Luma se sentia como se sua mente tivesse abandonado o corpo. Parecia flutuar, enquanto uma sensação intensa e agradável parecia se concentrar em sua garganta, ameaçando leva-la para um longo e merecido repouso. Então, subitamente, a sensação se foi e ela sentiu falta de ar. Por mais que respirasse, parecia não ser suficiente. Precisava de ar… onde, raios, tinha ido parar o ar? Mas logo a falta de ar foi esquecida, quando ela foi atingida por uma violenta pontada no peito, que a fez prostrar-se e cair no chão com um gemido abafado.
Leonel tinha segurado a companheira quando ela começara a sofrer o ataque de pânico, imaginando que não tinha como uma pessoa normal não reagir de forma intensa ao bombardeio de revelações que ela sofreu desde que chegaram àquele lugar misterioso. No entanto, depois de alguns minutos ficou claro que a reação dela era muito mais grave do que ele havia imaginado. Ela estava sofrendo o que os sábios costumavam chamar de hiperventilação. Se conseguisse fazer com que a respiração dela voltasse ao normal, os sintomas diminuiriam.
“Luma, acalme-se! Respire!” Gritou ele, tentando segurá-la e fazer com que fechasse a boca, mas sem sucesso, pois ela reagiu com agressividade, enterrando as unhas nos braços dele, numa tentativa desesperada de se afastar.
Ignorando a dor e o sangue que escorria dos ferimentos em seus braços, ele agarrou os braços dela, tentando imobilizá-la, quando ela começou a reagir com chutes. Sem ter outra escolha ele enfrentou uma pequena batalha e recebeu vários outros arranhões e mordidas até conseguir ficar por cima dela, segurando-lhe os braços no chão com uma mão, enquanto com a outra, fechava-lhe a boca.
“Devagar! Respire devagar!”
Depois de quase um minuto, as forças dela pareceram diminuir e ela parou de lutar. Mas a respiração ainda continuava irregular, então ele tapou-lhe também uma das narinas, esperou ela respirar algumas vezes e depois tapou a outra. Ficou naquele ritmo por outro minuto, fazendo com que ela respirasse por uma narina de cada vez, até sentir que ela começava a relaxar.
Então ele a soltou e saiu de cima dela, sentando-se no chão e analisando os ferimentos dos próprios braços, enquanto tentava fazer com que a própria respiração voltasse ao normal depois de todo o esforço empreendido para segurar a companheira ao mesmo tempo que tentava não a machucar.
“Eu quero morrer!” Disse ela, em uma voz estrangulada.
“Isso não vai acontecer”, ele declarou, aproximando-se e fitando o rosto vermelho e coberto de lágrimas. “Pelo menos não enquanto eu estiver por perto.”
“Por que se importa comigo?”
“E por que não me importaria?”
“Me deixe pular no abismo.”
“Não.”
Vendo que uma saudável crise de choro estava chegando, ele a ajudou a sentar-se e a segurou contra o peito. Ficaram naquela posição por muito tempo, com ele acariciando as costas dela enquanto olhava para o cenário à frente deles, que poderia muito bem ser chamado de “fim do mundo”.
Meia hora antes, eles tinham presenciado o momento em que uma versão mais jovem de Luma havia saltado naquele precipício, após ter intencionalmente provocado a morte de milhares de pessoas. Leonel sabia que as cenas que eles estavam presenciando faziam parte do passado de Luma. Situações pelas quais ela havia passado e que, aparentemente, ela nunca tinha superado, pois ele tivera que segurá-la para impedir de seguir sua versão mais jovem no mergulho suicida.
Olhando para aquele céu estrelado, que parecia ser a única coisa que existia além daquele barranco onde o mundo subitamente parecia acabar, ele ponderava quanto daquilo tudo realmente poderia ter ocorrido de verdade.
“Você não morreu”, ele disse, de repente.
Ainda lutando contra os últimos soluços, ela olhou para ele, confusa. “Como?”
“Você ainda está viva. Então não pode, realmente, ter saltado de um abismo anos atrás.”
Ela pensou um pouco. “Posso ter sobrevivido de alguma forma.”
“Não existe um abismo como esse em Verídia, Luma. Isso não é real.”
Ela afastou-se dele e enxugou os olhos, antes de olhar para o lugar em questão. “Tem razão, não existe mesmo. Então o quê…”
“Talvez seja um truque da mente. Talvez seja assim que você se lembre do que ocorreu.”
“Quer dizer que eu… eu me joguei no… vazio?”
“No esquecimento, provavelmente.” Ele a olhou com atenção. “Diga-me, suas memórias de Verídia também já voltaram, não é?”
Ao se dar conta daquilo, ela levantou-se com certa dificuldade, por causa do peito ainda dolorido, e olhou ao redor, estudando o lugar com cuidado. “Sim… sim, eu lembro. Agora eu me lembro de quem somos e de por que estamos aqui!”
“Creio que já cumprimos a nossa missão. É hora de retornar. Vamos embora antes que acabemos presenciando alguma outra memória dolorosa do passado.”
