falar com Teorus, que reagiu com surpresa.

– Ora essa, já está à solta de novo?

– Você me traiu.

– É mesmo?

– Você arranjou para que os militares me prendessem!

Ele nem mesmo tentou se fazer de desentendido.

– E eu achando que iam colocar você numa solitária. Me deram uma recompensa gorda, pensei que você fosse mais importante para eles.

– Seu carmal dilaaga! Se era a recompensa que queria, por que fez com que prendessem a ferreira também? Ela não tinha nada a ver com isso!

– A recompensa foi só um bônus. Eu estava cansado de você. Sabe o apelido que te deram por aqui? A “ruiva de sangue frio”. – Ao dizer aquilo, ele olhou ao redor, para os outros membros da gangue, que olharam para os próprios pés. – Aquela que nunca entra em pânico, mesmo com os militares na cola. Parece que você causou uma impressão e tanto por aqui e alguns começaram a imaginar se uma pirralha como você não saberia comandar as coisas melhor do que eu.

– Você poderia ter acabado com a minha vida! Não se importa se os soldados tivessem me mandado para a forca?

– Não seria legal se tivessem feito isso?

– Você roubou todas aquelas coisas e escondeu na ferraria só porque estava com ciúme de mim?

– Eu roubei porque é isso que eu faço, é nisso que sou bom.

Valena achava que estava acostumada a ser descartada, uma vez que tal coisa já havia acontecido tantas vezes em sua vida. Mas, por alguma razão, ela ainda era capaz de se sentir arrasada. Mesmo não tendo criado muitos laços com aquele bando.

Mas, nessa situação, a raiva e a frustração foi de grande utilidade. Graças a ela, não se sentiu mal ao ver os soldados invadindo o lugar e prendendo a gangue toda, utilizando algum tipo de campo de expurgo para impedir que usassem suas habilidades místicas.

Quando todos estavam sendo conduzidos para as carroças, o oficial moreno de olhos azuis se aproximou dela.

– Eu queria ter falado mais com ele mais um pouco – Valena reclamou.

– Desculpe, um deles estava percebendo a nossa presença e tivemos que nos adiantar.

Ela suspirou.

– Eu fiz o que você queria. O que acontece agora?

– Como eu disse antes, nunca foi intenção do exército jogar você e os outros órfãos na rua. Aquela foi uma ação irregular e os responsáveis já foram punidos. Infelizmente, não conseguimos encontrar você e alguns dos outros garotos que moravam lá. Foi colocada uma recompensa por informações sobre vocês porque estávamos preocupados com sua segurança.

– Mesmo que isso seja verdade, se me encontrassem, o que iam fazer comigo? Me mandar para outro abrigo caindo aos pedaços? Para voltar a passar fome e frio? Porque, se for isso, estou muito melhor do jeito que estou agora.

– Entendo. Mas nada disso, infelizmente, muda o fato de você ter cometido crimes.

Ela torceu os lábios.

– Então vou voltar para a masmorra?

– Por enquanto, sim. No entanto, por experiência própria, eu sei que você conhece essa cidade melhor do que qualquer um. Além disso, leva jeito para lidar com cavalos. Tendo isso em mente, eu tenho uma proposta para você, se tiver interesse.

♦ ♦ ♦

Sandora Nostarius adentrou a câmara, seguindo uma oficial que parecia contrariada com sua presença.

A armadura do Avatar repousava sobre uma mesa, envolvida em uma série de encantamentos de proteção. Haviam tantas auras místicas distintas no local que Sandora poderia levar dias para identificar todos os encantos, sensores e aparatos existentes naquela pequena sala. Ela deu uma volta ao redor de si mesma tentando isolar as auras que lhe interessavam no momento, ignorando o olhar espantado da oficial.

– Vocês usam sensores duplos? – Sandora perguntou, concluindo que aquela seria a única explicação lógica para o que sentia.

– Sim, senhora. Medida de segurança adotada por causa da importância do que está guardado aqui.

Sandora assentiu, enquanto retirava um livro de anotações e um pedaço de carvão de um dos bolsos de seu manto negro.

– Eu gostaria de ouvir sobre outras medidas de segurança que estão implantadas aqui.

A mulher se empertigou.

