Ele olhou para o céu, que continuava escuro e ameaçador. Apesar de haver uma brecha entre as nuvens pela qual os raios de sol iluminavam gloriosamente a paisagem, relâmpagos cortavam outras partes do céu, como se eles estivessem numa espécie de oásis no qual as tempestades não ousavam se aproximar.
Concluindo que seria melhor permanecerem por ali por mais algum tempo, ele retornou para o lado de sua companheira. Não sabia de nada sobre ela, exceto que a pobre alma tinha sobrevivido a uma infância traumática. E também sabia que a conhecia de antes de terem vindo parar naquele lugar, apesar de nenhum dos dois conseguir lembrar de nada.
Ela estava em meio a um sono irrequieto, deitada sobre a areia seca junto à parede de rochas. Tratava-se de uma formação natural impressionante, onde o paredão rochoso tinha sido erodido pelas ondas do mar durante milhares de anos, criando uma espécie de toldo natural. O chão rochoso e irregular estava coberto naquele lugar por uma camada não muito grossa de areia.
Ele deitou-se ao lado dela, apoiando a cabeça nas mãos e estudou o teto de rocha, pensativo.
“Ainda estou sonhando?” Perguntou ela, ainda de olhos fechados.
“Se você quer saber se ainda estamos presos neste lugar, onde quer que isso seja, a resposta é sim”, respondeu ele, depois de um suspiro.
“Eu quero voltar para casa”, disse ela, virando as costas para ele e encolhendo-se a ponto de quase abraçar os próprios joelhos. “Por favor, me deixe ir para casa”.
“Descanse”, disse ele, aproximando-se e colocando a mão sobre o ombro dela. “Tente dormir mais um pouco”.
Então, ela se virou para ele, abraçando-o com força e mergulhou o rosto no tecido áspero da camisa velha que ele usava e caiu em um pranto convulsivo. Ele se mexeu até conseguir se colocar em uma posição mais confortável e a segurou com suavidade, aguardando pacientemente até que aquela nova onda de pranto passasse. Era já a terceira vez que ela perdia a luta contra as lágrimas, e cada vez os soluços eram mais intensos, como se a ferida estivesse se abrindo ao invés de cicatrizando.
Então, os raios de sol foram lentamente diminuindo até que o local ficou escuro e a chuva começou a cair. Logo, raios e trovões se sucediam, como se fizessem eco ao sofrimento da mulher, cujas lágrimas pareciam não ter fim.
Depois de um tempo, os soluços deram lugar a uma respiração pesada, que aos poucos foi se atenuando até ele concluir que ela tinha adormecido novamente, ainda com o rosto molhado de lágrimas apoiado no peito dele. Fechando os olhos, ele tentou descansar também. Presenciar a tragédia de infância dela daquela forma, como se estivesse tudo acontecendo novamente com os dois como testemunhas, tinha sido exaustivo.
Muitas horas mais tarde, ela abriu os olhos, sonolenta, e levou algum tempo para registrar onde estava deitada. Levantando a cabeça devagar, com uma careta devido à leve dor de cabeça que sentia, ela olhou para o rosto de seu companheiro, que mantinha aquela expressão impassível mesmo durante o sono.
“Quem é você?” Pensou ela, levando a mão ao rosto dele num impulso, surpresa com a quantidade de energia necessária para o gesto, seu corpo todo parecia pesado, esgotado. Acabou deixando a mão cair sobre o ombro dele. “Quem sou eu?” Ela se perguntou. “Por que não consigo me lembrar de nada, e, mesmo assim, preciso passar por essa provação?” Ela olhou mais uma vez para o companheiro. “E por que ele precisava presenciar tudo isso?”
“Sentindo-se melhor?” Ele perguntou, ainda de olhos fechados.
Ela reuniu toda a sua força e obrigou seu corpo a se sentar, saindo de cima dele. O esforço a fez soltar um gemido e levar as mãos ao rosto. “Já estive melhor.”
De forma lenta, mas determinada, ele se pôs de pé e alongou os músculos, num movimento que atraiu toda a atenção dela. Os sentimentos que a atingiam naquele momento não eram fascinação para algo novo, que estaria vendo pela primeira vez. As sensações falavam sobre familiaridade, prática, talvez até mesmo rotina. Sim, ela o conhecia. Intimamente. Por que, inferno, ela não conseguia se lembrar?
“Nós éramos amantes”, concluiu ela, sentindo os pensamentos começando a clarear.