“Não acho que tenha mais nada para ser presenciado”, disse ela.
No centro da vastidão do deserto congelado da Sidéria, existia um lugar de difícil acesso conhecido como o “Vale Sombrio”. Tratava-se de uma floresta petrificada, que aparentemente havia sido habitada muito tempo atrás por uma tribo que tinha uma fascinação especial por rochas. Existiam monumentos e esculturas por toda a parte, e bem no centro do local havia um monumento grande, muito maior que os outros, cheio de desenhos e letras antigas esculpidas na rocha. Supostamente, esse obelisco servia como porta de entrada para o que alguns chamavam de “o mundo dos deuses”.
Ao redor da grande rocha, havia sido montado um acampamento improvisado, e seus ocupantes se dedicavam a diversas tarefas, enquanto montavam guarda e esperavam.
O armeiro trabalhava com o martelo, tentando replicar uma das placas de uma armadura de combate, auxiliado pela garota, cuja energia e entusiasmo compensavam um pouco sua falta de habilidade. A sacerdotisa tratava de trocar um curativo na perna daquele que era conhecido como o “gigante”. O arqueiro acabava de chegar da caçada, trazendo comida suficiente para alimentá-los por vários dias, enquanto o professor estudava o antigo obelisco e rabiscava alguma coisa com carvão em uma pequena tábua de madeira.
“Pessoal!” O professor gritou, se afastando da pedra, quando ela começou a emitir um brilho esverdeado. Em questão de segundos, todos haviam abandonado suas tarefas, sacado suas armas e entrado em formação de combate.
“Somos nós!” Exclamou o major Leonel Nostarius, saindo da rocha por uma abertura que subitamente se formou em meio ao brilho esverdeado. A capitã Luma Toniato vinha atrás dele, com o rosto e os olhos vermelhos. Ambos estavam sujos e desalinhados. “Missão cumprida.”
“Encontraram a pedra?” Quis saber o armeiro.
“Não”, respondeu Leonel. “Mas sabemos onde ela está.”
A sacerdotisa tomou a frente ao ver os ferimentos no braço de Leonel e tratou de levar ambos até uma das tendas, de onde não deixou nenhum dos dois saírem até que tivesse feito um exame completo. O professor continuou observando o obelisco por mais algum tempo, mesmo depois que o brilho esverdeado se foi o monumento voltou ao normal.
Muito tempo mais tarde, Leonel encontrou Luma à beira de um riacho.
“Queria falar comigo?” Perguntou ele.
“Sim”, respondeu ela. “Ainda não acredito que aquela droga de obelisco me fez lembrar de tudo aquilo.”
“Foi concedido o nosso desejo, não? Entramos lá para procurar o rubi e o artefato nos mostrou onde procurar.”
“Ele podia simplesmente nos ter mostrado uma imagem daquele vulcão.”
“Sim, mas você não seguiu as instruções do professor, não é? Você não limpou sua mente antes de atravessar a passagem. O artefato apenas reagiu aos seus pensamentos.”
“Eu não me lembrava. Não me lembrava de nada. Como posso ter causado tantas mortes e simplesmente esquecer tudo?” Ela levou as mãos ao rosto, desgostosa consigo mesma. “Eu sabia que tinha algo errado, que tinha brancos na minha memória. Coisas que eu deveria lembrar, mas não conseguia.” Ela voltou a olhar para ele, angustiada.
“Não posso mais fazer parte dessa equipe.”
“Você era jovem e deixou-se levar pelo desejo de vingança. Mas isso foi há muitos anos, Luma. Pode parecer difícil agora, mas você vai superar e seguir em frente.”
“Não é tão simples, Leonel. Eu me lembrei de outras coisas, muitas outras. Eu… eu matei mais pessoas, depois daquilo! Eu… eu sou um monstro!”
“Não, não é. Você apenas precisa de ajuda.”
“Tantos acidentes! Tantas pessoas perderam a vida durante a guerra! E era eu o tempo todo! Era eu quem causava tudo aquilo! Depois eu simplesmente me esquecia, para não ter que lidar com o que eu tinha feito!”
“Calma, calma!” Disse ele abraçando-a enquanto ela volta a chorar. “Você não está sozinha agora. Nunca mais você estará sozinha. Mesmo que ninguém mais esteja ao seu lado, eu sempre estarei.”
Depois de muito insistir, Leonel finalmente conseguiu persuadi-la a contar sua história para os outros membros da tropa. Aquela era uma equipe que havia passado por inúmeras situações de vida ou morte, e tinham uma sólida e inabalável confiança uns nos outros. O relato de Luma foi recebido com graus variados de horror e simpatia, mas não houve condenação.
Com o passar dos anos, Luma Toniato aprendeu a controlar o próprio temperamento, de forma a não mais perder o controle para a fúria assassina que havia se apoderado dela tantas vezes antes. No entanto, ela sabia muito bem que algumas batalhas simplesmente não têm fim. Pelo menos não enquanto houver vida e esperança.
(Fim)
O Vale Encantado – Parte 4 (anterior)
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