– Desculpe, senhora, mas não fui informada de que isso seria uma inspeção de segurança. Não estou autorizada a…

Sandora a encarou, imaginando o que Evander diria numa situação daquelas.

– Desculpe, oficial, mas acredito que está ocorrendo algum mal-entendido. Não estou aqui para inspecionar nada, gostaria apenas de entender o que é tudo isso aqui, uma vez que não sei nada além do básico em relação a segurança.

A mulher piscou, confusa.

– Hã… é mesmo?

– Uma das minhas funções neste lugar é zelar pelo bem-estar da imperatriz. Tendo isso em mente, suponho que quanto mais eu aprender em relação a esse assunto, mais preparada estarei para essa tarefa.

Depois de ouvir aquilo, a oficial pareceu relaxar, o que foi um alívio. Uma das coisas que Sandora mais detestava era bancar a diplomata, falando coisas com o objetivo de curar o ego ferido dos outros. Mas, naquele momento, naquela sala, o mais sábio seria evitar qualquer tipo de animosidade.

E aquilo ainda teve o benefício adicional de soltar a língua da oficial, que começou a falar sem parar sobre o elaborado esquema místico de segurança da sala e dos arredores. Se Evander estivesse ali, provavelmente lhe daria um daqueles sorrisos de aprovação que a deixavam trêmula por dentro, Sandora pensava enquanto ia fazendo anotações para tentar não se esquecer de nada do que estava ouvindo.

Em determinado momento, algo que a mulher disse lhe chamou a atenção.

– Você falou que um dos campos sobre a mesa é capaz de neutralizar ataques de gelo?

– Sim – disse a outra, animada. – Mas não só isso, é um encanto que…

Sandora levou a mão ao queixo enquanto ouvia a explicação detalhada sobre a flutuação. Não sabia que existia algo assim, pelo menos não nessa configuração.

Interessante. Qual seria a maneira mais eficiente de tirar proveito daquilo?

♦ ♦ ♦

Valdimor tinha um estilo de luta bastante eclético. Ele gostava de usar armas de longo alcance, como lanças, mas também sabia se virar muito bem com os punhos ou com os pés. Infelizmente para ele, no entanto, sem seus poderes de demônio ele não tinha nenhuma chance contra as técnicas que Valena aprendera com Leonel Nostarius e Dario Joanson.

Satisfeita, Valena olhou para ele, espatifado no chão. Seus longos cabelos negros estavam espalhados de forma desordenada e ele respirava com dificuldade, devido ao esforço. Os incríveis músculos de seu peito brilhavam de suor, um efeito que se intensificou conforme ele levantava o tronco, esforçando-se para se levantar depois do que deveria ser a sétima ou oitava que era derrubado.

Ela se sentia muito bem. Estava alerta, afiada, cheia de energia. Ter alguém para descontar suas frustrações daquela forma era uma verdadeira bênção. E o fato dele ter se oferecido para apanhar dela ­– apesar de não exatamente com essas palavras – a eximia de qualquer responsabilidade pela humilhação que estava sofrendo.

Era muito bom poder lutar com alguém de seu nível, para variar. Desafiar a bruxa era uma perda de tempo, mesmo estando grávida, a mulher era um monstro em combate, ainda mais depois que juntou os trapinhos com o comandante. O esqueleto, que agora não era mais um esqueleto, também era rápido e forte demais para Valena. A mal-humorada era uma adversária melhor, havia aprendido uma ou duas coisas com ela nas poucas chances que tiveram de treinar juntas. Infelizmente, Lucine Durandal havia partido, junto com Evander e os outros amigos dele, com a intenção de manter aquela protetora enlouquecida nos eixos, e bem longe de Valdimor.

Vendo o homem hesitar, ela sorriu e levou uma das mãos à cintura.

– O que foi? Não consegue mais se levantar? Precisa de ajuda?

Mesmo com a respiração ainda pesada, ele deu um daqueles sorrisos maliciosos enquanto estendia uma mão para ela. Sem pensar muito bem no que estava fazendo, ela a pegou, os dois um segurando o pulso do outro com firmeza. Então, tomando-a completamente de surpresa, ele puxou com força, desequilibrando-a e fazendo-a cair por cima dele e aterrissando sobre aquela massa de músculos.