Ele olhou para ela, com aquele rosto inexpressivo que ela começava a considerar como a marca registrada dele. “Como chegou a essa conclusão?”
“Eu…” começou ela, mas calou-se, sentindo-se insegura. “Nós nos conhecemos. Nos damos bem e nos importamos um com o outro”.
“Seguindo essa lógica”, respondeu ele, “podemos muito bem ser irmãos ou primos, ou talvez, colegas de trabalho”.
Pela Fênix, ela realmente esperava que não, caso contrário o trabalho devia ser uma provação e tanto para ela. Sua reação devia estar estampada em seu rosto, porque ele percebeu e sorriu. E aquele sorriso a desarmou completamente. Era a primeira vez que via ele expressar alguma emoção.
“Vejo que você está melhor, e fico feliz com isso”, disse ele, olhando-a nos olhos. “Imagino que você não ficará satisfeita apenas brincando de adivinhação”.
“Você está certo”, disse ela, levantando-se com dificuldade. “Vamos achar uma saída deste lugar. Quero meu passado de volta”.
“Pode haver mais coisas dolorosas para serem descobertas”, avisou ele.
“Eu estou viva, não estou?” Ela respondeu, espreguiçando-se. “Se já sobrevivi a tudo uma vez, não faz sentido me acovardar agora”.
Ele a observou, pensativo, por um instante, imaginando se ele próprio seria capaz de demonstrar tanta força interior. De uma forma instintiva, no entanto, ele sabia que nunca seria dominado pelas próprias emoções. E, mais por curiosidade do que por qualquer outro motivo, aquilo o fazia imaginar que espécie de monstro ele era.
“O que quer fazer?” Perguntou ele.
“Sair daqui”, ela respondeu.
Nas horas seguintes, eles caminharam por vales, colinas, campos, desertos, escalaram montanhas, transpuseram florestas e atravessaram rios em jangadas improvisadas ou a nado. Aquele mundo onde estavam era imprevisível, com o ambiente se modificando o tempo todo. Sem nenhuma pista do que fazer ou para onde ir, eles se esforçavam para seguir em frente, tentando encontrar algum padrão naquele ambiente caótico que lhes desse alguma pista de como encontrar uma saída.
Então, após percorrerem uma trilha de uma floresta densa, chegaram a uma clareira e a uma paisagem bastante peculiar. Surpresos, eles se encararam por um momento, antes de se aproximarem um pouco mais para ver melhor.
Poucos metros adiante, havia um precipício. Na verdade, era pior que um precipício, parecia que o mundo simplesmente acabava ali. As bordas do abismo eram irregulares, mas implacáveis, desaparecendo a perder de vista em ambas as direções. Além daquilo, havia apenas o céu, sendo que o sol poente começava a deixar ver as primeiras estrelas.
“Isso é… inesperado”, disse ele, agarrando uma pedra e a lançando no abismo, apenas para a verem desaparecer à distância, da mesma forma como ocorria com a água de um rio próximo, que formava uma cachoeira aparentemente sem fim.
“Teremos que dar a volta”.
“Não, necessariamente”.
Ela arregalou os olhos. “O que quer dizer?”
“Podemos, simplesmente, continuar em frente. Sabemos que pouco, ou talvez, nada disso tudo é real”.
“Quer dizer, saltar para o vazio?” Exclamou ela, horrorizada. “Que idiotice é essa, Leonel? Sabe que isso aí pode ser só mais uma provação, como a que eu tive”.
“Exato”.
“Mas você não teria coragem de fazer isso se estivéssemos na vida real”.
“Achei que me conhecesse melhor que isso, Luma”.
Ao ouvir o próprio nome, ela o segurou pelos ombros, maravilhada.
“Lembramos dos nossos nomes!”
“Sim”, respondeu ele, assentindo, antes de segurá-la pelo braço e dar a volta, afastando a ambos da borda do abismo e voltando para um lugar aparentemente mais seguro. “E me lembrei de algo mais também”.
“O quê?” Disse ela, sem fôlego, quando ele a tomou nos braços.
“Lembrei-me de que eu poderia mergulhar em qualquer abismo sem pensar duas vezes. Mas que nunca seria capaz de deixar qualquer outra pessoa fazer o mesmo. Principalmente você”.
(continua…)
O Vale Encantado – Parte 4 (próxima)
O Vale Encantado – Parte 2 (anterior)
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