Ela sentiu um dos braços dele segurando-a pelas costas enquanto rolavam no chão até ele ficar por cima, apoiado nos joelhos e nas mãos, uma de cada lado da cabeça dela. Sem fôlego e totalmente apalermada, Valena não conseguiu fazer nada além de encarar aqueles olhos negros.

– Manter guarda sempre – disse ele, ainda com aquele sorriso.

Que raios? Aquele bass estava tentando lhe dar lição de moral? Já mostraria para ele quem estava de guarda baixa. Faria isso em um momento. Assim que recuperasse o fôlego.

Ali perto, a capitã Laina Imelde, responsável pela segurança pessoal da imperatriz, limpou a garganta, o que vez com que o casal saísse daquela espécie de transe em que pareciam ter entrado. Os dois se levantaram rapidamente.

– Capitã – saudou Valena, um pouco esbaforida. Não lhe passou despercebido o olhar que a oficial lançou para o peito despido e suado de Valdimor.

– Alteza – a outra prestou continência. – Desculpe interromper, mas os senadores terminaram a deliberação.

– Já não era sem tempo.

Minutos depois, os três caminhavam pelos corredores do palácio.

– Ouvi dizer que a senhora liderou pessoalmente uma investida para apreensão de criminosos ontem – comentou a capitã.

– Sim – respondeu Valena. – Era alguém que me ajudou quando precisei, mesmo tendo me atirado aos lobos depois. Então achei justo pelo menos ouvir sua história direto da boca dele.

– Oh. Isso foi muito… gentil da sua parte.

– Foi é uma grande perda de tempo, uma vez que o jahwareer não só confessou ser culpado de todas as acusações como disse em alto e bom som que não se arrependia de nada.

A capitã franziu o cenho.

– “Javarir”?

– Não, “jahwareer”. O som é um pouco mais arrastado no “a” e no “er”.

– Esse é o nome dele?

– Não, mas agora que você mencionou, eu chamava ele disso na maior parte do tempo. É uma palavra lemoriana com significado bastante similar a “sujo de esterco”.

A capitã soltou uma gargalhada, no que foi imitada por Valdimor. Valena olhou para ele.

– Para quem não fala direito, você entende que é uma beleza, não?

O homem apenas deu um de seus sorrisos misteriosos. Ele jurava que não se lembrava de quem o havia contratado e nem o porquê. Estaria mentindo?

Não teve tempo para continuar aquela reflexão, pois chegavam à porta do salão, que foi aberta por dois soldados que em seguida lhe prestaram continência.

Uma das coisas que Valena aprendera com Sileno Caraman é que não se ganhava o respeito das pessoas com coisas fúteis, por isso ela evitava se enfeitar demais ou usar roupas pomposas. Sua própria vaidade, no entanto, a impedia de trajar qualquer coisa. Tivera sua quota de roupas grosseiras e de cor indefinida durante toda sua infância e adolescência, e agora não queria vestir-se com nada além do melhor. Em respeito ao falecido imperador, no entanto, ela evitava opulência e coisas que não servissem para nada além de aparências. Seus trajes eram de excelente qualidade, confortáveis, não tolhiam seus movimentos e durariam por anos, sendo resistentes o suficiente até mesmo para sessões de treinamento de combate corpo-a-corpo, como o que acabara de ter. Ela também dispensava completamente enfeites de cabelo, pinturas, estampas e tantas outras coisas que os nobres gostavam de usar. O resultado é que sua aparência era prática e informal. Mesmo um tanto suja e suada, o que as pessoas viam quando olhavam para ela era uma mulher determinada, dinâmica e que gostava de resolver problemas.

– Desculpem minha aparência, estava em meio a meu treinamento. Vou evitar me sentar para não sujar a cadeira.

Os senadores se entreolharam. Não era de praxe uma imperatriz se comportar daquela forma, mas aquilo com certeza era melhor do que ficar esperando por sabe-se lá quanto tempo até ela tomar banho e se arrumar.

A senadora Pacífica Inariatu se levantou, assumindo seu papel de porta-voz do recém estabelecido senado imperial. Aquela seria a primeira decisão importante deles e havia muita expectativa em relação ao assunto, apesar de, na opinião dela, ser uma escolha bastante óbvia.

– Vossa Alteza, venho informar que foi concluída a deliberação em conjunto com pessoas influentes de toda a província, e este senado chegou a um veredito por unanimidade.

Valena estreitou os olhos.

– Vocês estão certos de que não haverá insatisfação entre o povo em relação ao nome escolhido?

– Sim, senhora. E o fato de ter sido feita essa consulta popular também foi motivo de muita satisfação entre os cidadãos.

– E quem foi o escolhido?

Pacífica tinha preparado um discurso para enaltecer todas as virtudes do homem, mas a expressão da imperatriz, ansiosa e impaciente, mostrava que queria encerrar rapidamente aquele assunto, coisa que lhe era característica, diga-se de passagem. Talvez fosse melhor ir direto ao ponto.

– O senado indica o nome do ex general Leonel Nostarius.

Todos olharam para Valena com expectativa. Ela olhou para o pai de Evander enquanto ele se levantava. Sério, responsável, inteligente e confiável.

– Então, senhor Nostarius, está decidido que, a partir deste momento passará a ocupar o cargo de governador da Província Central.

Com aquilo, ocorreu uma salva de palmas. Depois de um momento, Valena continuou:

– O senhor é mais do que capaz de tomar conta do nosso povo, mas se precisa de uma diretriz da minha parte, eu diria para prestar uma atenção especial às nossas crianças. Quando o tempo da minha geração acabar, quero ter a certeza que estamos deixando pessoas preparadas e dignas para tomar conta de nossa nação.

Na verdade, os pensamentos de Valena não eram tão profundos ou magnânimos assim. Ela simplesmente não queria que outras pessoas passassem por tudo o que ela mesma passara durante a infância. Mas o tedioso treinamento de oratória que recebera do professor Lutamar Romera tinha sido muito bem-sucedido. Talvez até mais do que ela própria gostaria.

Leonel aceitou aquelas palavras com um sorriso sereno e preparava-se para falar algo quando a porta se abriu de repente e um soldado chamou por Sandora e Laina.

Estranhando aquilo, Valena se adiantou.

– O que houve? Alguma emergência?

– Desculpe, alteza – o homem estava vermelho como uma pimenta. – Há um oficial ferido aqui, e o soldado que o trouxe está solicitando a ajuda das duas.

– Tragam eles para dentro.

Um momento depois um homem entrou, carregando outro, todo ensanguentado, nas costas.

– Beni! – Laina exclamou, correndo até eles ao reconhece-los. – É o Iseo? O que houve com ele?

Os senadores se levantaram, mas se mantiveram distantes enquanto o soldado ferido era colocado sobre uma mesa e Sandora lhe fazia um rápido exame, antes de usar seus sombrios poderes para curar-lhe os feios ferimentos.

– Eu o encontrei assim no alojamento – disse Beni, coçando sua cabeça careca com a mão ainda suja de sangue. – Quando percebi que ele não sobreviveria por muito tempo, só pude pensar em trazer ele aqui…

– Está tudo bem, soldado – Valena olhou para Laina. – Ele é um dos seus. Estava trabalhando em alguma coisa?

A capitã balançou a cabeça.

– Ele estava de folga hoje.

– Oficial – Sandora chamou um dos guardas que estavam na porta. – Traga um curandeiro.

Enquanto o guarda saía correndo, Beni olhou para Sandora, preocupado.

– Ele está…? Você não conseguiu…?

– Ele está bem – ela respondeu. – Mas vai levar dias para acordar, seria bom manter um curandeiro por perto.

Enquanto Beni e Laina agradeciam à bruxa de forma emocionada, o senador Monselmo Ajurita se aproximou de Valena.

– Alteza, sinto interromper, mas devo lembra-la que temos alguns assuntos importantes para serem resolvidos.

Valena olhou para ele de cenho franzido, antes de desviar o olhar para os outros senadores.

– Certo, vamos deixar uma coisa bem clara. Um dos meus soldados foi atacado, de forma aparentemente covarde e cruel. E quando atacam um dos meus, senhores senadores, estão me atacando.

Não deixaria ninguém tomar nada que fosse dela. Nunca mais.

Sentia uma fúria tão grande que mal conseguia controlar. O que aquele jahwareer que um dia a havia acusado de ter “sangue-frio” diria se a visse agora?

— Fim do capítulo 8 —
< 7. Presença de Espírito Sumário 9. Fio da Meada >

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s